Uma vida inteira em fragmentos

O tradutor Caetano W. Galindo esculpe "Lia", seu romance de estreia, a partir de retratos fragmentados e embaralhados no tempo
Caetano W. Galindo, autor de “Lia” Foto: Sandra Stroparo
01/08/2024

Não existe maneira de começar a falar sobre Lia, de Caetano W. Galindo, sem mencionar de pronto a sua estrutura bagunçada, que proporciona um movimento de leitura bastante desajeitado — uma característica que está bem longe de carregar um teor negativo. Trata-se de um romance fragmentado, moldado a partir de capítulos distribuídos sem qualquer tentativa de ordenação. Lia é, em outras palavras, como uma colcha de retalhos, cujas aparas são costuradas pela vida destrinchada de uma mulher.

Lia, apesar de agora ter a forma de um romance, foi inicialmente escrito em formato de folhetins. A reunião dos quase 99 capítulos originou um único volume, eternizando os curiosos estilhaços da personagem que nomeia a obra. Ao contrário do que se espera de protagonistas, Lia não carrega absolutamente nada de extraordinário; Lia é uma mulher comum. Ainda assim, como diz um trecho retirado da epígrafe: “[…] você continua sendo capaz de separar aquela mulher de todas as outras pessoas. O que não é pouca coisa”. E, afinal, não seria a vida feita justamente de momentos rotineiros e nada excepcionais? E também não seria instigante acompanhar o banal que guia um terceiro?

Sem qualquer tipo de fio condutor temporal, acompanhamos a fictícia Lia como quem folheia um álbum de fotos: nada ali pertence ao presente; são todos acontecimentos já ceifados pelo tempo. E, como nada do que lemos pertence ao presente, passamos a ser conduzidos pela falha memória, esse resíduo que se fincará na mente de alguns, mas que, com sorte, se perpetuará por algumas gerações. Em um raciocínio que segue isso, Caetano escreve:

E sozinhos de uma maneira irreal, de um modo que só pode existir na lembrança, só cabe, só é concebível na distorção que opera a lente da memória.

O tempo não é tópico apenas para a discussão sobre a estrutura do romance, visto que ele é também um fator que se manifesta nos pensamentos de Lia. Ainda que pensar na vida seja pensar na morte, como escreve Galindo, o capítulo 43, por exemplo, expõe a “preocupação” de Lia ao imaginar os anos que se seguem. Sua projeção do futuro, porém, não carrega tom deprimente ou melancólico:

Mas ela tem um sorriso. Ela não está triste. […] E amanhã, ela não sabe… mas vai ser tanta coisa, e tão veloz…

Um dos lados mais curiosos de Lia é a espécie de quebra de expectativa que eventualmente vem à tona. Por outra perspectiva, esporadicamente um desassossego nos atinge quando encontramos a criança cativante de um capítulo sendo a adulta emaranhada em situações degradantes de outro. Em outros tipos de romance, tais violências seriam resolvidas a partir de alguma atitude ousada, dando espaço para uma catarse comovente oferecida ao leitor. Mas, como consequência de sua estrutura, não encontraremos esse padrão em Lia. Ainda, sem a presença do tempo presente, não há atitude possível para protegê-la; o momento para ajudá-la pertence ao tic tac que já não ecoa no cômodo; pertence aos inevitáveis agentes da efemeridade. Como Lia, somos vítimas rendidas, não há fiança que nos liberte do tempo, e Galindo escreve:

Tudo chega ao fim. Tudo tem sua última vez. E quase nunca você soube disso.

Como em uma singela biografia, Lia é alguém a quem nos afeiçoamos, sobretudo porque ocasionalmente nos reconhecemos nas suas vivências. Lia é, como dizemos, gente como a gente, e uma mulher assim jamais passa despercebida pelo coração do leitor, esse que está sempre disposto a mergulhar em vidas que não lhe pertencem.

Entre os fragmentos, vestígios
É óbvio que um autor como Caetano W. Galindo não poupa esforços para plantar referências em seus escritos, e o próprio nome da protagonista já traz em si um quebra-cabeça embutido: Lucília Paula Kappelhoff. “Lucília” é não apenas um nome incomum e nada óbvio que origina um apelido como Lia, mas também o nome de Lucília Villa-Lobos, a pianista que esteve casada com Heitor Villa-Lobos entre 1913 e 1936. Quanto ao nome composto “Paula”, notamos um vestígio do trabalho excepcional de Galindo a respeito da obra de James Joyce, já que tal nome pertence ao personagem Leopold Paula Bloom, de Ulysses. Por fim, o sobrenome alemão Kappelhoff faz referência à atriz e cantora Doris Mary Ann von Kappelhoff, a aclamada Doris Day.

A edição de Lia ainda acompanha, em suas páginas finais, agradecimentos e notas do autor. Nesse curto espaço, Galindo declara as fontes contidas nas entrelinhas dos capítulos, referências não tão óbvias diante de uma leitura desavisada, mas que engrandecem a obra de maneira imensurável.

Lia
Caetano W. Galindo
Companhia das Letras
230 págs.
Caetano W. Galindo
Nascido em Curitiba, Caetano W. Galindo é escritor e tradutor. Entre suas traduções destaca-se a de Ulysses, de James Joyce. É autor de Sim, eu digo sim: Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce (2016), do livro de contos Sobre os canibais (2019) e de Latim em pó: Um passeio pela formação do nosso português (2023).
Angélica Cigoli Frangella

É formada em Letras pela USP, escritora e colaboradora do jornal Nota.

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