Uma procissão de vozes

No fragmentado e polifônico "Elas marchavam sob o sol", Cristina Judar constrói um romance que tem corpo e voz como elementos principais
Cristina Judar, autora de “Elas marchavam sob o sol”
01/03/2022

Ana tem perfil nas redes sociais, assiste à TV, vive sob o império dos aparatos tecnológicos e da racionalidade instrumental, e tem um irmão que grita macaco ao ver os pelos crescendo em sua perna. Joan é iniciada e treinada pela avó (guardiã de um jardim de ossos) para se comunicar com entidades ancestrais por meio de rituais e divindades. Ana investiga, contesta, resiste. Joan intui, respeita o sagrado e se vê diante da missão de transmitir a sabedoria da avó. Joan aprende a embalar e defumar corpos. Ana aprende na aula de biologia o que é um embrião humano, observando um feto embebido no formol dentro de um vidro. O mundo de Ana é midiático, racional e instantâneo; o de Joan é teatral, mítico e lento.

Elas marchavam sob o sol recorta o intervalo de um ano na vida de Ana e de Joan, que irão completar 18 anos de idade em dezembro, final do livro. São 12 meses de preparação para o encontro entre duas pessoas que seguem adiante com suas vidas na tentativa de assumir seus corpos e suas vozes. Como uma espécie de colagem, os capítulos são compostos de fragmentos de memória e depoimentos de vários personagens, ritos sagrados, lendas, ocorrências cotidianas e pequenas transgressões que anunciam o final emancipatório.

Cada uma a seu modo, as duas trazem perguntas necessárias e urgentes para que possam assumir suas vidas de modo mais pleno: o que é ter um corpo? O que eu quero fazer dele? O que ele pede para ser? Os temas abordados circundam essas perguntas, cujas respostas passam por histórias e relatos sobre disciplina, violência e mercantilização do corpo, e que convergem para o rompimento com a classificação binária de gênero.

O livro é performático como a marcha de protesto chileno que se espalhou pelo mundo (Um violador em seu caminho). A autora é antenada com a mídia e as redes sociais, além de outros recursos que ajudam a construir um retrato instantâneo sobre o aqui e o agora e, ao mesmo tempo, incorporar pautas sociais que estão na ordem do dia, como gênero e ancestralidade.

Recursos literários
A estrutura fragmentada e polifônica do livro dá velocidade à leitura. Não há um centro nem um ápice, apenas os meses aparecem como o fio (quase transparente) que costura a narrativa. A história é fugidia, cabe ao leitor correr atrás.

Com uma linguagem imagética e multifacetada, e uma narrativa composta por fragmentos de relatos pessoais (além de memórias, anúncios de TV, cartas, artigo científico, notícias sobre Marielle, Brumadinho e Covid), o livro exige um leitor atento e disposto a juntar as partes aparentemente desconexas, dar sentido à trama e fazer as ligações entre os personagens. Os capítulos curtos favorecem o fluxo da leitura e seduzem o leitor pelo lirismo, metáforas e epifanias.

Corpos e vozes
Os capítulos se assemelham à colagem de fragmentos, mas o enredo remete a dois elementos centrais: corpo e voz. A alusão crítica aos artifícios e dispositivos socioculturais usados na construção do corpo-objeto, como forma de moldar a sensibilidade e o olhar, funciona como denúncia e crítica social.

Corpos-objeto, pessoas-objeto, ideias-objeto, sonhos-objeto. Se as sociedades capitalistas transformam qualquer coisa em mercadoria, a autora escancara, literariamente, a mercantilização dos corpos e das vozes. Escancarar levando ao extremo é um recurso crítico e estético. Ao longo do livro o corpo é exposto e decomposto em suas partes moles e duras, assim como seus fluidos e líquidos vermelhos que não se ajeitam à brancura industrializada do algodão moldado para conter aquilo que sai de dentro; corpos se submetem a técnicas que vendem rejuvenescimento, valorizam peitos, bundas e lábios volumosos; corpos dispostos a comprar a cinta elétrica que promete esculpir a cintura ideal; corpos capturados e submetidos à tortura promovida pelos órgãos de segurança da ditadura militar, o corpo-objeto alienado e violentado, relatado nas cartas de presas políticas. Ana coloca em questão a normatividade do mundo: as regras para um corpo perfeito, as orientações científicas e o apelo comercial, ou técnicas mais sutis, simples e corriqueiras, como, por exemplo, o namorado que usa aparelho ortodôntico para disciplinar os dentes.

Ana se vê cotidianamente diante de restrições, enquanto Joan tem diante de si uma revelação. As restrições, em vez de vitimizar, ajudam a ampliar os horizontes de Ana; enquanto Joan, depois de iniciada, recebe a revelação da marcha das mulheres, num ritual com chá alucinógeno conduzido pela avó, aderindo a uma comunidade mítica, suas crenças de cura e seus rituais de passagem e de iniciação

A simultaneidade entre práticas ancestrais e o Instagram, entre o inconsciente e a lógica instrumental, funcionam como propulsores da polifonia: mensagens do oráculo e mensagens televisivas; saberes sacerdotais e um artigo acadêmico. As vozes abrem caminhos, ampliam possibilidades que podem ser rejeitadas ou validadas.

Dualismos
Ana olha para frente, imagens e mensagens aparecem e somem nas telas, a efemeridade do tempo acarreta uma espécie de aflição porque o presente está voltado para o futuro. Joan é memória, ela olha para trás, recupera ensinamentos familiares e legados culturais. A família classe média de Ana é consumista e equivocada. Sua avó, fria e dura, lembra um relógio de parede, é uma pessoa-relógio. A família mística de Joan é providencial, a começar pela escolha de seu nome que, segundo a mãe, recusa a determinação do gênero.

Opostos podem ser complementares, mas também podem estabelecer dualismos. Além de uma espécie de espelho invertido entre as duas famílias, os homens não aparecem no livro como seres plurais. Se todas as mulheres têm dentro de si outras mulheres, isso não seria verdadeiro também para os homens?

Seja como for, com um olhar incomum, linguagem híbrida e narrativa nada convencional, Cristina Judar reafirma nesse livro o intuito de abrir caminhos para a literatura contemporânea brasileira, em nome da ousadia e da experimentação.

Elas marchavam sob o sol
Cristina Judar
Dublinense
156 págs.
Cristina Judar
Nasceu em São Paulo (SP), em 1971. É autora, entre outros livros, do romance “Oito do sete”, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2018. Além de escritora, é jornalista e roteirista.
Ana Cristina Braga Martes

É socióloga e escritora. Autora de A origem da água.

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