Uma paisagem sonora da dor

"Os vivos /?/ e os mortos", de Fernando Monteiro, documenta poeticamente os terrores da Ditadura Militar, um dos momentos mais cruéis da história do Brasil
Fernando Monteiro, autor de “Os vivos /?/ e os mortos”
01/11/2021

A literatura pode ter um implacável modo de acontecer. Quando enfrenta feridas insuportáveis, gangrenando ainda, cortes finos, rasgos largos, hipotermia, ossos quebrados, carnes violadas, queimadas, asfixiadas e enterradas, ela, a literatura, pode ainda impelir pela estesia, nunca pela anestesia, algum pensamento que nos comova, apesar do horror.

Os vivos /?/ e os mortos parece ser um desses casos. Os poemas deste artista recifense abordam o terror da Casa dos Mortos, uma locação na serra fluminense usada por agentes do Centro de Informações do Exército para torturar e matar pessoas durante a ditadura militar no Brasil, na década de 1970.

O peso dessa história faz com que as escolhas poéticas de Monteiro se entrelacem com algumas soluções editoriais não muito comuns. Destaque para as páginas negras com fontes brancas e para o anexo documental jornalístico ao fim do conjunto de seis poemas. Mas, indiscutivelmente, o ponto alto das soluções visuais deste poema-documentário são as ilustrações de Chico Díaz. Elas alargam a espessura do horror, por meio de montagens plásticas que nos esfolam nas paredes imundas e assustadoras desse capítulo tenebroso da nossa história. As imagens gritam na capa, intercalam os poemas e findam o livro compondo uma brutal paisagem sonora da dor.

A opção pelos versos prosaicos e pela linguagem direta, quase documental, revela sensibilidade e inteligência argutas, dado que o tema não convida a lirismos. Ao contrário, em princípio, o tema silencia qualquer sobrevida poética.

De narrativo encontramos passagens como,

para quem foi levado
portão adentro da fossa humana
por arrastões, cabelos
e golpes até o esgoto
— há esgotos e esgotos,
falo do esgoto que pode ser
levantado}
[e foi]
naquela rua…

O tom de relato, comum aos documentários, se adensa na opção narrativa de quem se coloca, evidentemente, do outro lado da história narrada para alinhavar o artifício poético com o desejo de inventariar e não deixar esquecer mais esse exercício de morte promovido por uma instituição brasileira.

No que toca a expressão mais direta e documental, temos versos como “ARTHUR BARBOSA/ NÚMERO 668/ BAIRRO DE CAXAMBU, PETR…”. A frieza dos versos, além de se inscrever como se fora documento, coaduna com a frieza dos algozes, agentes do Exército Brasileiro.

Ecos no presente
Apesar da explícita datação e do endereço histórico, a dialética do horror de Fernando Monteiro encontra ecos, ou melhor, correspondência no país em que vivemos hoje, sob um governo de ódio:

dos carros dos facínoras matando
o primeiro,
o segundo,
a terceira,
a quarta,
a quinta…
o trigésimo…
no primeiro regime de ódio
que nos governou
(agora, o segundo nos governa).

E nessa mesma sugestão de dialética entre os governos de morte, o poeta não deixa esquecer a (ir)responsabilidade de uma eleição. O derradeiro poema do livro explora a ambiguidade da palavra urna, onde se deposita o voto que pode eleger os governos de morte, e que também remete aos recipientes fúnebres onde se depositam restos mortais.

A partir do confronto com esse poema, não podemos deixar de pensar em um ponto bastante devastado da nossa história presente: se lá, no tempo da Casa da Morte, o governo facínora tomou o poder na mão grande, por meio do golpe de 1964, aqui, no contemporâneo governo das 560 mil mortes (por enquanto), a escolha foi, em princípio, democrática.

Dias apagados
Muito se fala da morte nos poemas de Monteiro, não poderia ser de outra forma. E quando se fala dos vivos, instaura-se uma dúvida, anunciada já no título do livro, ou seja, vivos /?/. A interrogação é digna da provocação que geralmente a arte nos coloca. Estamos realmente vivos? A experiência estética, já sugerimos acima, comove para que não sucumbamos à anestesia. De modo semelhante, apesar de toda a dureza do livro, no momento de maior expressão lírica, a meu ver, o poeta parece reagir à própria dúvida do título:

o ânimo que resta
quanto a nós, nesta hora,
parece ser de recuo
e recusa de morrer para escapar
de viver apenas e tão somente
por nada
ou quase nada
na espuma dos dias apagados.

Ainda no registro da estesia, Monteiro nos faz lembrar o saudoso crítico e professor Alfredo Bosi. Foi com este que aprendemos que, contrário à sentença de Theodor Adorno, a poesia nasce, sim, da perplexidade, do horror. Lição muito bem incorporada por Monteiro:

não, Theodor, não se tornou
“impossível”
escrever versos para os vivos
que não estejam mortos.

Não a despeito da dureza do livro, mas, ao contrário, justamente por conta dela, o conjunto de poemas sobre a Casa da Morte termina num discreto tom de otimismo para a vida possível. Eu só problematizaria uma questão com o autor desse importante livro: será que temos que escrever apenas para os vivos que não estejam mortos? Ou a potência da poesia, conforme a percepção de Bosi e do próprio Monteiro, não faz também surgirem coisas em meio à anestesia, já que surgem da perplexidade? Dito de outra maneira, a poesia não poderia também romper o estado zumbi em que se encontram muitas insensibilidades hipócritas a que chamamos sociedade, ou mesmo vizinhos?

Não são perguntas retóricas. O tom interrogativo vem do simples e direto fato de eu não saber. Mas a complexidade da afirmação de Bosi, e do próprio poeta documentando a Casa da Morte, está em ver na poesia uma potência que surge do ermo das cinzas do horror. Sendo assim, não seria o caso de vermos no acontecimento poético alguma esperança de comoção no seio do ódio social que nos cerca? Se sim, então os versos também são fagulhas ígneas para os vivos que estão mortos.

Enfim, Os vivos /?/ e os mortos é livro incômodo porque muito bem feito. É livro necessário que, embora grite, impele o leitor a certa quietude ao fim.

Os vivos /?/ e os mortos
Fernando Monteiro
Sol Negro
60 págs.
Fernando Monteiro
Nasceu no Recife (PE), em 1949. É escritor, poeta e cineasta. Estreou em poesia ainda nos anos de 1970. Ganhou prêmios pela produção literária tanto em verso quanto em prosa. É autor, entre outros, de Aspades, ETs, etc., Armada América e A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro. Em 2017, foi o autor homenageado da Bienal Internacional de Literatura de Pernambuco.
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho