Em outubro de 99, circulou na Feira de Frankfurt a notícia de que Ray Bradbury havia sido convidado para escrever a biografia de Walt Disney, “o homem que procurava a infância”, segundo o título da obra anunciada numa coletiva de editoras. O livro estaria programado para lançamento neste mês, em comemoração do centenário de nascimento de Walt, que nasceu em Chicago, no dia 5 de dezembro de 1901.
Bradbury? Disney? Fiquei desde então imaginando a obra biográfica que poderia resultar dessa idéia típica de algum publisher de mente afiada para livros futuros. O sujeito reunira um autor americaníssimo, conhecido por suas obras de ficção científica, mas freqüentemente subestimado nos outros gêneros que experimentou com brilhantismo. Não poderia haver melhor escolha para o tema da vida do criador de Fantasia — também subestimado (arrisco) como uma espécie de Mark Twain camp, de imaginação solta e bom olho para negócios lucrativos (foi quem afinou o conceito de trade mark etc.).
Para mim, Ray permanece como o poeta sutil de O País de Outubro (mais do que de Crônicas Marcianas), espécie de Salinger em tom menor — mas nem por isso menos admirável — e Walt está encravado nas nossas imaginações quase como um problema estético (ninguém tem culpa de ter sido alimentado das suas revistinhas e filmes durante meio século de expansão daqueles tais “negócios lucrativos”). Ele é o pai da figura mais conhecida de todos os tempos — Mickey Mouse —, segundo enquete de uma universidade americana daquelas que gostam de pesquisar conhecimento inútil de todo o tipo.
Educado com extrema severidade, o pai de Mickey temia, mais do que tudo, a mão e os juízos pesados de Elias Disney (que nunca registrou o filho ilegítimo) e desenhava, solitariamente, no intervalo das sempre exigentes tarefas impostas pelo “velho”. Ele dizia que sua infância fora “truncada, mas cheia de terras de sonho, idealizadas no país das tardes”. Esse mesmo “país” que se tornaria na marca industrial WD, engrossada pela família (Roy Disney à frente, após a morte de Walt), desde a estréia de Branca de Neve e os Sete Anões até o programa semanal da ABC — o maior sucesso da rede durante mais de vinte anos (Disneylândia foi exibido no Brasil, nos anos sessenta, com igual êxito).
Disney nunca foi, no entanto, apenas o “tio” sorridente que dialogava com as suas invenções, frente às câmeras. Cheio de desvãos na personalidade, basta o exemplo da sua “colaboração” com o FBI para nos alertar sobre a “outra face” do criador de “Pato Donald” transportando-se das mesas de animação para as mesas do mal afamado escritório de Joseph Edgar Hoover.
Nas mesas do estúdio, Walt criara, em setembro de 1928, o rato que talvez ficará como a imagem mais emblemática de uma certa América (para bem e para mal), com a ajuda de um fundamental Ub Iwerks. Nas segundas — e sombrias — mesas, ele se associaria à pior face da direita norte-americana, maculando a biografia com uma nada inocente adesão às paranóias do Mephisto grosseiro que foi Hoover. Na prancheta, Disney também podia se mostrar igualmente mesquinho: por exemplo, ao não creditar ao talento de Iwerks — que era quem efetivamente desenhava — o mérito do traço principal e definidor das primeiras criações “Disney”, nas quais ambos trabalharam até 16 horas por dia (Walt com o excelente ouvido que tinha para o som e com o olho de mestre, que possuía, para a cor).
O fundador da Disneylândia era espertíssimo, artística e politicamente. Ao surgir o processo Technicolor, logo fechou contrato de exclusividade com os donos da patente e abriu caminho para esmagar a concorrência, deixando todos os produtores de “animações” a comer o pó do sucesso de Branca de Neve. A estrada era longa e nessa altura o seu estúdio já passara a tratar o desenho animado como verdadeira linha de montagem, segmentando-o em especializações para as diferentes etapas do trabalho de “decoradores”, “animadores”, “intervalistas”, “seqüencialistas” e outros.
Disney foi um perfeccionista digno de melhor traço na arte e de melhores amizades na política. Pelo que mostra Charles Solomon — em The Disney The Never Was, ainda não traduzido no Brasil — podemos acompanhar a obsessiva elaboração do filme Peter Pan, iniciado no fim dos anos 30 e só concluído em 1953. O livro, aliás, revela o “fundo do baú” de Disney Studios, perfeitamente organizado pelo seu mentor, que conservava todos os esboços para os inúmeros projetos realizados ou não, exibidos e exportados patrioticamente (Saludos Amigos, com Zé Carioca, foi da safra de ajuda à política de sedução da ditadura Vargas) ou engavetados e etiquetados com a mesma obsessão. Dentre as obras nunca saídas da mesa de desenho, destaca-se uma abortada versão do Dom Quixote que poderia ter sido a realização de maior potência artística inspirada por Disney, apaixonado pelo livro de Cervantes e com ele na cabeça desde os primeiros tempos da colaboração com Iwerks (ainda na Kansas City Film Ad, nos anos 20). Walt & Iwerks começaram a trabalhar no Dom Quixote em 1940 e, pelo que vemos das etapas vencidas até 1951, a coleção de magníficos desenhos nos mostra Dom Quixote como um “Disney” quase inesperado, com vigorosos traços à George Grosz e mais um toque talvez das aquarelas de Chagall. Pena que não tenha se concretizado como filme bem menos cândido do que Cinderela (1950), a obra realmente propulsora, depois de Branca de Neve, da máquina que seguiria produzindo êxitos (de público e de crítica) como Alice no País das Maravilhas, A Dama e o Vagabundo, A Bela Adormecida, Mary Poppins — filme que juntou, com perfeição, desenhos e gente de verdade — e Mowgli, a última obra supervisionada pelo mágico de Burbank.
Como julgar — com justiça — a sua verdadeira contribuição?
Até onde foi o seu traço (nada espetacular) e até onde chegou o poder da sua “inspiração” junto às equipes? Ray Bradbury terá se preocupado com o varejo disso — ou em medir, com régua impossível, o trabalho de criação & supervisão de obras admiráveis, que estão entre as mais difundidas do século e que deram autonomia de linguagem ao desenho animado? Seja como for, a marca de Walt Disney está na inscrita no fundo da sensibilidade do século que teve o seu Andersen na figura do homem que procurava a infância naquela perdida Terra-do-Nunca que jamais recuperamos, com ou sem o pó mágico do sucesso.
Em tempo: recentemente, Bradbury (81 anos) sofreu um derrame que pode ter adiado o lançamento da biografia.