Cabo Verde está no cu do mundo e Boa Vista está no cu de Cabo Verde! O que havia a fazer era deitar e esperar a morte. Sim, sim, dizia Lela, mas isso é porque estamos abandonados, entregues nas mãos desses olhos fundo que só vêm aqui para encher. Já se vira exploração igual à da fábrica? Não!
Este é o ambiente do romance A ilha fantástica, de Germano Almeida, escritor cabo-verdiano, ganhador do Prêmio Camões de 2018, mas ainda pouco lido e conhecido no Brasil. Antes desta edição, somente outro livro do autor havia sido publicado por aqui, pela Companhia das Letras, em 1996: O testamento do Sr. Napumoceno.
O primeiro aspecto de destaque em sua literatura é o falar livre e cotidiano — como a expressão “desses olhos fundo”, que transgride a concordância nominal —, da citação acima. Na edição brasileira de O testamento do Sr. Napumoceno, o escritor Mário Prata formulou um glossário fundamental para se entender melhor as expressões usadas pelo cabo-verdiano.
E esta é uma das maravilhas das leituras hoje bem acessíveis que temos da literatura de autores africanos: aprendemos uma língua portuguesa renovada. É uma troca, uma influência que há muito vinha acontecendo com relação aos autores brasileiros sobre os africanos. Mia Couto, na reunião de contos Estórias abensonhadas (1994), publicada no Brasil dois anos depois, traz uma forte carga dos neologismos rosianos — mesmo admitindo que aprendeu a escrever lendo Jorge Amado. A influência de Guimarães Rosa, no entanto, é que possivelmente levou José Saramago, em 1990, a afirmar que o autor moçambicano “trouxe à língua a frescura da invenção e o contato com o fantástico caldeirão que ela é quando falada e escrita por muitas e variadas gentes”.
Este “fantástico caldeirão” se apresenta como fortaleza dos angolanos José Eduardo Agualusa e Pepetela e, claro, do cabo-verdiano Germano Almeida. Com linguagem despojada, mas profundamente literária, ele constrói seu universo onírico a partir dos sentimentos do arquipélago — das dez ilhas espalhadas pelo Atlântico, num ponto entre o Brasil e a África. Território deserto de homens até o final do século 15, entreposto do tráfico negreiro a partir do século seguinte, colônia portuguesa até 1975, Cabo Verde foi construído como resistência à opressão e à injustiça.
Mais que uma geografia, a literatura de Germano Almeida nos apresenta uma gente. Seus personagens fogem aos estereótipos construídos a partir da visão minimizadora que recai sobre os povos pobres. E aquilo que parece ter sido uma visão da estética socialista — que via essa gente resignada e capaz de todos os artifícios para sobreviver à miséria — reside ainda em escritores contemporâneos. Ler Germano Almeida nos livra do óbvio ao apresentar um povo de resistência e luta cotidiana que, mesmo sob a opressão quase invencível do poder constituído, não se entrega.
Mistérios e certezas
Assim se faz A ilha fantástica: como o romance de uma cidade, ou de uma comunidade. A Boa Vista que se conta é feita por sua gente. São nove capítulos que não encerram uma história fechada — são crônicas de vivências que terminam por apresentar todas as nuances de quem vive de resistir. Com humor, vão surgindo personagens muito bem construídos e definidos. No bojo da narrativa, encontramos mistérios e certezas, a dualidade que traduz Cabo Verde de maneira perfeita.
Neste caminho, sobra a discussão sobre qual gênero usou Germano em sua escrita. São contos, crônicas ou um romance? A opção talvez mais segura seja pelo romance fragmentado, em que o autor busca falar de uma região jogada no meio do Atlântico. Isso transforma Boa Vista em protagonista. É certo que nela transitam personagens marcantes como Tio Tone, Djonglim e Alfredo Manco, mas o que interessa mesmo é a maneira como esses personagens vão influindo na comunidade ainda dependente de Portugal, oprimida e esquecida pelos mandatários que estão além-mar e, mais que tudo, explorada pelos interesses comerciais que regem a condição do explorador sobre o explorado.
Essa sociologia está em todos os regimes coloniais que grassaram pelo mundo, é certo. Em Cabo Verde, no entanto, perpetuou-se pela segunda metade do século 20 — e isso é sintomático. Não foi uma independência marcada pela serenidade: tudo se fez com lutas e resistências, moldando o caráter de sua gente. Germano Almeida, ao narrar o ponto inicial e crucial do processo, nos conta a formação de uma pátria a partir de cinco séculos de exploração e dor.
Curiosamente, nada sobrevive de um discurso de mágoa que poderia macular o texto. Tudo é visto com verve de humor, mostrando a sobrevivência das crenças íntimas de sua gente. Sua medicina se vale das plantas e das práticas locais; seu cristianismo está marcado pelo sincretismo com orixás; sua resistência é feita com desafios a quem os tenta oprimir; e mesmo a morte se vale de mecanismos místicos para se explicar e concretizar. Desse caldo surge o que o autor denominou de Ilha Fantástica.
Mas na verdade não tinha havido engano nenhum. Apenas acontecia o acidente geográfico de o botequim do falecido Djonai ficar no caminho da casa de Tia Adelina e assim Lela encontrou Maria Júlia à porta e depois de dois dedos de conversa sobre os assuntos do dia, isto é, Tanha e Antão, resolveu entrar para tomar um cálice. Foi só um cálice mas foi suficiente. Logo dali Lela arribou caminho e rumou para a pracinha atrás da Alfândega, já fusco, já incoerente, já esquecido da Tanha. Quando chegou perto de ca nha Regina já clamava contra a miséria do povo, os abusos das autoridades, as maldades e velhacarias do administrador, a sua voz ressoando em ecos pelas ruas, repetindo as mesmas coisas que já tinha gritado milhares de vezes ao logo de anos.
Assim, com a vida passando lenta, como uma cidadezinha qualquer vista por Carlos Drummond de Andrade, é que Germano Almeida tira o véu de mistérios de sua ilha.