Uma nação de boçais

João Ubaldo Ribeiro mostra que podemos nos acostumar a tudo, até ao pior
Ilustração: Ramon Muniz
01/01/2007

A crônica é normalmente um produto literário perecível. É difícil para o cronista conseguir com que seu texto escape do dia-a-dia e entre na história. Além disso, a crônica tem o objetivo de provocar o leitor naquele instante com um tema candente daquele momento. Isso torna ainda mais complicado para a crônica ser relevante a longo prazo. No entanto, uma coletânea de crônicas bem escritas representa uma série de retratos instantâneos de um período específico da história para uma análise posterior do referido período. E se as crônicas falam de um único tema, esta coletânea servirá para mostrar como o ponto de vista do escritor foi mudando ao longo do tempo.

Isto posto, temos em A gente se acostuma a tudo — coletânea de crônicas de João Ubaldo Ribeiro publicadas nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo entre 18 de abril de 1999 e 23 de abril de 2006 — uma grande chance de acompanhar a evolução do pensamento de um escritor e intelectual tendo em vista os fatos que ele testemunha. O período é particularmente interessante, pois aborda um cenário político nacional de muitas mudanças, talvez a maior representada pela eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para assumir a presidência do Brasil em 2002. Mas o mais bacana é ver como o próprio escritor mudou ao longo do tempo, influenciado pelos fatos de um país como o nosso.

O que não muda no escritor ao longo do tempo é que se o país vai mal, uma grande parcela da culpa é nossa. Como ele diz na crônica de abertura do livro, A gente se acostuma a tudo. Mais que um título, esta frase é um resumo de como nós brasileiros nos portamos em relação ao que nos acontece. A partir de uma digressão a respeito da péssima qualidade das águas cariocas e de como o carioca se acostumou a isso, João Ubaldo passa pelos apagões, pelas constantes tungadas que sofremos na forma de impostos e que raramente nos são devolvidos, nas mordomias que os nossos representantes eleitos têm sem merecer, nos “n” esquemas arranjados pelos nossos políticos para favorecer alguém (lembram-se do kit de primeiros socorros dos automóveis?) e muito mais que ele lembrará ao longo das crônicas. Seu resumo é um tanto quanto desalentador: “O governo é o que merecemos, os serviços são os que merecemos, as cidades são as que merecemos, as praias de merda são as que merecemos.(…) Tenho certeza de que acharíamos formas de afirmar e exercer plenamente nossos direitos se nos dispuséssemos a isso, mas o problema é que já nos acostumamos, a gente se acostuma a tudo”. Assim, sem esperança, começa o livro.

A seqüência é desalentadora. Isso porque o melhor ex-candidato que este país já teve, o atual presidente, conseguiu frustrar todas as esperanças de que seu governo seria diferente. O próprio João Ubaldo reconhece que votou nele sim, e por mais condescendente que tenha sido, foi impossível defender Lula de seus inúmeros erros. Vale lembrar que em abril de 2006, Lula ainda sofria bastante com os efeitos do Mensalão, depois de ter sofrido com os sanguessugas, com o escândalo dos Correios e com o Aerolula. Além de não ter feito nada em relação a isso, Lula também manteve a política econômica ortodoxa de FHC, aquela mesma que ele jurava que mudaria, e conseguiu fazer o país crescer a impressionantes 3% ao ano em média, justo no período de maior prosperidade mundial, quando todo o resto do mundo industrializado crescia muito mais. Feitos impressionantes, que erodiram a confiança de João Ubaldo no presidente.

Em suas crônicas, João Ubaldo consegue condensar o sentimento dos muitos que se sentiram iludidos e resolveram trocar de opinião a respeito do presidente (infelizmente, não tantos quantos seriam necessários) e da trupe que o cercava e o cerca. João Ubaldo consegue pegar diversos momentos de nosso cotidiano e relacioná-los à pasmaceira que nós, eleitores, adotamos como postura de vida. Mais que um cientista político, João Ubaldo acerta como antropólogo. O ser humano se adapta a todas as condições ambientais, é o único animal que vive no deserto e nos pólos gelados. No Brasil, somos um bicho apolítico que vive com qualquer governo, não importa o quão ruim ele seja.

