Desde já peço desculpas pelo tom coloquial desta resenha. O livro de Rubens Figueiredo, vocês perceberão, ficará em segundo plano, ao mesmo tempo em que será o protagonista de um momento epifânico.
Minha mesa está entupida de livros. Todos os dias, mais um envelope chega às minhas mãos, contendo ou um livro ou um release sobre um livro. São todos igualmente interessantes. Todos igualmente indispensáveis. E na minha mesa a pilha vai se avolumando, avolumando. Até que, desta vez, tomou conta de mim. Sim, porque mesmo que eu fosse o principal responsável por aquela pilha de livros, dela eu fazia miragem quando estava sentado à mesa, trabalhando. Talvez fosse bonito, até o momento em que tive esta visão, aquela escultura de livros e CDs (ah, sim, também recebo CDs) quase caindo por cima de mim. Havia, por certo, um quê de Dalí nesta cena toda: eu era a pintura do homem infeliz tomado pelo conhecimento.
Todo mês eu escolhia um livro, ou alguns livros de um determinado autor, para escrever para o Rascunho. Era uma injustiça. E uma temeridade. Todos os meses eu achava que estava deixando para trás o livro mais importante do ano ou do século ou do milênio. Todos os meses eu percebia, também, que eram vários os “livros do século”. E eu jamais estava satisfeito com as minhas escolhas. Isto se tornou mais crônico quando notei que minha vontade, todos os meses, era escrever sobre um livro de António Lobo Antunes. Claro que isso, editorialmente, era impossível, por melhor que fosse — e é — o escritor português. Conclui, então, que os problemas não estavam comigo, um doido varrido apaixonado pela leitura; o problema estava com os livros.
Antes de mais nada é bom salientar que esta onda piroclástica de livros que sobre mim se abate é também fruto de uma idéia antiga, que talvez eu desenvolva mais adiante: a de ser uma espécie de detetive literário, pesquisando, entre as centenas de nomes lançados no mercado anualmente, ao menos um a que se grude firmemente a alcunha de escritor.
Voltando a minha mesa, e este mês, espero, pela última vez. No centro da mesa está o livro que eu escolhi resenhar: Barco a Seco (Companhia das Letras, 191 págs.), de Rubens Figueiredo. Eu já tinha batido com o nome de Rubens Figueiredo muitas vezes, em traduções. É ele, por exemplo, quem verte para um bom português as prosas de Philip Roth e Paul Auster. Sugeri ao editor, portanto, que se fizesse uma entrevista com o autor, além da indefectível resenha do seu livro.
Só que, para fazer uma entrevista decente, ou seja, não uma entrevista que recaia sempre naquelas perguntas ignóbeis do tipo “quais são suas influências?” ou “qual o papel do escritor na sociedade?”, eu tinha que ler pelo menos alguns dos livros do referido escritor. Como ele é autor de poucas obras, propus-me a ler todos. O resultado é, obviamente, frustrante. Chego ao fim do mês tendo lido dois livros de Rubens Figueiredo. O primeiro é um noir intragável: Essa Maldita Farinha (Record, 252 págs.). O segundo é o aclamado Barco a Seco, de que falo com mais calma nos parágrafos abaixo.
Eu não tenho absolutamente nada contra o gênero policial. Pelo contrário. Acho que, como muita gente, comecei lendo Agatha Christie (o que é bem diferente de “romance noir”, mas tudo bem). Essa Maldita Farinha, de Rubens Figueiredo, encheu-me de expectativas. Eu estava diante do genuíno romance policial brasileiro, diziam-me. Decepcionei-me, pois. Porque brasileiro, tentando escrever, em português, à moda super-concisa dos escritores americanos, soa como rock (que já é uma porcaria, convenhamos) cantado em português. Ou, para se ter uma noção exata da tragédia, samba cantado em alemão. A nossos olhos soa muito estranho frases curta. Orações substantivas. Onomatopéias. Justamente como fiz nas três últimas frases. Soa-nos como analfabetismo funcional, como se o escritor simplesmente não soubesse usar conjunções. É claro que não é o caso de Rubens Figueiredo, como vim a saber depois, durante a leitura de Barco a Seco.
Este último é um livro que eu diria, em outra ocasião, genial. E por outra ocasião entendam um universo paralelo, mais ou menos como aquele Mundo Bizarro habitado pelo arquiinimigo do Super-homem, para quem assistia ao desenho animado. Se (é bom que se enfatize o se) fosse escrito há umas quatro ou cinco décadas, se eu não tivesse lido pelo menos uns dez livros com conteúdo bastante parecido, se não estivéssemos envolvidos nesta discussão vazia e falsa sobre pós-modernidade, se meus pés não estivessem mergulhados em salmora, se este texto estivesse sendo escrito numa máquina de escrever… Bem, se tudo fosse exatamente diferente do que é hoje, talvez eu considerasse Barco a Seco genial, como querem os resenhistas.
Por honestidade intelectual, contudo, digo que Barco a Seco é somente um livro a mais que migrará das pilhas intermináveis de minha mesa para a minha estante também entupida de livros. O romance tem um grade defeito — que é ao mesmo tempo sua pior qualidade —: não traz nada de novo. Não acrescenta uma só linha à literatura brasileira. É só um título a mais para afagar o ego do escritor e encher os bolsos do editor.
Sei que soa ambíguo demais esta minha avaliação, e ambígua ela é propositadamente. O senhor Rubens Figueiredo escreveu deveras um bom livro. A história de um homem que não era nada, mas que, graças à sorte grande, descobriu na arte (e também em algumas, como direi, “mutretas existenciais”), o caminho para o reconhecimento. O primeiro capítulo já diz tudo: no mar, o protagonista quase se afoga, enquanto pensa em seu objeto de estudo, um obscuro pintor chamado Emílio Veja, que compunha marinas em caixas de charuto. Tudo muito bem escrito, com longas elucubrações sobre a vida, sobre o “subir na vida”, sobre a arte moderna, pré-moderna, pós-moderna. Aqui, fossem outras as circunstâncias, tecer-se-ia (ai meu Deus! Usei mesóclise!) uma longa exposição sobre a relação do protagonista com a obra do pintor, que lhe dá um sentido frágil à existência, mas.
Mas existem outros livros na minha mesa.
Não duvido da honestidade intelectual de Rubens Figueiredo. Assim como não duvido da de Cristóvão Tezza, quando escreveu Breve Espaço Entre Cor e Sombra, sobre o qual, anos atrás, escrevi a mesma coisa. Tampouco duvido de outros escritores cujos nomes vejo na lombada agora, como Wilson Bueno e Eduardo Sganzerla. Pelo contrário, invejo a força com que criam num meio que julgo estagnado. A mim, contudo, não interessa mais a leitura destes autores porque em meu horizonte (e não falo aqui, de um horizonte imaginário, e sim de algo bem palpável: os livros chegam até a altura dos olhos) esta repleto de Balzacs, Tolstois, Dostoievskis, Stendhals, Machados, Rosas, Clarices, Bandeiras, Drummonds, Eliots, Joyces que preciso e quero ler.
Insisto: Barco a Seco é só mais um barco (com o perdão do trocadilho imperdoável) perdido no meio deste mar de obras-primas a que me entrego de hoje em diante. Não deixem de lê-lo, se vocês tiverem lido o essencial. A mim falta-me o essencial e é no essencial que me abrigarei agora para poder vislumbrar obras menores, mas não menos importantes como este romance de Rubens Figueiredo.