As flores nascidas ocultas no subterrâneo. O sabor dos tenros caquis, a preferência por frutos maduros e suculentos, morangos devorados no sol de maio. E mais: a acurada arquitetura do joão-de-barro, a cidade de Ouro Preto e o silêncio úmido dos lugares pedregosos. São muitas as imagens que compõem a potência lírica de Olga Savary.
Com os bons poemas escolhidos em Coração subterrâneo, temos um vislumbre da original voz poética de Savary, com a qual a cultura brasileira teve a honra de contar até 2020, quando ela morreu, vítima de covid-19. Os primeiros poemas da seleta, que engloba todo o período de escrita de Olga, datam da década de 1940.
A poeta paraense, nascida em Belém em 1933, foi contemporânea de nomes como Cecília Meireles, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, com quem manteve o que chamava de “amizade amorosa”.
Savary vivenciou o que se costuma considerar os tempos áureos da poesia brasileira. Mais do que isso, ela imortalizou seus versos neste rol de grandes versificadores. Embora tenha alcançado o apogeu de sua carreira nas décadas de 1970 e 80, Olga teve que lidar depois com o ostracismo. Não apenas em relação à poesia, mas também como tradutora — ela verteu para o português nomes como Octavio Paz, Julio Cortázar e Jorge Luis Borges — e jornalista, tendo sido uma das idealizadoras d’O Pasquim ao lado do cartunista Jaguar, seu marido à época. Mas disso ninguém fala, contribuindo para o esquecimento da figura de Olga.
Uma das maiores interlocutoras de Savary foi Hilda Hilst, de quem era amiga. O trabalho de Olga costuma ser comparado ao de Hilda, uma vez que as duas criam uma poética erótica de viés feminino. Outro ponto em comum é o tratamento desse Eros, que tem estreita relação com o bucólico.
Clássico e erótico
A poesia de Savary tem uma dicção que ressoa o clássico. No posfácio de Coração subterrâneo, Laura Erber coloca os versos da poeta entre a ode e a elegia, duas das principais categorias líricas. Ao bucolismo de Olga, contudo, juntam-se traços essencialmente brasileiros, como o tupi, as raízes, águas e caules nacionais.
O erótico se manifesta nos elementos da natureza. Em Água, o eu lírico feminino emprega a metáfora do líquido como signo de Eros, comparando a potência dos impulsos amorosos ao fluxo aquático: “O orgasmo é quem mede forças/ sem ter ímpeto contra a água”.
Já em Terra, há um clamor ao amante: “devora-me até que eu/ não respire mais”. São versos que ecoam a expressão petite mort, usada para designar o orgasmo em francês, mas que pode ser traduzida literalmente como “pequena morte”.
Quando Olga Savary escreve sobre a natureza, não se refere apenas ao conjunto botânico e zoológico. Embora a poeta crave “falo da terra que me cabe,/ da terra que me cobre/ e que me basta”, ela é flexível: “Entro na água e logo a terra/ torna-se uma memória antiga”.
A água retorna em Do que se fala: “Ao dizer mar/ não é só de mar que estou falando./ Falo do falo; o mais, pretexto/ quando é à água que me rendo/ no mais alto ponto do orgasmo”.
Ao trabalhar com imagens aquáticas e investir nas metáforas em torno do mote, Olga se assemelha aos famosos versos de Hilda Hilst no poema Dez chamamentos ao amigo: “Espero/ Que o teu corpo de água mais fraterno/ Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta”. A dupla reforça a longa tradição da água como símbolo erótico, que remonta à mitologia grega, com o nascimento de Afrodite, deusa do amor, em meio ao mar — cena imortalizada no Renascimento pela Vênus de Botticelli.
“Em pernas guardas:/ casa de água/ e uma rajada de pássaros”, escreve Savary em O segredo. É notável como os animais se repetem na lírica da poeta, tanto os mais convencionais, como pássaros, quanto os mais inusitados, como cavalos-marinhos e peixes.
Segredo também são os desejos femininos. Na década de 1970, apesar dos brados da revolução sexual, ainda havia uma forte repressão, em consonância com o período político do país, com a ditadura civil-militar (1964-1985) em seus Anos de Chumbo. Isso se expressa, por exemplo, em Living: “No entanto, a família a vê/ estática, séria, muda,/ enquanto ela cavalga sem freio pela sala”.
O erotismo na poesia de Olga Savary evoca ainda outro fator: a exuberância, presente desde a capa do livro, ilustrada com Trilha de ouro, tela do artista brasileiro Bruno Novelli. A imagem ressalta os elementos tropicais, por meio da profusão botânica, cuja paleta de cores evoca a bandeira do Brasil.
Silêncios
Ainda que a crítica ressalte o erotismo e a exuberância, há um ponto que normalmente passa despercebido na poética de Savary. Primeiro, é preciso levar em conta o título da coletânea. Mais do que nomear um dos melhores poemas do conjunto, a expressão “coração subterrâneo” adquire novos contornos se pensarmos que todos os textos foram retirados da obra reunida de Olga, Repertório selvagem: obra reunida — 12 livros de poesia, 1947-1998. Sendo assim, este Coração subterrâneo se refere ao âmago da produção de Savary, mas também àquilo que é oculto: os silêncios que rondam a obra da poeta.
O silêncio é locus primário desde o primeiro poema da antologia, Mito. Em Ciclos, o eu lírico exalta a potência poética de recriar o mundo por meio da linguagem: “O poema inventa o silêncio,/ o tempo é reinventado no poema”.
No poema Uquiririnto — termo que significa “mudez”, “calar”, “silêncio” —, um dos muitos nomeados em tupi, ela define: “O amor é silente e violento/ mas que disto não se fale:/ amor e palavras pouco se combinam”. Assim, a poeta eleva a força dos momentos que se transfiguram em lírica.
Desejos e denúncia
Olga Savary, assim como os antigos, sabe que não se escreve sobre a natureza sem tocar a passagem do tempo. A poesia tem o poder de eternizar o efêmero, de modo que o inexistente e o finito retornam por meio das contundentes imagens desenhadas nos versos da paraense.
Embora de maneira latente, a poesia de Savary é transpassada pelo social. Não apenas por expor os anseios do eu lírico feminino na busca por liberdade e pela expressão dos desejos — pautas em voga com a categorização da mulher enquanto grupo minoritário na segunda metade do século 20 —, mas também por perscrutar a degradação ambiental.
Em poema dedicado a Carlos Drummond de Andrade, Savary examina liricamente os efeitos da mineração em Minas Gerais e as alterações na paisagem natural do estado. A poeta antecipou a discussão que ganhou grandes proporções apenas na década passada, com o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho.
Poesia vivaz
A construção da sonoridade dentro da lírica de Coração subterrâneo é multifacetada. Ela transita desde a dureza do verso, afiado como pedreira, até a maleabilidade do curso de um rio. As rimas de Olga fogem do ordinário e surpreendem os leitores mais aguçados, em demonstração de um dos melhores momentos da poesia brasileira.
A publicação de Coração subterrâneo chega em bom momento para resgatar o legado de Savary, relegado ao ostracismo. Os mais de 40 anos de produção da poeta se ampliam entre as diferentes localidades pelas quais passou, como sua cidade natal, Belém, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Argentina. Isso ocorre também por meio de seus locutores iniciais, para quem dedicou poemas, com destaque para Drummond.
A poesia de Olga denota a vivacidade da literatura fora do eixo do Sudeste. No ano em que se completa o centenário da Semana de Arte Moderna, sua obra é um exemplo de lírica que ultrapassa os moldes modernistas com originalidade, superando o engessamento e os limites da própria arte poética.
Singular entre nossos versificadores — e versificadoras —, Savary deixa um belo legado dentro da poesia feminina, vide o grande número de poetas de sucesso que bebem da liberdade reivindicada em seus versos, e tem alcançado aclamação da crítica. A final do Jabuti de 2021 na categoria poesia, composta inteiramente por mulheres, é um exemplo.
O Coração subterrâneo de Olga Savary torna-se ainda mais frutífero se pensarmos nos poemas reunidos como uma selva. À primeira vista, temos a exuberância de folhas e cores. Mas, no subterrâneo, o emaranhado de raízes alimenta toda essa profusão de vida, pulsante como um coração. Acima de tudo, a poeta que afirma “selvagem é o coração da terra/ e o meu” nos deixa duas lições: a poesia brasileira vai além do óbvio e há versos que só o silêncio pode revelar.