Uma voz reconhecível

Novo olhar sobre a obra poética de Mario Quintana, reeditada e redescoberta, revela a consciência crítica de seu autor
Mario Quintana, autor de “Espelho mágico”
01/07/2005

Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ser uma voz reconhecível dentre todas as outras (A voz, Mario Quintana, Caderno H)

Não há dúvida de que um poeta se identifica pela voz. Quer dizer, reconhecemos um poeta pela expressão, pela tonalidade própria que ele imprime em seus versos. Sendo a poesia uma aventura de linguagem, é na constituição de uma forma particular de ver a vida, o mundo e os fatos e de manifestá-los de maneira igualmente singular que um poeta se distingue entre os demais.

Jorge Luis Borges refere-se indiretamente a isso ao valorizar a habilidade narrativa do escritor de “dar voz” no processo de criação de personagens. Para ele, como dirá: “En mi corta experiencia de narrador he comprobado que saber como habla un personaje es saber quién es, que descubrir una entonación, una voz, una sintaxis peculiar, es haber descubierto un destino”. Embora essa afirmação se refira sobretudo à construção de personagens, ela é também iluminadora com relação à identificação da voz de um autor, pois é ao encontrar uma entonação e uma sintaxe particular que o escritor se afirma e define seu destino.

No caso de Mario Quintana (1906-1994), mais interessante se torna essa identificação através da singularidade de voz por ter sido ele múltiplo e vário.

Paralelamente à voz lírica, que caracteriza sobretudo seus primeiros livros — os sonetos de A rua dos cataventos (1940) e os versos mais soltos de Canções (1946) — há também a entonação dramática com nuanças surrealistas, que já se anunciava ali e em O aprendiz de feiticeiro (1950) e vai se firmar na trilogia bem posterior, composta de Apontamentos de história sobrenatural (1976), Esconderijos do tempo (1980) e Baú de espantos (1986).

Há ainda, nesse conjunto, um Quintana pleno de humor, presente sobretudo nos textos híbridos de Sapato florido (1948) e nos versos curtos e fragmentos de Caderno H (1973) e Porta giratória (1988).

Mas o que poderia significar dispersão pela variedade não se concretiza: o poeta é vário sendo também uno.

A publicação em curso pela editora Globo da obra reunida do autor e de sua poesia completa pela editora Nova Aguilar, dois projetos que celebram o centenário de nascimento de Mario Quintana, em 2006, possibilitam ao leitor recuperar essa voz em toda sua integralidade, acompanhar suas modulações ao longo do percurso e descobrir como o poeta construiu um universo singular que o torna reconhecível no âmbito da poesia brasileira.

Universo singular
Talvez a descoberta de como Mario Quintana organizou seus livros, o que comprova para o leitor a existência de uma consciência crítica e de um cuidado especial com relação à própria obra, seja o dado mais expressivo desse reencontro com o poeta que as reedições propiciam. É de ressaltar que sua obra, com várias reimpressões, foi acumulando “gralhas” tipográficas, deixando de ganhar (ou perdendo) índices ou sumários, bem como alguns títulos de poemas, sendo “atualizada” por revisões que intentavam “modernizar-lhe” a expressão.

A grande preocupação, portanto, nos projetos das reedições foi a de resgatar a forma original dos livros, a identidade de cada um deles, dispersa muitas vezes devido ao excessivo número de antologias (catorze ao todo) que confundia o leitor. De um lado, perdia-se de vista a que livro determinado poema pertencera originalmente; de outro, supunha-se que a obra de Quintana era mais extensa do que os vinte livros que a compõem, incluindo aqueles dedicados à infância.

A editora Globo, por isso, acedeu publicar em separado os cinco primeiros livros do autor, surgidos entre 1940 e 1951, e reunidos, em 1962, em um só volume com o título de Poesias, da mesma editora. Ao desdobrarmos a antologia, houve o retorno aos livros primeiros em sua forma original.

É certo de que a editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul se havia ocupado em lançar duas reimpressões comemorativas das primeiras edições de A rua dos cataventos e de Sapato florido, respectivamente nos anos de 1992 e 1994. No entanto, esses dois volumes tiveram uma difusão restrita. Atualmente, podemos contar novamente com os cinco primeiros livros, que a Globo acaba de relançar, com prefácios especiais, bibliografia selecionada de e sobre o autor e cronologia de sua vida e obra. E em breve teremos a Poesia completa, que aguarda lançamento.

Como organizadora dos dois projetos, tive a possibilidade de reexaminar detidamente cada edição dos livros de Quintana, confrontá-las e procurar definir qual seria a forma definitiva dos versos, segundo as últimas alterações neles introduzidas pelo próprio poeta.

Foi nesse percurso que pude identificar procedimentos criativos que comprovam o interesse que ele devotava à sua obra e como preocupou-se sempre em lhe assegurar a continuidade. Esse é, sem dúvida, um dos aspectos mais significativos que a leitura da obra em seu conjunto nos permite assinalar.

Da consciência poética
O leitor atento perceberá que ao longo da obra de Quintana vários versos se repetem. Por vezes, são poemas inteiros que reaparecem, transcritos na íntegra ou alterados em sua formulação.

Como explicar essas repetições?

Em primeiro lugar é preciso considerar que esse procedimento pode ser revelador do receio do poeta de que sua obra se perdesse, esgotada, sem merecer reedições. Por isso, ao lançar um novo livro, integrava a ele alguns textos anteriores, assegurando sua permanência para o leitor.

Além disso, por que não pensar que as repetições sejam resultantes de um gesto voluntário de perseguir determinados temas e motivos, desdobrando-os continuamente?

Igualmente podemos considerar que o poeta teria plena consciência de que um texto, deslocado do contexto inicial onde fora publicado, ganha outros sentidos em outro livro, beneficiando-se da vizinhança nova. Quintana, então, encontraria parcerias diferentes para seus poemas, fazendo-os soar nos ouvidos do leitor simultaneamente como algo novo embora conhecido.

O certo é que tais repetições criam ligações interessantes ao longo da obra, pela retomada dos textos e vamos percebendo que circulamos por um universo poético coeso, construído de forma consciente e intencional.

Do poeta, do poema e da poesia
A consciência crítica de Mario Quintana se vai consolidar pela identificação em sua obra da recorrência de poemas que se ocupam da figura do poeta, do poema e da poesia. Como uma preocupação metalingüística, a característica de tematizar o processo criativo e de refletir sobre ele, acaba por definir também essa poesia.

Desde os sonetos inaugurais o eu lírico retrata a si mesmo. Adota uma postura marginal (entre outras figurações, ele é o “idiota da aldeia”, um caminhante, um saltimbanco de circo, seu próprio “Frankenstein”). No entanto, exerce sempre uma função específica — ele faz versos para um menininho doente — e encontra suas afinidades poéticas — Antônio Nobre (o velho Anto), por exemplo, e, mais tarde, Herédia, Rimbaud, Apollinaire, Blake e Cecília — e se devota a cantar sua rua, sua infância, sua cidadezinha, um mundo perdido no tempo e na memória. É, no fundo, um homem que sofre como os demais as suas perdas e os golpes que recebe.

Leia-se esse drama no antológico Soneto XVII, de A rua dos cataventos, um dos mais belos da coletânea:

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha…
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…

É assim que ele se deixa ver como um romântico sofredor e através de seu fazer descreve a si mesmo:

Eu faço versos como os saltimbancos
Desconjuntam os ossos doloridos.
A entrada é livre para os conhecidos…
Sentai, Amadas, nos primeiros bancos!

Vão começar as convulsões e arrancos
Sobre os velhos tapetes estendidos…
Olhai o coração que entre gemidos
Giro na ponta dos meus dedos brancos!

“Meu Deus! Mas tu não mudas o programa!”
Protesta a clara voz das Bem-Amadas.
“Que tédio!” o coro dos Amigos clama.

“Mas que vos dar de novo e de imprevisto?”
Digo… e retorço as pobres mãos cansadas:
“Eu sei chorar…Eu sei sofrer… Só isto!”

Mesmo que não volte a adotar às primeiras configurações, a intencionalidade de fixar a figura do poeta não abandonará sua produção. Está nela dispersa, apresentando-se ora como o solitário Misantropo de Sapato florido:

Um dia ele sentiu que ia morrer. Mudou-se, então, para o último andar de uma velha casa de cômodos sem ascensores…

Ou retratando a solidão em Envelhecer, do mesmo livro:

Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.

