Uma luta antiga

"A moça do internato", de Nadiêjda Khvoschínskaia, é uma poderosa narrativa sobre a ausência de possibilidades para uma mulher russa no final do século 19
29/04/2018

É inegável que existe um crescente interesse do público brasileiro pela literatura russa. A profusão de lançamentos em português de autores recentes e antigos deve-se, em grande parte, pelo ativismo apaixonado de seus tradutores cada vez mais especializados e pela comunidade de leitores devotos, que se empenham para se aprofundar nesta que é uma das mais ricas tradições literárias do mundo moderno. Ainda assim, é difícil desassociar o trabalho do tradutor Odomiro Fonseca de certo ímpeto arqueologista, ao trazer para os trópicos a vigorosa prosa de A moça do internato, célebre romance de Nadiêjda Khvoshchínskaia (1824-1889). Khvoshchínskaia, contemporânea de Gógol, adentrou aos grandes círculos literários de Moscou e Petersburgo sob um pseudônimo masculino e com uma obra tanto prolífica quanto diversificada — ensaios, romances, críticas e traduções estão em seu currículo — e fez deste texto um belíssimo e melancólico tratado sobre a condição feminina na Rússia czarista.

Khvoshchínskaia, dotada de uma visão vanguardista de sua época, abraça o estilo que vinha sendo desenvolvido na chamada escola natural para nos apresentar à Liôlienka, uma moça de quinze anos que dedica sua vida aos estudos em um internato, até que rompe com todas as expectativas que se faziam dela. Para além do pioneirismo da protagonista, a condução narrativa da autora é parte fundamental do entendimento de sua obra e de suas ideias.

Como Capitu em Machado, Liôlienka vai sendo apresentada lentamente como coadjuvante da trama, até que domina a atenção narrativa por sua força própria. Antes disso, a autora, muito argutamente, abre as cortinas com o diálogo entre Ibráiev e Veretítsin, dois conhecidos de longa data que se reencontram em uma pequena vila após muitos anos. Enquanto o primeiro teve uma trajetória bem-sucedida no funcionalismo público, o segundo amarga suas derrotas pessoais e profissionais e envolve tudo em um manto cínico de niilismo. Poeta exilado, caído em desgraça profissional e reduzido a um trabalho massacrante de copista, Veretítsin sofre do amor não correspondido de Sofia Khmelevskaia quando conhece sua vizinha Liôlienka. Por meio de ideias controversas, faz as vias de um Vautrin russo, resvalando sua influência nas ideias da jovem estudante. Liôlienka, entretanto, não é resistente como Rastignac, e sucumbe à serpente. Outrora vivendo para os estudos e almejando o primeiro lugar na classe, reprova de propósito em todas as matérias do internato e recusa o matrimônio que seus pais lhe arranjaram, libertando-se de todas as amarras sociais para viver em Petersburgo como artista independente.

Tradição russa na visão feminina
Obviamente, a literatura russa está repleta de exemplos de mulheres fortes e psicologicamente bem desenvolvidas. Mas uma análise mais detalhada sobre a Kariênina de Tolstói, a Nietotchka de Dostoievski, a Olga de Gontcharov ou, vá lá, a Lara de Pasternak demonstram que, fora de Khvoshchínskaia, a independência feminina está em grande parte relacionada ao aspecto sexual e matrimonial. Conforme nos lembra o tradutor no prefácio, o que foi amplamente convencionado pelos niilistas de sua época como “Questão Feminina” tinha pelo menos outros dois pilares de preocupação: a igualdade na educação entre homens e mulheres e o reconhecimento profissional. A autora de A moça do internato não apenas nos apresenta todas essas questões sob a ótica de uma estudante sem perspectivas em uma cidade do interior, como ainda reverencia a literatura de sua época com uma prosa afiada que adequa ao universo feminino suas principais características, ao mesmo tempo em que antecipa outras tendências que viriam a ser consolidadas na segunda metade do século 19.

