Uma voz sutil

Com o romance “Um amor anarquista”, Miguel Sanches Neto assegura seu lugar entre os grandes escritores da atualidade
Miguel Sanches Neto: literatura que escraviza.
01/10/2005

Não nos deixemos enganar pelo jeitinho matuto do ex-agricultor paranaense Miguel Sanches Neto. Por trás do hoje professor de literatura na pacata Ponta Grossa, cidade de 200 mil habitantes, localizada a uma hora de Curitiba, reside um intelectual de opiniões fortes e pena afiadíssima.

Até pouco tempo atrás, Sanches Neto era apontado como um dos mais promissores críticos literários do país. O próprio Wilson Martins o indicava como provável sucessor. Mas ele trocou o futuro certo por uma empreitada mais arriscada. Aos poucos, vem diminuindo a atuação na crítica para dedicar-se à carreira de escritor.

O ótimo romance Chove sobre minha infância (Record), matéria de capa do Rascunho de novembro de 2000 e lançado na Espanha em 2004 (Poliedro), passou despercebido pela “grande” imprensa nacional. A coletânea de contos Hóspede secreto (Record, 2003) lhe rendeu o Prêmio Cruz e Souza de 2002. As crônicas inteligentes de Herdando uma biblioteca (Record, 2004) colocaram o livro entre os 20 melhores do Prêmio Portugal Telecom 2005. Com Um amor anarquista, Sanches Neto assegura merecido lugar entre os principais escritores da atualidade.

Com base em fatos e personagens reais, o autor recria com habilidade o ambiente da Colônia Socialista Cecília, uma tentativa de prática do anarquismo ocorrida no interior do Paraná na última década do século 19. Num livro em que ficção e história se entrelaçam, sem prejuízo a nenhuma delas, a viagem no tempo é automática desde a primeira linha, quando o autor nos apresenta o idealizador e líder da Colônia, o imigrante italiano Giovanni Rossi, no momento em que prepara a cama para que sua companheira tenha um encontro com um jovem — que passará a ser o terceiro homem na relação, seguindo o princípio do amor livre que Rossi buscava instituir no grupo.

Além da divisão social de moradia, trabalho, alimentação e dinheiro, Rossi pregava que as mulheres fossem compartilhadas entre os homens para suprir a falta delas no local: “Só quando a mulher não pertencesse a ninguém e os filhos fossem não de um pai, mas da comunidade, a noção de família estaria banida”.

A Colônia, formada por imigrantes italianos, teve dificuldade para organizar-se em todos os princípios, mas nenhum deles rachou tanto o grupo como o amor livre. Enquanto Rossi entendia essa prática como um ideal socialista, entre os homens a intenção era apenas aplacar o seu desejo sexual, fosse pelo amor livre ou pela prostituição.

Já os maridos das poucas mulheres da Colônia aceitavam dividir tudo, menos as esposas. Em Um amor anarquista, somente duas mulheres adotaram o amor livre de fato, mas não exatamente por causa do ideal pregado por Rossi, como ele mesmo foi aos poucos percebendo. O autor não explora diretamente essa questão, mas fica claro que o próprio Rossi esmorece à medida que se apaixona por Adele, mulher de Anibal, que, a contragosto, admite o relacionamento da esposa com mais dois homens. Ou seja, o ideal socialista de Rossi foi, de certa forma, derrotado justamente por um de seus mais ousados princípios: o amor livre.

Amor não se divide. Pelo contrário, como anuncia Sanches Neto por meio de uma frase de Joseph Brodsky na abertura do livro, “somos sempre modificados pelo que amamos”. A paixão por Adele mudou Rossi, e o amor por Rossi transformou Adele. Ela, que parecia ser o exemplo mais sólido da crença no princípio da dissolução familiar, confessa que só teve um comportamento liberal para agradar a Rossi.

Um amor anarquista é um livro tão envolvente, tão bem escrito, que, nele, quase não se percebe a presença do autor, uma qualidade que, paradoxalmente, deve ser ressaltada e também lamentada, pois Miguel Sanches Neto merece um olhar mais atento.

Quem conhece sua trajetória não se espanta com a unanimidade da crítica positiva que o romance recebeu nos principais veículos de comunicação do Brasil. Sanches Neto tem habilidades múltiplas, destaca-se no conto, na crônica e no romance, mas a veia poética não lhe falta, como demonstra nas linhas gritantes de Venho de um país obscuro (Travessa dos Editores, 2000), ampliado e relançado este ano pela Bertrand Brasil, com a instigante dedicatória: Para Miguel Sanches Neto, in memoriam.

Na primeira vez que vi a morte,
ela tinha uma cara desfeita.
O pai passara dias no fundo do rio,
dando-se de comer aos peixes.

O que lhe permite transitar por tantos gêneros, sem dúvida, é o domínio do texto e da linguagem. Longe de utilizar uma escrita acadêmica, o que seria natural em se tratando de um doutor em literatura, Sanches Neto usa as palavras certas, as frases na medida correta, comunicando-se com facilidade e sem invencionices.

Mas, aquele olhar atento vai perceber ainda as convicções e a maturidade de um homem que cresceu em meio pobre e analfabeto, e que tinha de ler escondido do padrasto, que o preferia no cabo da enxada. Apesar disso, Miguel não cai no discurso fácil dos intelectualóides, como afirma em Herdando uma biblioteca:

Confesso que me irrito quando vejo intelectuais falando que o brasileiro não lê, que não se consomem livros… Tudo isso é verdade e tem um lado sociológico que pode ser relevante para donos de livraria e de editoras…, mas do ponto de vista do leitor essas discussões não têm a menor importância. Por que todo mundo tem que ler? Fico imaginando, eu que detesto futebol, se exigissem que todos jogássemos bola três vezes por semana. Seria uma vida insuportável para mim. E não venham me dizer que é diferente, que a leitura liberta e essa conversa toda. Literatura nenhuma liberta: escraviza.

Já em Um amor anarquista, o narrador não participa do romance (à exceção dos primeiros capítulos, narrados por Rossi), e é melhor assim para a boa fluência da história. Mas em alguns momentos, principalmente nos diálogos, é a voz sutil de Sanches Neto que dá inteligência às discussões, com frases como: “O amor justo sempre é companheirismo”; “a memória só entristece a gente”; e “a desconfiança também é doença burguesa”.

Escrevendo a partir de si mesmo, como afirmou ter feito anteriormente em outros livros, ou a partir de uma história intrigante como esta da Colônia Cecília, Miguel Sanches Neto escraviza o leitor com sua literatura.

LEIA ENTREVISTA COM MIGUEL SANCHES NETO

Um amor anarquista
Miguel Sanches Neto
Record
250 págs.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho