Mesmo que a perseguição do fantasmático unicórnio pareça infrutífera, ela não é insana nem arbitrária, mas reveste-se de uma seriedade que ultrapassa em muito o caráter delirante da colocação dos simples rótulos ou da diferenciação entre moderno e pós-moderno. Não se pode passar por alto e negligenciar os importantes debates Habermas, Lyotard, Deleuze, Rorty, Blumenberg. Como não podem ignorar-se os ensaios portugueses, escritos por autores como Fernando Guimarães, Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho, Manuel Maria Carrilho, Bragança de Miranda e João Barrento, para referir os casos mais pertinentes.
Recentemente, com o admirável livro A espiral vertiginosa (2001), João Barrento recebeu o prêmio de Ensaio do P.E.N. Club de Portugal, em conjunto com Maria Alzira Seixo. Além de docente e crítico, João Barrento tem desenvolvido, ao longo de toda a sua vida, uma obra notável e já publicou treze livros de ensaio, crítica e teoria literária, bem como algumas centenas de artigos, persistindo numa dedicação ímpar à cultura e literatura germânicas, repartindo-se entre o ensaio e as várias traduções que tem realizado. O autor traduziu poesia alemã, desde o barroco ao expressionismo (tendo-lhe sido atribuído um importante prêmio pela obra Expressionismo alemão — antologia poética), aos poetas modernos, querendo destacar a tradução feliz de Paul Celan, Georg Trakl, entre outros. Traduziu também o longo poema Fausto, de Goethe (a que foi atribuído o Grande Prêmio de Tradução, em 1999), como toda a obra de Goethe. João Barrento foi, ainda, contemplado com o Prêmio de Ensaio “Jacinto do Prado Coelho” da Associação Internacional de Críticos Literários, em 1996, pelo seu livro A palavra transversal — literatura e idéias no século XX. No Prelo encontra-se a sua obra mais recente O poço de Babel. Para uma poética da tradução literária (Lisboa, Relógio d’Água).
O autor sempre manteve e ainda mantém uma colaboração intensa em jornais e revistas da especialidade, tanto em Portugal como no estrangeiro. Além de colaborador permanente do jornal Público escreve para a maior parte das revistas portuguesas e para as revistas Semear e Inimigo Rumor, do Rio de Janeiro, para a Ibero-Americana, de Frankfurt e várias revistas científicas e literárias de língua alemã. Num discurso que cruza o tom acadêmico e coloquial, sobriamente elegante e fluído, transforma a análise de temas metafísicos, filosóficos e árduos da literatura num conjunto de breves ensaios que se lêem com deleite.
A responsabilidade de apresentar-lhe a obra é um desafio que roça o perigo. Quer pela cumplicidade e fascínio que ela suscita, como pela extensão e diversidade dos seus aspectos, suportada pela unidade de um único objetivo: clarificação, compreensão e análise das teorias da linguagem, das poéticas que foram alvo de estudo, dos modelos e cânones do que convencionou designar-se por expressionismo, moderno e pós-moderno. Salientem-se, a título de exemplo, as poéticas de Hölderlin. Rilke, Celan, as idéias filosóficas e autores paradigmáticos que marcaram a emergência do modernismo, como Nietszche, Hermann Broch, Alfred Döblin, Thomas Mann, Musil etc.
Na obra A palavra transversal — literatura e idéias do século XX ( 1996), que marca o aparecimento de uma voz singular no ensaísmo português e preenche uma lacuna existente no panorama da literatura e cultura alemã em Portugal — sobretudo na análise do judaísmo e da poesia contemporânea alemã —, os seus ensaios são atravessados (e mediados) por uma “dupla transversalidade”, para roubar a sua própria expressão, cerne e alimento da obra. Ela diz respeito ao modo como os dois campos problemáticos (aqui entendidos como os dois cornos do fantasmático unicórnio), filosófico e literário, se encontram do ponto de vista epistemológico, duas maneiras de olhar e perspectivar o real, cruzando-se duas formas operatórias tão distintas como a invenção (e da ficção) e a reflexão. Esse entrosamento, mais do que uma perseguição, exige um desvio do olhar, oscilando entre o campo científico e ensaístico, convocando encontros com autores e temáticas privilegiadas, estabelecendo cumplicidades ainda inéditas no ensaísmo português, diluindo barreiras entre os gêneros literários do jornalismo, do ensaísmo e análise crítico-literária. A insistência numa idéia de obliqüidade da análise, face aos padrões do discurso, quer no ensaio filosófico ou no literário, determina o cunho essencial do seu ensaísmo num umbral de risco, devido ao seu pioneirismo.
A idéia de Walter Benjamin, de que a escrita é salvífica e que corresponde à apresentação alegórica do rosto moribundo da história poderia ser subscrita em A palavra transversal, por Barrento. No magnífico ensaio Os palimpsestos do tempo, na mesma obra, em que o autor parte da análise da emergência de um paradigma de narratividade na poesia européia dos anos 80, dá bem conta dessa atualidade benjaminiana, recorrendo ao seu ensaio intitulado O narrador, como suporte. De acordo com Barrento, é a concepção do tempo como duração que tende a sustentar as poéticas dos anos 80 (num périplo que vai da poesia alemã à portuguesa) e ela instaura-se como uma rejeição do tempo vivido e experimentado na sua dimensão nula e esvaziada de sentido, dos ritmos insanos de trabalho e da “indústria de entretenimento” que, tão ferozmente, combatem o ócio produtivo. O autor mostra-nos que não é possível agarrar um “corno” sem que, ao menos, se aviste o outro, ou seja, sem compreender que a literatura converte em “mito” uma determinada matriz histórica que a impregna. E o melhor exemplo desse fecundo e “misterioso” entrelaçamento, cujas leis se desenvolvem em campos tão diversos, é o poema de Peter Handke, o Poema à duração (1986), contemporâneo do filme que marcou indelevelmente a nossa cultura cinéfila, As asas do desejo (de Wim Wenders e com textos de Peter Handke). Walter Benjamin espreita-nos a cada momento, sobretudo na idéia/imagem de um anjo alegórico que já nada pode salvar.
Alongo-me sobre este aspecto na prosa de Barrento porque me parece ser precisamente este ensaio um dos mais interessantes que se escreveram sobre as relações moderno/pós-moderno e, além disso, a polêmica reacende-se e abre-se, a cada instante, ao longo dos textos, como uma brecha, advertindo-nos para o incandescente enigma desse paradoxo que é a própria época em que vivemos. A polêmica como que é deixada em suspenso e reaparece, em toda a sua plenitude, desdobrando-se amplamente no livro A espiral vertiginosa. Barrento procura, aqui, estabelecer com precisão os contornos de uma situação já diagnosticada desde Nietszche, de Baudelaire e Rimbaud, o que não é nada fácil. A tentar encontrar uma definição para “O que é ser moderno?”, talvez a melhor resposta seja o encontrar-se à la page, ser-se anti-classicista, romper com a tradição. A resposta converte-se, imediatamente numa nova pergunta e que é a seguinte: “E ser pós-moderno?”. Esta questão faz todo o sentido, se pensarmos que a modernidade (tomada como modernismo, movimento cultural que envolveu as artes e a literatura do início do século e que se prolongou para além dos meados do século 20) se esgotou, exigindo a sua superação. Ele é visto de forma obsoleta, encarado ironicamente, tanto quando nos referimos às manifestações da arte, como no que respeita as grandes ideologias, as grandes causas políticas e éticas. Se o modernismo é entendido como “uma cultura da rotura em profundidade” (p. 41), dando morte aos grandes paradigmas racionalistas e positivistas, o pós-modernismo pode ser definido como “cultura do radical em extensão” (p. 41). Aquilo que, antes, possuía contornos bem definidos, no seu rigorismo radical, transformou-se, no pós-modernismo, em “culto do radical pelo radical” (p. 41). É a época dos reality-shows, da fragmentação assistemática, da arte do superficial e do acidental, dos revivalismos, do humor e da paródia, do vazio ético, da estetização do político e da ética etc.. No ensaio Cultura, contracultura, anticultura, o autor estabelece a definição de parâmetros entre as categorias de moderno e pós-moderno, o que envolve a distinção entre padrões culturais, que tendem a medir forças no território do pensamento e da ação possíveis. Cultura, contracultura e anticultura são três variantes que incorporam as definições de cultura viáveis, num contexto de uma teoria evolutiva e dinâmica da cultura.
Questionemo-nos, então, sobre a diferença entre anticultura e contracultura, essencialmente, já que as diferenças entre cultura e contracultura são fluídas e, freqüentemente, existe uma flutuação e uma permissividade entre os dois conceitos, aproximando-as. Quase sempre a contracultura opera no horizonte da cultura estabelecida (e por isso, já a necessitar de revisão), refletindo um saudável cepticismo que permite o esbatimento de padrões culturais e a sua substituição, sem que o fato se torne alarmante. Talvez a preocupação se acentue quando falamos de anticultura. O mais dramático exemplo de anticultura tem, sobretudo, a ver com o que Georges Steiner terá designado por “pós-cultura”, isto é, as formas de barbárie que ocorreram no seio da nossa cultura, consolidada pelos valores burgueses. Seja o caso de Auchwitz, que, de acordo com Adorno, inviabiliza qualquer discurso cultural, tornando-o absurdo. Mas, a pensar assim, todos os discursos que se sucedem aos fenômenos de barbárie, tornariam impossível a constituição do discurso cultural, pressuposto que, obviamente se torna, por si mesmo, ilógico.
O que acontece, efetivamente, é que esses movimentos, designados por anticultura, exercem um movimento de revisão dos paradigmas, propiciando o aparecimento do desassossego, para encontrar um conceito suficientemente vago que permita integrar nele os possíveis desassossegos. E é de um desassossego, de uma inquietude permanente que falamos, quando referimos a possibilidade do estabelecimento de parâmetros para a cultura. A arte e a literatura surgem como formas de os exorcizar, enquanto os nomeiam e lhes dão corpo. Todavia, o fenômeno da globalização, no seu tecido complexo e abrangente de todas as formas de manifestação cultural (e essa parece ser a conseqüência mais séria e que deve ser pensada), tende a operar a viragem de uma cultura da palavra para uma cultura do espetáculo. A tendência performativa da cultura espelha a sua debilidade atual e, longe de fomentar a atitude crítica e consciente, sobrevive, precisamente à custa do seu cadáver exangue.
No admirável ensaio Receituário da dor para uso pós-moderno, o autor interpela-nos: fará sentido, ainda, falar de dor, nos dias que correm? Quando a preocupação essencial do coletivo consiste na expurgação da dor, algo com o qual as civilizações desde sempre conviveram, integrando-a como elemento matricial na cultura, transfigurando-o, dando-lhe corpo, será ainda pregnante essa questão?
Toda a nossa cultura atual, desde a literária até às manifestações de contracultura, assenta num ideal de anestesia da dor, sentimento que tem no spleen do dandy o seu direto antecessor. A idéia de uma catarse dionisíaca ou de uma sublimação da dor, raiz da tragédia grega e do drama em todas as épocas, em que a morte e o sofrimento conviviam de perto com a alegria, tornou-se absurda, estranha e inquietante. Uma cultura que exorciza desta forma a dor e a autenticidade da experiência, em simultâneo, atendendo a que ambas não são senão fios de uma mesma teia, revela a sua não-humanidade (esvaziando a arte e a literatura do seu sentido existencial ou suporte ontológico). Torna a dor virtual, ao adotar como regra de base a idéia de um bem-estar coletivo. A dor só é suportada enquanto matéria virtual, performativa, e não real. Veja-se o ênfase dado a certas catástrofes que encerram em si essa espetacularidade, face à ignorância de desastres semelhantes (em número de vítimas e horror), que não contêm potencial performativo. Na cultura mediática dos nossos dias é operada uma exclusão ou travestização do espaço privado em espetáculo e “a dor, tal como o corpo, transformaram-se em objetos de um voyeurismo obsceno, insensível e sem ética.” (p. 78).
Para finalizar, é preciso atentar nas palavras de Eduardo Lourenço, nesse esplendoroso livro que é O canto do signo: por literatura entende-se “a agonia permanente da realidade humana e da palavra que a configura.” (p. 117). Contra todas as formas de esperança frívola, resta-nos, ainda, o uso da dor. Para nos devolver a humanidade, essa parte que nos foi definitivamente amputada.
João Barrento nasceu em abril de 1940, em Alter do Chão. Estudos de Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa (1958-64). Dissertação sobre a obra do dramaturgo inglês Harold Pinter: Entre a Palavra e o Gesto. Interpretação do Teatro de Harold Pinter. Lisboa, 1964. Foi leitor de Português na Universidade de Hamburgo (1965-68) e leitor de Língua Alemã e Docente de Literatura Alemã e Comparada na Faculdade de Letras de Lisboa (1969-86). Desde 1986 é Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com regência de Cursos de Mestrado e Licenciatura em Estudos Alemães e Literários Comparados, e Pós-Graduação em Tradução.
BIBLIOGRAFIA
– Literatura de Língua Alemã em Tradução Portuguesa. Uma Bibliografia (1945-1978),
Bona: Inter Nationes, 1978
– Realismo-Materialismo-Utopia. Uma Polémica (Lukács, Bloch, Brecht, Eisler). Lisboa:
Moraes, 1978 (organ., introd, e trad.)
– História Literária. Problemas e Perspectivas. Lisboa: Apáginastantas, 1983 (organ.,
introd. e trad.)
– Fausto na Literatura Europeia. Lisboa: Apáginastantas, 1984 (com VV. Autores)
– O Espinho de Sócrates. Modernismo e Expressionismo. Lisboa: Presença, 1987
– A Poesia do Expressionismo Alemão. Lisboa: Presença, 1989
– Literatura Alemã. Textos e Contextos (1700-1900). 2 volumes. Lisboa: Presença, 1989
– Goethe. Vida, Obra, Época / Goethe em Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1991
– A Palavra Transversal. Literatura e Ideias no Século XX. Lisboa: Livros Cotovia, 1996
– Uma Seta no Coração do Dia. Crónicas. Lisboa: Livros Cotovia, 1998
– Umbrais. O Pequeno Livro dos Prefácios. Lisboa: Livros Cotovia, 2000
– A Espiral Vertiginosa. Ensaios sobre a cultura contemporânea. Lisboa: Livros Cotovia,
2001
– O Poço de Babel. Para uma poética da tradução literária. Lisboa: Relógio d’Água (no prelo).