Uma vida entre livros

Em “O texto, ou: a vida”, Moacyr Scliar apresenta a gênese de sua vontade de ser escritor e uma reflexão sobre literatura
Moacyr Scliar: contar histórias é fundamental.
01/06/2007

O texto, ou: a vida, último livro do escritor gaúcho Moacyr Scliar, celebra uma trajetória que contempla a autoria de mais de 70 livros, segundo texto da apresentação. É, com efeito, uma vida entre livros, ainda que outra grande personalidade do mundo livresco e da cultura tenha se apropriado do termo — no caso, o bibliófilo José Mindlin e sua biblioteca com mais de 30 mil exemplares. Se a importância dada a José Mindlin é justa, tendo em vista sua enorme paixão pelo universo dos escritores e, num âmbito mais geral, da cultura, talvez seja também honesto considerar a contribuição de Moacyr Scliar, não somente pelo fato de ser um escritor, mas, sobretudo, por ser um autor cuja produção e prática literária se pautam pela vontade de expressar suas idéias, seus dilemas, bem como seus dramas, através das histórias, narrativas, contos e romances. Neste seu memorial, Scliar traz ao leitor a gênese de sua vontade de ser escritor, do mesmo modo que expõe uma lúcida reflexão acerca da importância do fazer literário para sua vida.

Logo no início dessas memórias, o leitor menos acostumado aos textos de Moacyr Scliar (algo um tanto improvável para quem acompanha este Rascunho, por exemplo) descobre rapidamente que, antes de tudo, ele nasceu escritor. Não é força de expressão, mas um fato inexorável. Assim, a trajetória do próprio Scliar se confunde com a formação de um autor, fato que fica mais do que transparente quando se observa a estrutura que o escritor decide utilizar para a narração de suas memórias. Em O texto, ou: a vida, são as histórias de Moacyr Scliar que pontuam, enfatizam, emocionam e dão colorido a uma série de acontecimentos que marcaram o personagem que, embora não seja de ficção, sabe como ninguém criá-los com precisão. Todavia, não se deve imaginar que o autor faça um elogio da vida privada como se esta tivesse sido um motor para a sua produção literária. Em outras palavras, ao contrário dos escritores que querem mimetizar um cotidiano medíocre em ficção, Scliar mostra que seus questionamentos são levados para o campo da literatura a partir das influências, e este é outro fator que destaca sua produção.

Nesse sentido, nota-se, sempre de acordo com o memorial, que todos os caminhos de Scliar desembocam na literatura. Afinal, são poucos os escritores que, aos 70 anos, apresentam uma produção tão variada. No caso de Scliar, não somente essa variedade é visível como também o fato de ser constante: ou seja, além de ter publicado pelo menos um livro por ano (em média), o escritor e membro da Academia Brasileira de Letras assina uma coluna semanal para a imprensa, em que utiliza um fato noticiado e cria uma narrativa. Por incrível que pareça, tal esforço passa despercebido. Ou melhor, ninguém dá o devido crédito, talvez pelo fato de essa produção contínua ser natural demais para o escritor. Nas memórias, nota-se a origem de tal naturalidade: para Scliar, contar histórias é fundamental, como se fizesse parte de seu genoma. Decifrar esse código genético, contudo, é que não parece tão simples assim. Com a leitura das memórias, o autor nos dá algumas pistas.

Formação
Em primeiro lugar, as referências. Como escritor, Scliar não consegue escapar daquilo que o crítico literário Harold Bloom chamou de “angústia da influência”. Contudo, em vez de tentar demonstrar excessiva erudição, o autor apresenta de que maneira outras histórias foram fundamentais na sua formação. Mais de uma vez, Kafka é citado, assim como a Bíblia, mas há espaço para Hans Christian Andersen, bem como para Monteiro Lobato e Jorge Amado e Erico Verissimo. Antes de soar como ilustração vazia, o que se constata é o fato de, por trás do grande escritor, existir um grande leitor, um apreciador crítico e clínico da literatura, que, para além do seu ofício de romancista, contempla a literatura com respeito e admiração.

