Em que momento a admiração se toca com a inveja? Em que minuto a curiosidade acerca do outro se transforma em preconceito? Howard Jacobson desce fundo em perguntas para as quais ninguém tem resposta, fustiga sentimentos mais antigos que o tempo e revolve um assunto espinhoso e cheio de facetas, difícil de abordar: o antissemitismo.
Caim existiria se não houvesse Abel? Quem começou a provocação? O primeiro, por sua natureza violenta, ou o segundo, com seu bom-mocismo irritante, com a índole inocente e astuciosamente amável? Em que momento o homem abre mão da irmandade e parte para a rivalidade? A questão Finkler estranhamente me remete ao romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, no qual também experimentamos as profundezas do ódio fraternal, as diferenças de temperamento gerando conflitos inconciliáveis. Talvez seja sobre isso que Howard Jacobson quis escrever: a eterna incompreensão do outro.
A questão Finkler, romance vencedor do Man Booker Prize 2010, apontado como o único livro de humor a ganhar o prêmio nos últimos 25 anos, não pode exatamente ser chamado de “livro de humor”. Está mais para um romance audacioso que, através de situações engraçadas e politicamente incorretas ao extremo, atravessa a psique humana para revelar a seriedade de uma questão de política mundial que não sai da ordem do dia.
A obra cuida de três amigos profundamente ligados ao judaísmo, os dois judeus Libor Sevcik e Samuel Finkler, e o gói inglês Julian Treslove. Julian é um gói que admira mais do que deveria Libor e Samuel, especialmente depois que ambos perderam suas esposas, Malkie e Tyler. Nessa admiração estranha, Julian quer igualar-se aos amigos, idealiza fazer parte do mistério que os une: a raça aquinhoada, a religião tecida de conhecimentos antigos e sabedorias secretas, a irmandade enquanto vítima das maiores tragédias do mundo: o êxodo, os pogroms, o nazismo. A Julian não restava mais nada: fracassara na profissão, duplamente como pai e marido, e até mesmo na tristeza sua vida não tinha qualquer magnitude ou expressão. Julian é um derrotado que fracassa até mesmo em se destacar como vítima.
Sem identidade própria e em seu enorme complexo de inferioridade, Julian acredita que sua história possa ser diferente se participar de uma confraria especial, dessa família unida e amorosa, partilhando assim a identidade de um povo especial, “escolhido por Deus” e injustamente perseguido. Acredita sobretudo que alcançaria as habilidades “flinkerianas” ao aprofundar-se no estudo do judaísmo. A questão é que, ao acreditar nessa “confraria”, nessa felicidade familiar, em uma qualidade especial e em habilidades “finklerianas”, Julian nada mais faz do que confirmar o mesmo fundamento sobre o qual se erige a histórica rejeição aos judeus. A idealização e a discriminação, neste caso, são os dois frutos de uma mesma árvore.
A constatação de Julian lhe parecia óbvia: se conseguisse uma mulher “finkler” ou se ele mesmo se tornasse um “finkler” — denominação que passou a usar para referir-se a todos os judeus — sua vida seria diferente. Seria? É exatamente no desenrolar desses tantos questionamentos, abordando com leveza a melancolia, a inveja e o ressentimento, que Howard Jacobson produz sua mágica.
O segundo personagem central, Libor Sevcik, é um judeu checo, ex-professor, antissionista e crítico de cinema em Hollywood. Sua profissão lhe permitiu alguma proximidade com mulheres exuberantes e famosas como Marlene Dietrich e Marilyn Monroe, entre inúmeras outras. Apesar disso, era fiel e profundamente apaixonado por Malkie, sua mulher há 50 anos, cuja maior qualidade era fazê-lo rir. Não conseguindo superar o luto pela morte da esposa, esforça-se sem sucesso em encontros nonsense com mulheres mais novas, até que uma antiga amiga lhe traz um problema sério: como enfrentar o efeito particular de um ódio generalizado?
Libor fora professor de Julian e Samuel Finkler e protagoniza com os dois, em encontros repetidos, discussões políticas, históricas, filosóficas, existenciais e sociológicas sobre a questão judaica. Isso acontece especialmente depois que Julian resolve se tornar judeu, enquanto Libor e Sam não entendem bem seus motivos e desmontam os mitos que Julian reproduz em sua ignorância sobre o que signifique “ser judeu”. Libor era antissionista, ele mesmo crítico das posições recentes de Israel em Gaza, e vítima do estereótipo do “mau judeu”, eis que seus sogros, com aspirações aristocráticas, o desmereciam perante Horowitz — um outro pretendente de Malkie. Os pais de Malkie discriminavam sua linhagem checa menos nobre, sua profissão menos tradicional e sua falta de dinheiro na juventude, alijando-o do convívio familiar e responsabilizando-o pelo insucesso da filha por ter casado com “o homem errado”. Isso produzia em Libor a compreensão amarga do que, nos judeus, causava ódio nos gentios.
Samuel Finkler, o terceiro personagem central, foi amigo de infância de Treslove. A competição própria de meninos pré-adolescentes nos bancos escolares transformou-se em uma relação mista de admiração e rivalidade, especialmente porque Sam tornou-se uma celebridade nacional no gênero da autoajuda filosófica, escrevia livros, aparecia em programas televisivos, era casado com uma mulher de sucesso, teve três filhos e ainda gabava-se de seus diversos relacionamentos extraconjugais. Era inteligente, sarcástico, sagaz, bem-humorado e sortudo, despertando em Julian uma inveja neurótica, a venenosa “vontade de ser como ele”.
Publicamente, Sam condenava veementemente a política internacional de Israel, abdicando do uso de seu nome judeu, trocando-o por “Sam” desde a juventude. Afirmava-se abertamente envergonhado das atitudes de dirigentes israelenses, fundando e liderando a organização dos Judeus MORTificados, na qual se atribuía a Israel o recente recrudescimento de ataques contra judeus de outras nacionalidades. Na esfera privada, com seu irrefreável sarcasmo, Sam se entristecia pelo fato de que seu relacionamento com Tyler não era perfeito como o de Libor, que suas várias amantes nunca o satisfizeram de verdade, que ele nunca teve um bom relacionamento com o pai, e que seus filhos sofriam na comunidade judaica ao reproduzirem suas ideias — pois na visão de muitos judeus, a crítica à política internacional de Israel se confundia e municiava o próprio antissemitismo.
A par do aprofundamento emocional em cada um dos três eixos da narrativa, trançando-os entre si, há um evento externo misterioso que situa a questão dos judeus na Inglaterra, o primeiro país europeu a promover a expulsão de judeus — criando, assim, o germe do desejo de fundação de uma nação própria — e onde a população se interessa com estranha curiosidade sobre a política externa israelense. É a partir de um assalto a Julian, em que uma mulher o rouba e sussurra “seu ju…” de forma virulenta, que os três personagens principais passam a observar uma série de outras manifestações de ódio que os atingirão, das formas mais diferenciadas, inesperadas e covardes.
Com uma narrativa ágil, corajosa, inteligente, de leitura intensa e melancólica, Howard disseca e desmonta o judaísmo em três esferas diferentes: à medida que o romance avança, experimentamos o esgotamento físico e emocional de Libor, o desmonte psicológico de Treslove — eis que sua crença no judaísmo como fuga da derrota pessoal se revela uma falácia —, e o definhamento moral de Samuel.
Superficialmente, pode-se dizer que A questão Finkler é um livro sobre o antissemitismo e antissionismo — ou, como diria o personagem que dá nome ao título, sobre “lá vamos nós, Holocausto, Holocausto…”. No entanto, aborda, mais do que isso, um universo de complexos e paixões, um rosário de verdades e o senso comum sempre equivocado acerca do “diferente” passível de generalização, estereótipo e discriminação, seja ele mulher, estrangeiro, negro — ou judeu.