Uma poética da permeabilidade

Caio Meira afirma as forças intensivas da vida contemporânea
Caio Meira joga o jogo de querer reinventar o poético
01/05/2004

Já se disse que, enquanto a literatura é uma arte do século 19, o cinema e o rock-‘n’-roll são, privilegiadamente, as do século 20. Poderia acrescentar o jazz, ou mesmo, entre nós, a MPB. O fato é que, ao invés de provocar polêmica, tal declaração de Win Wenders deveria instigar aqueles que se ocupam da literatura, sobretudo, da poesia. É fato inegável que há no cinema contemporâneo uma pegada de tal ordem que, para ele, nossa guarda não consegue se manter fechada. Qualquer poeta minimamente lúcido há de convir que vê muito mais filmes intensivos do que lê livros de poemas com forças similares. Eu mesmo sou capaz de dizer dez ou quinze filmes que me arrebataram nos últimos anos como raríssimos livros de poemas em toda minha vida. Claro que há sempre uma desculpa para tal constatação: o investimento econômico, a divulgação, o mercado, a tecnologia que, nela mesma, já colocando o cinema como um híbrido de ciência e arte, inserindo-o, assim, mais diretamente, no século 20 ou 21, permite uma multiplicidade de usos que o transforma numa espécie de arte total contemporânea. Pode-se somar a isto, o fato de o cinema ter uma história mais curta que a da poesia, propiciando-lhe, a cada instante, novas descobertas com facilidade maior do que um pensamento que remonta às origens do Ocidente se ancorando demasiadamente numa tradição. Sim, podem ser muitos, os argumentos.

Mas enquanto alguns poetas (justamente aqueles que escrevem via-láctea, epifanias, diademas, véus, flores ou, em nome de qualquer idealização, pensam contra o vigor inescapável da contemporaneidade, vendo nela uma decadência desprezível) teimam em reclamar do lugar desprivilegiado que hoje a poesia ocupa, outros, no lugar de um ressentimento tolo e mesquinho, ruminam maneiras de fazer com que a tradição, ao invés de afastá-los do momento, cole-os justamente nele, provocando uma adesão completa ao presente. Com estes — e não são muitos —, a poesia, sem perder o vínculo com o passado, torna-se radicalmente contemporânea, digo, são eles que a ousam transformar em uma arte tão contemporânea quanto o cinema ou qualquer outro dos mais potentes acontecimentos atuais. Para mim, é justamente este, ou seja, estar radicalmente à altura da exigência da vida de hoje, o primeiro grande mérito que logo irrompe à leitura de Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer, terceiro livro de poesia de Caio Meira, que lemos com o mesmo entusiasmo e entrega com que vemos os melhores filmes de Lynch, Cronemberg, Almodóvar e Forman, por exemplo.

Para se confirmar isto, basta folhear o livro, estando atento para o fato de que, além de criar uma sintaxe, todo poeta que se preza inventa, simultaneamente, um dicionário, um conjunto de palavras afetivas do pensamento que quer ganhar corpo na escrita. Tal dicionário poético demarca o desde onde o escritor escreve, aquilo de que ele é íntimo, querendo desdobrar essa intimidade para, de alguma maneira, estimular nosso vínculo com a vida vária e diária, transformando-a e nossa relação com ela. O que impressiona é, através do poeta, a percepção de que aquilo de que ele é íntimo é também o mais íntimo de todos nós, sem que tivéssemos nos dado conta disso. Pela poesia, onde as palavras são escritas para o lado de dentro das lentes dos óculos, olha-se a realidade com outros olhos, olha-se a realidade através das invenções poéticas que, de segunda realidade, tornam-se, agora, indiscerníveis da primeira, acabando com qualquer idéia de representação. Utilizando-se do já dado do mundo, a poesia antecipa-se a ele justamente para mostrar suas intensidades latentes, habitualmente ocultas. Se a arte é uma mediação, ela serve para que se atinja uma imediação com estas forças de vida, que, sem ela, seria muito mais difícil de ser alcançada. Por isto, a escolha vocabular já se coloca como uma aproximação ou um afastamento das forças constituintes da vida contemporânea, como uma das maneiras que o poeta encontra de estabelecer uma adesão incondicional à realidade.

