Uma solidão transbordante

"Alma corsária", de Claudia Roquette-Pinto, espanta e seduz, como num estado de susto que adquire compreensão
Claudia Roquette-Pinto, autora de “Alma corsária”
01/02/2024

Num mundo onde tudo é acessível, em se tratando de dispositivos e ferramentas de informação, comunicação, entretenimento e exposição — ao menos para os agraciados da sociedade do cansaço —, a literatura ainda tem o dom de causar espanto, aquela sensação inaugural de prazer ou dor, como o gozo de uma lucidez instantânea e quase obscena. No livro A obscena senhora D, de Hilda Hilst, publicado em 1982, a personagem narradora Hillé aos poucos se funde a uma porca, no lapso de uma lucidez repentina, um susto que adquiriu compreensão. O início da novela entrega o tom e o ritmo que a personagem empregará até o fim, um tom de súplica e de perda, num jorro urgente de perguntas e agressões, buscas excessivas e desesperadas que se apaziguam somente no momento do encontro de Hillé com a porca Senhora P, uma porca fugida que surge do nada, no momento da morte de Hillé, ou talvez em sua metamorfose, a última. E se a linguagem até aquele momento não foi capaz de lhe dar as respostas, nem mesmo de comunicar coisa alguma, naquele olhar da porca, naquele encontro, prefigura-se a irremediável compreensão. Para a narradora, Deus só poderia estar ali, naquele lugar de pura animalidade. E já metamorfoseada em Senhora P, vive a experiência do limite de seu próprio ser, na inconstância e impossibilidade de se pensar nas medidas impostas pela linguagem.

A leitura de Alma corsária, de Claudia Roquette-Pinto, espanta, suspende, seduz, como num estado de susto que adquire compreensão. A obscenidade de sua poesia conclama a uma entrega desmedida ao instante, como um desejo de converter para o presente, uma obscenidade ligada irremediavelmente ao dispêndio da poesia, revestida de uma solidão e de um espanto compartilhados, sequestrados do real cotidiano. E essa lucidez anunciada, melhor alertar, que se trata de uma experiência (ou sensação) de leitura, porque a própria poeta afirma “Escrever do lugar do desespero/ (nem adianta esperar lucidez)”. A linguagem não dá conta da experiência de ser, mas transborda, em plena nudez e graça, sua inutilidade.

Dividido em seis partes — Alma corsária, Na estrada, As horas nuas, Poemas do Rio, Escritos da pandemia e Resumo da ópera —, o livro traz poemas que reúnem delicadeza, erudição, sarcasmo, melancolia, breves epifanias, além de referências e alusões a Walt Whitman, Emily Brontë, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e até ao lama tibetano Chagdud Tulku Rinpoche. E convém advertir ao/à leitor/leitora que, embora a poeta deixe entrever suas leituras da filosofia budista, não há pregações pacificadas. O que nos atravessa é uma conflituosa e, às vezes, sonolenta, cansada e quase sensual contemplação da impermanência, no permanente exame de uma mente que “inflige, ad nauseam, a tudo o que se ouve, sente, vê”.

Há o mar, sempre à espreita, uma imagem poética recorrente e cheia de abismos, como a poesia, “no limite entre a destreza e o delírio”, ameaça em incessante movimento e mutação.

Sangue de um poeta

Sempre que o mar, esse bicho
de ventre e visgo de prata
infla suspira refrata
rodopiando nas patas,

sempre que a rosa acende
sua trama de giz na toalha
e se entalha, opalescente,
em lenta espiral de nata,

e uns panos coloridos
ondulando na calçada
gritam “borboletas!”, gritam
e fogem, batendo as asas,

vem o dedo pétreo, em riste.
estancar a hemorragia
de tudo o que assola e insiste.
Da poesia, que ameaça.

O mar é a repetição, permanência da impermanência, que não desiste de se apresentar “escandaloso”, cinza e prata, que pode com sua existência humilhar o corpo covarde, entre o desejo calado e o luto barulhento, perante um verão que insiste, apesar da máquina do mundo, da pandemia e do “gemido das meninas violadas todo santo dia, todo santo dia”. E com toda certeza, não foi aleatória a escolha do título do livro, Alma corsária, que remete a esse lugar de excelência, o mar, de onde os piratas tiram seu sustento saqueando embarcações.