Em especial, o tema do homem pequeno (“malénk tchelovék”) ganha contornos femininos e antagonistas correspondentes na literatura de Khvoshchínskaia. Os traços humanos e sensíveis que Puchkin e Gógol trabalharam, respectivamente, nos contos O chefe da estação e O capote sobre o homem pobre, sem importância, escorraçado por seus pares e menosprezado por seus superiores, impregnam a riqueza da protagonista de A moça do internato. Trocam-se os colegas de repartição pelas estudantes do internato, que torcem pela reprovação de Liôlienka, e, do mesmo modo, sai a figura do patrão para entrar a autoridade parental sobre a vida da protagonista do romance. São eles que lhe ameaçam tirar da escola, casar-se com pretendentes indesejáveis, toda uma sorte de castigos que envolvem humilhações psicológicas e trabalhos manuais inúteis aos olhos da moça. A heroína do romance é o primeiro caso apresentado ao leitor brasileiro de uma “málenkaia jênschina” — uma mulher pequena plenamente constituída na tradição russa.

Embate
A rivalidade com o seu mentor, Veretítsin, por sua vez, nos dá um raro embate entre a mulher pequena e outro tema recorrente da literatura russa — o homem supérfluo (“lichiníi tchelovék”), introduzido amplamente ao público com o Diário do homem supérfluo, de Turguêniev, publicado em 1850, e solidificado com seu primeiro romance, Rúdin, de 1856. O homem instruído, mas malsucedido na sociedade, visto muitas vezes como preguiçoso, reclamão e, acima de tudo, passivo, ganharia sua forma final em 1859, com a obra-prima de Ivan Gontcharov, Oblomov. Liôlienka, ao ser confrontada com as ideias de Veretítsin e abandonar o modelo de vida que lhe haviam imposto, contudo, não chega a se converter em uma “mulher supérflua”. A tomada de consciência da heroína a inquieta e lhe imputa uma grande dose de medo que, não obstante, vence, diante do espanto de seu mentor, para quem as palavras talvez nunca tivessem maior significado do que o passatempo retórico dos pequenos supérfluos.

A autora, entretanto, enfraquece sua própria criação nas últimas páginas do romance, quando o didatismo de suas ideias tira de A moça do internato a sutileza estrutural que separa uma ficção de ideias de um romance de tese ou literatura panfletária. Ao travar o último diálogo entre mentor e pupila, Khvoshchínskaia fecha as possibilidades de interpretação do livro e subtrai do leitor o papel ativo da leitura. Em que se pese o contexto histórico de sua publicação, e lembrando que a literatura na Rússia sempre foi muito mais do que mera expressão artística — era principalmente a via principal de discussões de ideias correntes — talvez A moça do internato não pudesse correr o risco de ser dúbio (quem sabe um privilégio estritamente masculino?). O leitor comum atual que se aproximará da autora recém-apresentada ao público brasileiro será aquele mais interessado na mensagem positiva de empoderamento feminino do que nos aspectos bakhtianos da literatura russa do século 19. Neste sentido, Khvoshchínskaia pode ser considerada duplamente vanguardista, não só por discutir ideias obviamente à frente de seu tempo como também por antecipar valores literários que definiriam a prosa e a poesia russa do século 20.

Mesmo assim, para quem se interessa pelas ideias em voga na Rússia czarista, A moça do internato é uma leitura poderosa e necessária, uma luneta em direção ao passado que nos permite encontrar uma engrenagem da grande máquina responsável por transformar uma parte considerável da população em cidadãos de segunda classe. Muitas coisas podem ser ditas sobre a produção literária de Khvoshchínskaia, mas este seu mérito permanecerá indelével ao longo dos tempos.

A moça do internato
Nadiêjda Khvoschínskaia
Trad.: Odomiro Fonseca
Zouk
168 págs.
Nadiêjda Khvoschínskaia
Nasceu em 1824, onde hoje é o oblast de Riazan, na Rússia. Trabalhando desde a infância para se sustentar, teve sua formação intelectual marcada pelo internato em Riazan, onde estudou. Dedicou 47 anos de sua vida à literatura, até sua morte, em 1889, aos 65 anos. Publicando sob o pseudônimo de V. Krestovsky, deixou uma obra vasta que inclui uma quantidade considerável de contos e novelas, romances, ensaios, críticas e traduções.
Yuri Al'Hanati

Formado em jornalismo pela UFPR, mantém o canal Livrada. Publicou contos nas revistas Arte e Letra: Estórias e Jandique. Seu conto Hominho integra a coletânea Livro dos novos (Travessa dos Editores). É autor do livro de crônicas Bula para uma vida inadequada (Dublinense).

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