Há muito, não vejo na poesia brasileira (e não apenas na brasileira) uma explosão vocabular ou um dicionário afetivo do pensamento como o de Caio Meira. A ordinariedade que nos circunda está toda ali, já que, fugindo das imagens, cuja facilidade de desdobramentos se apodera de vários poetas que gostam de as criar inconseqüentemente, quando não de as reproduzir, Caio Meira anda atrás das coisas mais palpáveis, sólidas, como: capô do carro, radiador, praça, rua, cabines de rádio, tijolos, telhas de amianto, caixas d’água, nó da gravata, mercado, ventilador, mega-sena acumulada, dinheiro, filas dos caixas, bancas de jornal, banheiro público, lâmpada de supermercado, lanterna halógena raiovac, motor de caminhão, apostila, calcinha, batata da perna, escova de dentes, cabo de guarda-chuva, loja, rádio-relógio, termômetro, caneta bic, guardanapo, fiscal da prefeitura, caixote, saliva, televisão, números de telefone, economia, ortodoxia, consultoria, alarmes contra roubo, sonda, a bolsa de Cingapura, números dos documentos… Minha vontade é preencher páginas e mais páginas com estas e muitas outras palavras que permeiam Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer: elas são a primeira pancada que, no livro, recebemos de nossa época. E não pensem, leitores, que isto seja fácil — abram os livros de poesia que possuem na estante e procurem estas e outras palavras similares; lamento dizer, mas não as encontrarão. Experimentem comprar outros livros, folhear ainda outros nas livrarias… Lamento mais uma vez, mas continuarão sem as encontrar. Quase sempre, acharão apenas aqueles termos que previamente já detêm o certificado de batismo poético. Caio Meira joga um outro jogo, o de querer reinventar o poético, descobri-lo, em cada insignificância, fugidio pela cidade, arrastando o que lhe aparece pela frente.

Neste sentido, o poema se não fosse a Sorbonne e o sabonete para pele macia é um dos muitos primorosos, cuja primeira parte cito: “repetidas vezes, AVL quer ser poeta: vem com aquelas palavras asseadas, que não mijam em banheiro público, dobras de panos que não arrastam na lama, incutidas por unhas que nunca estiveram atochadas na graxa// quer encontrar a frase iluminada, mas não por lâmpada de supermercado ou lanterna halógena raiovac, quer a luz escoada em página de livro, em cidade desaparecida, cintilação interior, como ela diz// ela é sabida, visita paris uma vez por ano, tem a última versão (importada) da ciência estética, estudou oito anos de piano e não escuta música popular há muito tempo// apesar de craque em lítotes, dáctilos e trocaicos, recusa-se a se debruçar sobre as bielas e o diferencial que fabricam o movimento do seu carro// vou dizer a ela: quando o motor não quiser pegar, você vai acabar tendo de mostrar a bunda pra galera”.

Ultrapassando o vocabulário utilizado, ressalta-se, ainda, e, sobretudo, o que é feito de tal dicionário — a sintaxe criada por Caio Meira. Mais do que uma poética de fôlego largo, que seria óbvia de demarcar, dadas, entre outros indícios, a extensão dos versos, a ausência de pontos ao fim das frases e a não existência de maiúsculas, prefiro, seguindo o livro, salientar que é uma poética de entre-fôlegos, ou seja, do intervalo entre um fôlego e outro, do intervalo em que, entre um começo e um fim, nada deseja nem pode se fixar, do intervalo da indefinição de um durante que não permite radares nem bússolas, do intervalo de tudo o que, pelo elogio do inacabamento e a seu incentivo, não se deixa, de maneira nenhuma, deter. Sem sombra de dúvidas, trata-se de uma poética da velocidade máxima, dos fluxos intensivos que jamais se materializam completamente, desconstrutores do que, porventura, se quer estanque. Aqui, a perplexidade vem do entre, entre um sentido e outro, coisas sem sentido que me compõem. O sem sentido do livro, entretanto, oposto ao do tédio ou do desespero, é exatamente aquele que, através da disponibilidade inclassificável originária, nos mostra que, pela fluidez, tudo está em suspensão, sempre por se fazer, que todo sentido é uma ficcionalização alegre necessariamente provisória e instável, cabendo ao poeta (e ao leitor), neste entre originário — lugar de efetuação do poético —, deslocalizar-se, despersonalizar-se, desobjetificar o que há de domesticado.

Se Caio Meira aplica na página aquela explosão material de seu dicionário afetivo transbordante, é justamente para dissolver, em jorro, as coisas palpáveis entre vetores de força. Transformando tudo o que é sólido em vetores de força, ou, dito de outra maneira, levando-nos da primeira intimidade conquistada através das palavras ordinárias que mediatizam o que é sólido da contemporaneidade a uma segunda intimidade, maior e muito mais profunda, da imediação com os vetores de força da vida, o poeta habita e nos faz habitar o fluxo móvel onde nasce qualquer possibilidade de sentido e individuação, dissolvendo-a sempre na potência dos devires. Neste constante entre, irredutível a cada um dos lados, em que o estado das coisas se desarticula nos vetores de forças que, por sua vez, rearticulam novas possibilidades coisais que, simultaneamente, se desarticulam… neste entre constante e irredutível, em que as forças eclodem à superfície, lançando-a em pleno devir, dá-se a poética da permeabilidade, tornando tudo permeável a tudo. Por isso, a cada instante, o poeta não pára de nascer; ora ele entra num devir Marilyn Monroe (aliás, a terceira morte de marilyn monroe é dos mais belos poemas dos últimos tempos), ora num devir Billie Holliday (a poesia de Caio Meira conhece as mulheres como nenhuma outra) ou em qualquer outro, transformando todo nome próprio em apelido. Caio Meira é mais um dos apelidos possíveis de um poeta que, não tendo nome próprio, acata os apelidos provisórios que a poesia exige lhe emprestar.

Como já foi salientado em um dos melhores ensaios sobre poesia escritos nos últimos anos no Brasil, assinado pelo filósofo Cláudio Oliveira, o jogo de máscaras que há em Meira acata, por exemplo, em um mesmo poema, De como e quando se descobre uma falcatrua, a invenção de dois poetas, como uma heteronomia anônima, introduzindo algo de especial, talvez, romanesco, dentro de um único escrito que faz habitar em si a tensão de uma dupla alteridade. Há o poema, em prosa, que o escritor escreve, acerca de um “ele”, personagem fictício, e, dentro do poema em prosa, há um outro poema, desta vez em versos, escrito não mais pelo poeta, mas pensado pelo próprio personagem andarilho, enquanto que, no jogo ficcional, aguarda a chegada em casa para escrevê-lo. São duas enunciações distintas, dois timbres diferentes, dois sons, duas cores. De como e quando se descobre uma falcatrua é um poema de muitos níveis e camadas, mostrando o próprio fazer poético como poema. Esta duplicidade inerente ao jogo de apagamento do autor que, deslizando ininterruptamente, esparramado entre vetores de força, torna-se fictício, também pode ser constatada em um outro poema em duas partes, intitulado No vão da madrugada é que se adivinha os contornos do escuro. Na primeira parte, um voyeur, que assume a dicção do poema, vê, pela distância escondida da janela noturna de seu apartamento, uma moradora da frente em sua maior intimidade, supostamente não se sabendo observada. Qual não é nossa surpresa, quando, na segunda parte do poema, o sujeito da escrita é a própria moça que, com as mesmas palavras e frases da parte anterior, mudando praticamente apenas o gênero dos adjetivos, declara se expor voluntariamente àquele que se acreditava despercebido. Sim, a poesia de Caio Meira, confundindo-se com a ambiência ficcional, atreve-se a essas excelências sem perder as características mais poéticas.