Claudia Roquette-Pinto desloca-se continuamente, de diferentes pontos de perspectiva, com a alma em movimento, no mar ou na estrada, perseguindo palavras “Que não se fundem,/ nem fundam mais nada./ Em alta velocidade,/ batem contra o vidro/ e caem exaustas”.

E capta instantes nos Poemas do Rio, no caldeirão do funk de sangue urgente e corpo em pulsação, onde o pensamento não se cria. Nestes poemas, os instantes são como fotografias moventes da Urca, do Grajaú e de outras ruas vivas.

Antes ainda, em As horas nuas, há o amor. E a repetição da impermanência, dessa vez, é como um balbucio. Aqui o corpo da poesia tem uma temperatura de mormaço, percorrido por uma preguiça, um torpor, uma lascívia. Atravessa-se um tempo do que já foi ou do que poderia ter sido. E “Talvez o amor seja isso:/ restos de vidro e cicatrizes,/ cacos depois da ressaca,/ os vestígios invisíveis/ que insistem em zumbir pela casa”. Ou simplesmente, a “(versão revista e ampliada/ da exasperação cotidiana?)”.

Fim e recomeço
Nos Escritos da pandemia, o corpo luta com o luto, anunciando o Resumo da ópera. E a lucidez então ganha contornos de fim que é recomeço. E ganha também um rosto que se desenha em cada verso, o rosto da poeta, que surge exposto, encarando de frente o leitor e a leitora. Embora haja sempre o que escapa, o que se disfarça, porque, como pregava Alain Badiou, a poesia se utiliza das coisas, como a terra, o céu, a noite para “intimar a língua a dizer a respeito das identidades, através dessas metáforas, algo que vai além da própria identidade”. E de repente o susto opera espelhado e a ruína está em quem mira o espelho, naquele/naquela que lê.

Mulher no espelho

Que estranha é você, aí do outro lado
desta caixa de mercúrio que cambeia,
estranha, irreconhecível e feia,
com o rosto esconso, os olhos alheados,

a boca um ricto, o ímpeto vencido,
a afundar, o par de peixes calados
que um dia foram elétricos, estrídulos,
seus olhos (seu espírito de cacto).

A testa clara, onde o sol antes nascia,
areia exígua onde a poesia de aninhara
hoje é um deserto de penosa travessia.

Abandonada, sua boca se escancara.
E desta fria prata tudo se irradia
é só ruína, e o que mais de arruinará.

Como resumo da ópera, cabe ressaltar que os poemas de Alma corsária respiram num ritmo que obedece aos sustos e encantamentos, entre sobressaltos e espantos, e podem fazer nosso olhar vagar em nuvens, avencas e palmeiras ao vento, como podem nos fazer pesar sob um sol de maçarico. Sem pretensões, mas também sem concessões, Claudia Roquette-Pinto apresenta-nos não apenas a face crua da ruína como também a beleza aterradora da natureza e das coisas humanas, deixando claro que, no plano traçado pela poesia, não há espaço para o conforto da permanência.

E quem me vir vai compreender o plano:
vagar por este vale cambiante,
sem língua nem sentido,
equidistando o quando do talvez,
vivendo só de insetos, na aridez,
o corpo já um traço aquém do humano.
Que doravante
apenas respirar seja o bastante.

Alma corsária
Claudia Roquette-Pinto
Editora 34
144 págs.
Claudia Roquette-Pinto
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1963. Publicou cinco livros de poesia: Os dias gagos (1991), Saxífraga (1993), Zona de sombra (1997), Corola (2001), vencedor do prêmio Jabuti de Poesia, e Margem de manobra (2005), além de um volume de prosa infantojuvenil, Botoque e Jaguar (2008), e de um livro com suas colagens e trechos em prosa, Entre lobo e cão (2016). Seus poemas foram traduzidos para várias línguas, entre elas, o inglês, o espanhol, o francês, o alemão e o catalão.
Luciana Tiscoski

É jornalista e escritora. Mestre e doutora em Literatura pela UFSC. Com o coletivo de poetas mulheres Abrasabarca (Florianópolis) participa dos livros Abrasabarca (Medusa, 2018) e Revoluta (Caiaponte, 2019). É autora da coletânea de contos Área de broca (Nave, 2021)

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