Será ainda o caminhante da perna-de-pau em O aprendiz de feiticeiro:

Ao longo das janelas mortas
Meu passo bate as calçadas.
Que estranho bate! …Será
Que a minha perna é de pau?
Ah, que esta vida é automática!
Estou exausto da gravitação dos astros!
Vou dar um tiro neste poema horrível!

Observe-se, no entanto, que a composição da figura do poeta em geral é acompanhada da alusão à poesia, que é vista como um efeito de ilusionista, uma espécie de máscara, que faz parte da mesma figura, em O aprendiz. Por isso,

O poema é uma pedra no abismo,
O eco do poema desloca os perfis:
Para bem das águas e das almas
Assassinemos o poeta.

No mesmo livro de 1950, o poema ganha outra formulação:

Um poema como um gole d’água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre
na floresta noturna.

Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa
condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

O poema adquire, portanto, traços humanos. Como quem o constrói, ele é “triste e solitário”. Será “único” porque “ferido de mortal beleza”, em sua “misteriosa condição de poema”.

Também nas quadras de Espelho mágico (1951) está fixada a reflexão sobre a poesia. Leia-se nesse sentido, a quadra XLV, intitulada Da sabedoria dos livros:

Não penses compreender a vida nos autores.
Nenhum disto é capaz.
Mas, à medida que vivendo fores,
Melhor os compreenderás.

Entretanto, se formos a um de seus livros que dá continuidade à estrutura de Caderno H (1973), como Porta giratória (1988), veremos que essa reflexão continua e perpassa seus versos, sendo retomada a cada página. Do mesmo modo, no anterior Preparativos de viagem (1987) ele recuperara a entonação utilizada em Caderno H, onde o humor se revela determinante na poesia. Mesmo nos versos que pensaríamos serem “os mais sérios” e reflexivos desses livros, há neles um travo de ironia que caracteriza o poeta. Veja-se, por exemplo, em O velho poeta:

Velho? Mas como?! Se ele nasceu na manhã de hoje…
Não sabe o que fazer do mundo,
Das suas mãos,
De si mesmo,
Do seu sempre primeiro e penúltimo amor…
E — quem diria? — o que ele mais teme na vida
é o seu próximo poema!
Porque está sempre perigando sair tão
comovedoramente ruinzinho
Como os primeiros poemas que ele escreveu menino…

Também os seguidores do poeta ganham figuração irônica em sua obra, como em Os discípulos, de Porta giratória:

Os discípulos de um escritor só conseguem acentuar os defeitos do Mestre.

Contudo, não apenas a figura humana é descrita em si mesma, mas ela está constantemente associada a seu objeto e à sua função, como em O poema e o tema:

Se um poeta não falar em nada e disser simplesmente tralalá, não importa: todos os poemas são de amor…

Percebe-se, então, que há uma estreita vinculação entre o poeta e seu fazer: um ilumina e explicita o outro. Poesia é imagem, como em O imagista:

Arte participante? Nem a dos cartazes! A beleza de um cartaz independe do que anuncia.

A vida não passa de um livro de figuras, para o verdadeiro artista.

E até na poesia (que muitos julgam apenas um desfrute sentimental e outros um jogo do intelecto), até na poesia, se lhe tiram as imagens — que é que sobra? Não sobra nem a alma!

Imagens associadas à lucidez que encontra uma companhia paradoxal na loucura em A diferença:

A diferença entre um poeta e um louco é que o poeta sabe que é louco… Porque a poesia é uma loucura lúcida.

Com esse mesmo intuito, Quintana vai explorar o tema da poesia em si, procurando defini-la e explicitá-la. É o que acontece no fragmento inicial de Porta giratória, onde se lê A poesia:

Encomendaram-me os editores uma “suma” de minha poesia, o que me enche de perplexidade. Pois não foi aereamente e sim muito de propósito que dei a um dos meus livros (que por sinal é o predileto de Manuel Bandeira, Augusto Meyer e Carlos Drummond) o título de O aprendiz de feiticeiro, tirado de uma lenda alemã. Esse incauto aprendiz, na ausência do seu Mestre, pôs-se a lidar com forças desconhecidas, e o que aconteceu foi uma incontrolável multiplicação de vassouras, no meu caso uma multiplicação de poemas.

Saberá mesmo um poeta em que consiste essa espécie de força oculta que o faz poetar? Ele não tem culpa de ser poeta; portanto, não tem do que se desculpar ou explicar.

Se eu conheço algum segredo é o da sinceridade, não escrevo uma vírgula que não seja confessional. Esse desejo insopitável de expressar o que tem dentro de si é o mesmo que leva o crente ao confessionário e o incréu ao divã do analista. O poeta prescinde de ambas as coisas, e os que não são poetas, mas gostam de poesia, desafogam a si mesmos através dos poemas que lêem: porque na verdade vos digo que não é o leitor que descobre o seu poeta, mas o poeta que descobre o seu leitor.

Como está transcrito, Quintana conhece bem seu ofício e não hesita em dividir esses conhecimentos com os demais, sejam eles jovens autores ou seus leitores. Conhece também o próprio processo que caracteriza o universo literário constituído da tríade essencial: autor, obra e leitor. Mas o que poderíamos aqui entender como sinônimos — criação e confissão — deixam de sê-lo na maioria de seus textos, como fica claro na reflexão sobre Criatividade:

Desconfiar da observação direta. Um romancista de lápis em punho no meio da vida — esse atento senhor acaba fazendo apenas reportagens. É melhor esperar que a poeira baixe, que as águas resserenem: deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe, recria. Quanto ao poeta, que nunca se lembra, inventa. E fica mais perto da verdadeira realidade.

Na verdade, para ele, a criação será o produto da associação de memória e invenção, tomado esse último termo como correlato de imaginação. E como inventar é sinônimo de descobrir, também será o resultado de uma descoberta, como está em Poesia:

Impossível qualquer explicação: ou a gente aceita à primeira vista, ou não aceitará nunca: a poesia é o mistério evidente. Ela é óbvia, mas não é chata como um axioma. E, embora evidente, traz sempre um imprevisível, uma surpresa, um descobrimento.

A fórmula retorna na concepção do verso, quando o define, em O verso:

O verso é um doido cantando sozinho.

Seu assunto é o caminho. E nada mais!

O caminho que ele próprio inventa…

Essas considerações coexistem, lado a lado, com uma reflexão que situa o poema no centro de suas preocupações, quer dizer, para ele a poesia só existe em sua forma concreta, em verso, em poema. Ou como está aludida em O último poema:

Enquanto me davam a extrema-unção,

Eu estava distraído…

Ah, essa mania incorrigível de estar

pensando sempre noutra coisa!

Aliás, tudo é sempre outra coisa

— segredo da poesia —

E, enquanto a voz do padre zumbia como

um besouro,

Eu pensava era nos meus primeiros sapatos

Que continuavam andando, que continuam andando,

Até hoje

Pelos caminhos deste mundo.

Se estou a selecionar e a citar poemas de Mario Quintana que têm como tema central a própria poesia é porque julgo indispensável examinar sua obra sob esta perspectiva crítica, ou seja, a da constituição de uma ars poetica que lhe é peculiar.

A leitura extensiva de sua obra nos comprova que ao reiterar a temática da criação, explorando os motivos do estilo, de saber escrever, da leitura, e outros a eles relacionados, o poeta estava organizando um conjunto de reflexões que aponta para uma forma particular de entender a poesia e de concretizá-la.

Esse dado é central em sua produção, pois encontramos, vez por outra, versos que sintetizam o processo criativo, como está em outro poema de Porta giratória, intitulado Cortar:

Cortar, cortar sempre, meu único processo. E qualquer dia destes publico mais uma edição de minhas obras com a indicação seguinte: NOVA EDIÇÃO, CORRETA E DIMINUÍDA.

Sem a intenção de reduzir a obra de Mario Quintana em número de livros ou de poemas, mas procurando fixá-la em formas que seriam as mais próximas da vontade do autor, seguindo as alterações que ele mesmo introduziu nos diversos poemas e livros, obedecemos a intenção do poeta que era de corrigi-la.

O centenário de Mario Quintana deverá possibilitar assim o reencontro com os seus leitores e também a descoberta que outros tantos farão de sua sempre presente poesia.

Espelho mágico
Mario Quintana
79 págs.
Globo
O aprendiz de feiticeiro
Mario Quintana
69 págs.
Globo
A rua dos cataventos
Mario Quintana
71 págs.
Globo
Sapato florido
Mario Quintana
165 págs.
Globo
Tania Franco Carvalhal
Rascunho