Outra mostra do talento do escritor é quando ele se torna profeta e, sem querer sê-lo, acerta no vaticínio. Veja por exemplo este trecho de O governo Lula num boteco do Leblon:

— Tu tá vendo aí, eu chamei a atenção desde o começo. Isso não é homem para governar o Brasil, nós merecemos coisa melhor, péssimo governo!

— Eu tou vendo o quê? O homem só toma posse em janeiro e tu já tá reclamando do governo? Qual é a tua, cara, tu tá de porre?

— Umas três semanas de eleito e ainda não vi nada! Não vi nada!

—Mas é isso que eu digo: como é que tu quer ver alguma coisa, se o homem nem tomou posse ainda:

— Ah, tudo sente pela embocadura. Já dá pra sentir pela embocadura.

(…)

— Mas, rapaz, eu não entendo. O que é que o barbudo fez de ruim?

— Nada, é isso que ele fez esses dias todos, nada! Me diz o que ele fez esses anos todos!

— O homem passa treze anos liderando o partido dele, construindo o partido e se candidatando para levar o partido ao poder e tu diz que ele não fez nada?

— Em benefício próprio! Agora o presidente é ele! Benefício próprio!

(…)

— Agora, esse cara, que já vai começando as maracutaias!

— Que maracutaias? Não vi falar de maracutaia nenhuma.

— Tu não se informa, tu não lê jornal. Os deputados, assim que acabaram as eleições, já estão querendo dobrar o que eles ganham. Vão pra mais de 17 ao mês, meu compadre. E na cola vai o resto, porque todo mundo é atrelado a eles, até vereador. É tudo a mesma descaração!

— Tá legal, mas esses deputados ainda não são os eleitos com Lula, são os mesmos do FHC.

— Não interessa! Maracutaia! Com um presidente desses, o que é que você quer? Três semanas de eleito e já tome-lhe maracutaia. Escuta o que lhe digo, esse país não toma jeito nunca, nunca vai mudar! A gente até que tenta ser otimista, mas não dá!

Profético, um trecho profético, publicado em 10 de novembro de 2002. Nem mesmo o cenário dos deputados espertalhões querendo dobrar os próprios salários no apagar das luzes de uma legislatura se alterou. E se a história teima em se repetir, é porque nós não aprendemos nada, ou quase nada, com ela. E acostumados a tudo, ficamos apenas reclamando nos botecos da vida sem fazer nada para mudar o que aí está.

À medida que o tempo passa, as crônicas só escancaram ainda mais este sentimento de que estamos acostumados a tudo, pois a cada novo escândalo, o anterior já era esquecido. Menos mal que temos escritores como João Ubaldo que, sem medo de bater na nossa cara preguiçosa, revela-nos o péssimo compromisso de cidadãos que temos com o nosso país. Não é um livro para se ler com um sorriso no rosto, mas quem sabe ele nos faça tirar a bunda da cadeira e começar a fazer alguma coisa. Oxalá.

A gente se acostuma a tudo
João Ubaldo Ribeiro
Nova Fronteira
224 págs.
João Ubaldo Ribeiro
Nasceu em Itaparica (BA), em 1940. É jornalista desde a década de 60. Seu romance de estréia, Setembro não tem sentido, foi publicado em 1967. A este se seguiu Sargento Getúlio (1971), já traduzido para várias línguas. É autor também de Viva o povo brasileiro, O sorriso do lagarto, A casa dos budas ditosos, entre outros. Viveu algum tempo em Portugal, convidado pela Fundação Gulbenkian, estudando o neo-realismo português. Foi professor de ciência política na Universidade Federal da Bahia, com mestrado em administração pública e ciência política pela Southern Califórnia University.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho