Uma poética de alta voltagem

Zona Branca é um presídio para onde são enviados os poetas, arruaceiros e dissidentes de uma época sombria
Ademir Assunção, autor de “Zona branca”
01/07/2001

Zona Branca é um presídio para onde são enviados os poetas, arruaceiros e dissidentes de uma época sombria. Apesar da segurança rigorosa, dos altos muros, holofotes e cercas de arame farpado, um jovem autor conseguiu escapar, e publicou um livro de poemas. Com essa metáfora da situação excêntrica, marginal do poeta na aldeia globalizada, Ademir Assunção abre o seu novo poemário, Zona Branca (Altana, 120 págs.), cujo título é inspirado no CD Joe’s Garage, de Frank Zappa.

Usando como máscara dramática a epígrafe de William Burroughs (“A linguagem é um vírus”), Ademir afirma sua visão da poesia como antídoto ao discurso conformista e narcotizado da mídia. Os poemas iniciais de Zona Branca são inspirados em sonhos e filmes, com referências simbólicas de um imaginário povoado por obsessões eróticas e divindades indígenas e africanas. O autor utiliza, de maneira pessoal e criativa, recursos do cinema para a construção dos versos, como as técnicas de planos e closes. Assim, por exemplo, em O Sacrifício, uma das peças mais belas do volume: “doce aroma de tâmaras/apodrecidas/:borboletas de vidro/asas-navalha/no ar pesado/da câmara mortuária”. Aqui, a elipse funciona como um corte de câmera, e a aglutinação de substantivos, como montagem. A visualidade é reforçada, também, pela espacialização das palavras na página.

Apesar do forte apelo visual, por vezes até com certo brutalismo nas imagens (“unicórnio/de chifre amputado”, “musas sádicas me acariciam/com unhas de gilete”, “strippers que após a roupa/arrancam a própria pele”), a poesia de Ademir, desde o seu livro de estréia, LSD Nô (Iluminuras, 1994), caracteriza-se por uma configuração sonora que mistura elementos da canção popular e da fala coloquial urbana, sem cair nas armadilhas da dicção publicitária. É uma ópera-rock de ruas e avenidas, de neons e fios de alta tensão, de flashes imprevistos, precisos e cortantes como a lâmina da navalha.

A fabulação está presente em pequenas narrativas, que mesclam a agilidade do videoclipe e da história em quadrinhos à densidade e força expressiva de sua própria mitologia: “dizem/na aldeia:/uma mulher pariu/uma cabeça de bezerro”. Outras vezes, Ademir demostra ser capaz de criar cromos verbais de intensa delicadeza e suavidade, com clara ressonância da lírica oriental, como na peça Assombro em Branco e Preto: “a lua/sombra pregada na parede do muro/onde o pássaro/pálido susto/olha/o salto do gato/:pétala/destroçada/no jardim”, que nos faz pensar em mestres da poesia nipônica do século 17, como Bashô.

Zona Branca é um cadinho de cinco anos de trabalho do poeta, e há surpresas nos esperando a cada poema, da sutileza da “única lágrima/guardada/na caixinha de jóias” ao tom épico, mítico e sensual de peças como Cavala. Por certo, há também, nesta coletânea, versos de circunstância, como a Anti-Ode aos Publicitários, mas que não alteram o impacto da obra como um todo. Zona Branca é um livro bem realizado, de alta voltagem, que coloca Ademir Assunção entre os poetas mais interessantes da nova geração.

Claudio Daniel

É poeta e tradutor.

Rascunho