O que intitula o novo livro de Caio Meira é uma deformação de uma frase de Rimbaud. Em 9 de novembro de 1891, dois dias antes de sua morte, delirando, ele dita uma mensagem para sua irmã endereçá-la ao diretor dos transportes marítimos, pedindo-lhe trabalho. Dizendo-o impotente e infeliz, a carta comunica que ele já não pode encontrar absolutamente nenhum tipo de serviço, fato que o primeiro cão na rua confirmará. Em Rimbaud, Caio Meira encontra o cão que poderia confirmar o óbvio, o estado moribundo do poeta. O que diria, entretanto, o cachorro de Caio Meira? No poema entre-fôlegos de um basqueteiro solitário, com alguns poucos latidos, o cachorro poderia responder a pergunta que interessaria apenas ao tablóide inglês: qual o sentido da vida? Diferente do do cão, o trabalho do poeta não é dizer o sentido da vida, mas flagrar o não-lugar de eclosão de todo e qualquer sentido, a encruzilhada de um sentido com o não-sentido, de uma individuação com o ponto de indiferença. Desta maneira, o cachorro de Caio Meira, devorando o cão de Rimbaud, se transforma no perro poético por excelência, aquele que, ao invés de dizer o sentido da vida, consegue uma imediação com vida na imediaticidade da encruzilhada de seu não-sentido com todo e qualquer sentido possível de a ela ser outorgado, na imediaticidade da encruzilhada da não-individuação com toda e qualquer individuação passível de vir a existir, levando um Rimbaud agonizante a um outro e outros, em constantes nascimentos.

Sendo um livro de constantes nascimentos, o de Caio Meira é um hino a favor das forças afirmativas de vida, que não temem nem mesmo as doenças que, à vida, insistem atribuir. Se tudo o que faz mal à vida cabe na poesia, é para que, digerido, fortifique-se em uma nova saúde. Na poesia vitalista de Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer, essa nova saúde é conquistada por uma poética da mistura: “se decidirem que a vida faz mal à vida e o mundo estiver por um fio, pelo menos deixem-me perpetuar o segredo de algumas misturas”. Assim, a poética do entre é também uma poética das misturas, uma poética da permeabilidade. Misturas que nos deixam indiscerníveis de tudo o que há. Misturas que, através de seus segredos, nos entrelaçam à multiplicidade do que existe criando um acontecimento unívoco na imanência poética de vida. Eis uma poética da mistura, ou da permeabilidade, como mostra um dos poemas mais importantes dos últimos tempos, intitulado close to the bone, seguindo a bela expressão de Henry David Thoureau, que poderia ser traduzida por algo como à beira dos ossos: “acordo e durmo debaixo da pele, sobre a crosta da terra, com camadas de cidade enterradas// movimento películas e superfícies entre outras películas e superfícies quando saio à rua, ou quando me encosto no parapeito desta janela que se despede da noite// acordo e durmo entre membranas impalpáveis, com enzimas, autoregulações e imponderáveis combustões// metabolizo rostos e teorias em meio à confusão de lembranças despropositadas, entre secreções sebáceas, tubos, alvéolos e histórias acumuladas// por vezes sinto esse torvelinho dentro da barriga, e não sei se é fome ou lembrança de fome, ou se são movimentos espontâneos da voracidade do vazio// nem sei que tipo de limite representa a pele, se me separa da madrugada ou me une a ela// se o frio que sinto nesse vidro me pertence ou sou eu que pertenço ao frio ou ao vidro, ou se esse ponto que tudo se entrelaça surge apenas para desaparecer// sei apenas que sou permeável a esta manhã que desaba seus vermelhos por prédios e morros, por muros e árvores”.

Não tenho dúvidas de que, ao lado de A cidade e os livros, de Antonio Cicero, e Da amizade, de Francisco Bosco, Coisas que o primeiro cachorro da rua pode dizer testemunha que a poesia brasileira dos últimos tempos passa por um grande momento, um pico entre as melhores do mundo.

Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer
Caio Meira
Azougue Editorial
64 págs.
Alberto Pucheu

Publica livros de poemas e ensaios. Em poesia, A fronteira desguarnecida: poesia reunida 1993-2007, mais cotidiano que o cotidiano, Para quê poetas em tempos de terrorismos? e vidas rasteiras. Organizou a Cult antologia poética, nº 1. Tem feito filmes com poetas e a série Autobiografias poético-políticas. Organizou Não pararei de gritar, de Carlos de Assumpção.

Rascunho