Em segundo lugar, há um outro fator interessante na trajetória de Scliar que chama a atenção na carreira de qualquer escritor. É o fato de o autor não ser apenas escritor, mas, sim, ser médico e escritor. Uma questão que permeia as discussões literárias é se o autor deve ter um lugar destacado, alheio às atividades mundanas; ou se poderia conjugar ambas as “realidades” a fim de tornar sua obra mais realista. Para Scliar, outra vez, o fato de ter se tornado médico se deve à literatura. Pois foi por ter medo de adquirir alguma doença, conta ele, que surgiu nele o interesse de ler obras sobre medicina e doença, como Olhai os lírios do campo, de Erico Verissimo, e A cidadela, de A. J. Cronin. Coincidência ou não, outro grande escritor, Somerset Maugham, também era médico e expôs os motivos de sua opção pela medicina também em um livro de memórias, Confissões, publicado no ano passado pela editora Globo. Diferentemente de Maugham, no entanto, Scliar atribui sua escolha em parte por causa da insistência da família, além do fato de ser uma profissão portátil, detalhe elementar para alguém oriundo de família judaica.

E o judaísmo e as religiões, em geral, têm um papel bastante relevante na trajetória de Scliar. Um grande exemplo disso, talvez o maior em todo o livro, é o trecho que ele escolhe como ilustração de seu retorno à Bíblia como fonte de, como se costuma dizer, “inspiração artística”. Conforme analisa Scliar, no conto, o autor decidiu mostrar o ocaso das pragas que castigaram o povo egípcio tomando como ponto de vista de original aqueles que sofriam com os desígnios de Jeová para libertar o povo oprimido. Todos sabem o que aconteceu ao fim, mas os leitores passam a se interessar pela versão daqueles que não são protagonistas — essa característica, a de abordar um lado não tão óbvio assim, é algo que se lê em outros livros de Scliar, como A mulher que escreveu a Bíblia e Os vendilhões do templo, ambos publicados pela Companhia das Letras.

Em terceiro lugar, outro detalhe que chama a atenção nestas memórias de Scliar é a sua militância política, que está ligada, como não poderia deixar de ser, à literatura. Os libelos de protesto ficam em segundo plano, ao mesmo tempo em que entra em cena uma escrita mais engajada. Como é possível ser engajado sem colocar a mão em armas? Scliar explica que foi com o livro Max e os felinos, publicado à época da Ditadura Militar, que reflete sobre a tensão política e social da época, da mesma maneira que a crítica à supremacia ideológica da economia de mercado também foi alvo de uma crítica aguda do escritor em um de seus contos, Milton e o concorrente. Como se lê nas memórias, para além da alusão aos fatos vividos e à história de seu tempo, o escritor busca acertar as contas com a interpretação de suas alegorias.

Assim como palavra puxa palavra, e idéia puxa idéia, as 272 páginas de O texto, ou: a vida caminha como uma conversa entre o autor e os leitores. Como se estivesse sentado numa mesa cercado por interlocutores, o autor discorre sobre diversos assuntos, mas sempre volta ao tema central: a literatura. Nesse aspecto, ainda que o livro em questão seja uma espécie de memorial de um grande nome do círculo literário brasileiro, celebrado por crítica e público, Scliar parece querer, para o bem e para o mal, poupar o leitor daquilo que se espera convencionalmente de um livro “memorialístico”. Não há confissões bombásticas, tampouco questões polêmicas (mesmo quando trata de um suposto plágio do qual teria sido vítima em 2002, Scliar opta por fazer pouco do caso, limitando a um singelo parágrafo). Em contrapartida, há, sim, uma elegia e um elogio à literatura, posto que o autor declara e expõe os motivos sobre o seu processo de criação, além de conduzir a conversa para refletir, juntamente com o leitor, a respeito da presença dos contistas na literatura mundial. Com a literatura em todos os poros e preenchendo todos os espaços possíveis, não é despropositada a consideração de que Scliar viveu e vive uma vida entre livros. Mais do que isso: é um dos casos em que o texto se confunde com a vida.

O texto, ou: a vida
Uma trajetória literária
Moacyr Scliar
Bertrand Brasil
272 págs.
Moacyr Scliar
Nasceu em Porto Alegre, em 1937. Traduzido para cerca de 15 idiomas, Scliar é membro da Academia Brasileira de Letras. É autor de O exército de um homem só, O centauro no jardim, A majestade do Xingu, Os vendilhões do templo, entre tantos outros.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho