Uma leitura muito pessoal de Ernesto Sabato

Uma leitura muito pessoal de Ernesto Sabato
Ernesto Sabato, autor de “A Resistência”
01/05/2005

Uma leitura ou releitura seqüencial das três novelas/romances do argentino Ernesto Sabato — O Túnel, Sobre heróis e tumbas e Abaddón, o exterminador — permite conferir sua sinceridade e justeza ao declarar que não escreve mais que um mesmo tema recorrente, ligado a seus fantasmas pessoais.

Esse tema recorrente não é confessional, embora se perceba a intenção de induzir tal interpretação, pela inclusão do autor como personagem, no fechamento de sua tríade, Abaddón, o exterminador, e na assimilação de suas personagens anteriores às novas, em papéis que se repetem quase literalmente, e que, na repetição, identificam essas personagens como as variações de uma só em luta consigo mesma.

Isto é, reedita-se, em termos apocalípticos, a alegoria de O médico e o monstro[1].

Porém, ao contrário do clássico de horror do século 19 — visto no século 20, como uma descrição ficcional e romântica da esquizofrenia —, a obra de Sabato ultrapassa o psicologismo para entrar no terreno da filosofia, e, mais ainda, da metafísica e das doutrinas espiritualistas, algumas das quais em processo de divulgação midiática, como a holística.

O túnel, publicado em 1948, após muita hesitação do autor, que havia pouco renunciara a uma brilhante carreira na área das Ciências (Física), apresenta-se como uma novela psicológica clássica em torno da gênese do crime, tendo como centro um artista em surto psicótico, que teria matado sua amante por ciúmes. A própria estória desmente essa versão. O protagonista, desde o início, persegue e cerca obsessivamente a mulher que lhe dará a oportunidade de extravasar seu ódio pelo sexo e pela mulher em geral. Isto é, em que pesem suas juras de amor total, fica claro que ele procura sua vítima de eleição, alguém em quem personalizar seu objeto de ódio (e inveja), a qual, após uma série de maus-tratos físicos e mentais, deverá ser eliminada. A descrição dessa patologia, que alimenta boa parte das manchetes policiais nos jornais diários, é extremamente acurada e abrangente, envolvendo as demais características anti-sociais da personagem, seus bloqueios afetivos e preconceitos obscurantistas contra os “diferentes”, no caso, especificamente, os deficientes visuais. Em resumo, em O túnel, Sabato cria uma personagem repelente e verossímil. A vítima, por outro lado, apresenta-se como uma vítima clássica, segundo a Psicologia, isto é, a masoquista que busca uma forma de autopunição radical, usando a psicose alheia como seu instrumento suicida. Situação que não é rara em relações masculino/feminino de caráter neurótico.

Em Sobre heróis e tumbas, é retomada a figura da mulher esquiva e difícil, que se cala e esconde segredos tenebrosos (uma obsessão do autor, talvez, com o mito do eterno feminino misterioso e corrupto, ou seja, Lilith, a primeira mulher de Adão, que se converteu na mulher do Diabo). Seu parceiro masculino, porém, é a imagem da inocência ferida e estigmatizada por outra mulher corrupta e diabólica, que aposta em sua destruição: a própria mãe rejeitadora e promíscua. Essa dupla, acompanhada por um fundo de suspense com conotações ora psicanalíticas, ora esotéricas, é acrescida pela personagem que simboliza o Mal à procura do próprio Mal (ou seu autoconhecimento), em situações oníricas e angustiantes, sobre os mesmos temas obsedantes: a cegueira, a escuridão, a podridão, os animais ignóbeis, os esgotos, etc., que remetem inevitavelmente a Santo Agostinho, “entre urina e fezes nascemos”, associando o sexo feminino com as funções excrementais, ou seja, ao que de mais vil ele podia imaginar.

(É bom lembrar que Santo Agostinho só optou pela vida religiosa quando uma doença venérea lhe causou a impotência sexual — o que explica provavelmente seu repúdio ao sexo feminino e a responsabilização do mesmo pelas desgraças do mundo).

Essa associação Mal-Diabo-Mulher-Sexo-Deficiência Física-Fealdade-Pecado, aparece como o leitmotiv a ser revelado pelo segmento narrativo “Informe sobre ciegos”, em que o autor usa de sua riquíssima imaginação (não sem ecos de Hyeronimus Bosch[2]) para criar um clima de horror e danação por meio de imagens sensoriais delirantes, impregnadas da rejeição ao corpo e à matéria.

(Em Retrato do artista quando jovem, James Joyce[3] faz uma longa descrição da prédica católica irlandesa sobre o inferno, que bastante se assemelha à concepção de Ernesto Sabato, ao associar a dor e o sofrimento moral à sordidez de elementos materiais/naturais que possam causar repugnância física).

Como contraponto a tais delírios, há intervalos com cenas de cunho realista sobre elementos das classes populares, tratados de forma simpática e linear. Esses intervalos, que funcionam como entreatos, apresentam personagens secundários do tipo “plano”, isto é, sem contradições ou complexidades, como uma contrafacção à corrupção do resto (a bondade, a simplicidade, a honestidade, a humildade, opostas à sofisticação, à luxúria, à soberba, ao sadismo). Tais momentos, porém, não chegam a constituir-se em mais que uma “cor local”, o contraste necessário para destacar o conjunto tétrico.

Mais importantes são as inserções sobre a história argentina do século 19, com os horrores da guerra civil em diversos momentos, e a ênfase na viagem do corpo decomposto do herói da Independência, Lavalle, através do Pampa, para evitar sua profanação pelo inimigo. Embora reforçando o clima mítico e lúgubre de todo o livro, essas inserções como que contrabalançam a irracionalidade que predomina na parte “atual” da estória, em que a personagem Fernando Vidal, um outro esquizofrênico paranóide, se torna o porta-voz de uma nova teoria conspirativa da História, ou seja, o domínio do mundo pelos “Ciegos”, em que essa teoria constitui-se numa metáfora, a Cegueira quanto ao Bem, na oposição tradicional Luz-Trevas.

Em Abaddón, retorna a obsessão, agora identificada com o período histórico da repressão político-policial argentina no governo de Isabelita e Lopes Rega, que preparava a volta dos conhecidos gorilas, já usando todo o repertório da tortura e do arbítrio, que se tornaram patrimônio cultural dos governos autoritários da América Latina.

Nesse romance, é o próprio autor, tornado personagem, que retoma as investigações sobre a Conspiração Mundial, em que os agentes do diabo, alegorizado como um dragão vermelho a cuspir fogo sobre a cidade de Buenos Aires, se utilizam tanto dos ex-nazistas que escolheram aquele país como refúgio e terra de oportunidades, como dos elementos da alta burguesia vinculados ao regime. A alegoria, porém, foge do historicismo para transformar-se num extenso discurso ideológico-didático-explicativo, ora sobre a arte de escrever, ora sobre o sentido da vida, a partir da concepção espiritualista de divisão entre o espírito e a matéria, como se apenas essa hipótese pudesse explicar a existência do Mal entre os homens, quando a alma se separa do corpo e vive experiências ultradimensionais, em que é disputada pelas forças das Trevas.

São deixadas de lado, no texto de Sabato, as causas concretas (histórico-político-econômicas) da violência do homem contra o homem, e buscada uma interpretação para o Mal, não em termos éticos conscientes (de comportamento social), mas em termos esotéricos, consubstanciados na luta supraterrena entre a essência do Bem e a do Mal.

Como que reafirmando que não se trata de um jogo meramente intelectual e estético entre categorias absolutas, personagens reais se misturam à ficção em seu desenvolvimento, e o próprio autor se dá como morto e enterrado, após repetir as vivências sonambúlicas de Fernando Vidal desde um outro ponto de partida: tentação e morte.

Os símbolos se organizam numa mesma direção, ou seja, numa alegoria místico-messiânica, que evoca tanto o Apocalipse segundo São João, como A tentação de Santo Antônio, de Gustave Flaubert[4]. Temos aí, uma visão católico-medieval do Pecado Original, em que se fundem os anátemas contra os pecados da carne e da soberba do saber (a Árvore da Ciência), pecados todos eles veiculados pelo órgão sexual feminino, descrito como um olho de passagem ao infinito e ao incognoscível, que, uma vez desvendado e rompido, dará origem à cegueira. Em outras palavras, reitera-se aqui o mito da expulsão do paraíso e da queda do homem através da mulher, com sua conseqüente condenação ao inferno (a civilização ocidental moderna).

A trajetória de vida do autor lança alguma luz sobre essa ressurreição dos mitos da danação e do pecado original. Doutor em Ciências, Sabato abandonou sua carreira científica, apesar de toda a atração (tentação?) que sentia por ela, e voltou-se à literatura, encarada como uma espécie de missão: a de revelar o que existe sob a capa de cultura do mundo ocidental.

Tendo participado, na juventude, do movimento estudantil, dividido entre o anarquismo e o socialismo, sofreu desilusões consecutivas de cunho muito pessoal: não aceitava a disputa intragrupos nem a ambigüidade dos militantes, e abandonou o ativismo político por causa das contradições do chamado “socialismo real”, ou seja, do stalinismo, segundo ele mesmo admitiu. Voltou-se então à busca do Absoluto, que poderia estar na Ciência, mas não estava, porque a Ciência faz parte do mundo real dos homens, e igualmente se compromete com o não-absoluto, com o pragmatismo oportunista do homem decaído.

Sua opção para a recuperação do humano foi propor um novo (ou o mesmo) misticismo sincrético. Opção tanto mais compreensível se estabelecermos as relações entre a obra ficcional de Sabato e seu tempo histórico, de violências inomináveis, ditaduras implacáveis e desenraizamento afetivo. Assim, ao mesmo tempo em que seus heróis e vilões se aplicam nos sórdidos segredos dos subterrâneos humanos (psicológico e social), mantém-se a nostalgia pungente por algum sentido de Pátria (ou Mátria) e pertencimento, nostalgia mais uma vez externada em cenas colaterais com personagens de extração popular, unidimensionados e puros, que se limitam a dar suporte ao discurso de cunho moral.

Tudo isso, no entanto, se faz sobre um espesso piso de preconceitos convencionais, a partir das próprias imagens utilizadas para opor carne e espírito e classificar seres reais e sensações naturais como dignas ou vis, numa escala de valores de um surpreendente puritanismo e até elitismo. Assim, conotam-se com valores morais degradados, animais, defeitos físicos, suores, cheiros, sexo, e outras evidências da realidade concreta que, de fato, são neutras, isto é, apenas existem em si e coexistem com as demais.

A contradição persiste; o maniqueísmo persiste. Não há saída por aí.

Notas

[1] O Estranho Caso de Dr. Jekill e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson (1850-1894)

[2] Hyeronimus Bosch (1462-1516) – pintor flamengo de alegorias complexas sobre o destino do homem (morte, pecado, danação, prazer) em forma de parábolas visuais, repletas de símbolos esotéricos.

[3] James Joyce (1882-1941), escritor irlandês, autor de Ulysses, o mais famoso texto literário sobre o fluxo de consciência.

[4] Gustave Flaubert (1821-1880), escritor francês, autor de Madame Bovary, Salammbô e outros.

Tania Jamardo Faillace
Rascunho