“Não existe almoço grátis”, diz uma expressão popular entre os americanos. O ditado se refere ao fato de que, de alguma forma, acabamos tendo que pagar por algo que nos oferecem sob a chancela do gratuito. Em Free: o futuro dos preços, o editor-chefe da prestigiada Wired Magazine e autor do livro A cauda longa, Chris Anderson, contraria o senso comum. Na economia digital, diz o jornalista, algumas coisas podem realmente ser grátis e, por mais paradoxal que seja, gerar lucro. Mostrar como isso acontece é o objetivo do novo livro de Anderson.
Os negócios na internet são baseados em um conjunto de estratégias que envolvem, hoje, um modelo híbrido de distribuição gratuita e cobrança por bens e serviços especializados. O que diferencia a economia digital da “real” é que boa parte do conteúdo da web é compartilhado sem envolver qualquer tipo de relação monetária, em sites como o Wikipedia, o YouTube, o Facebook e o Google.
O serviço de busca Google, aliás, é o que poderíamos chamar de paradigma dos negócios on-line. A empresa é uma das mais lucrativas dos Estados Unidos. E conseguiu isso sem cobrar um centavo sequer pela organização do conteúdo digital da rede e pela maioria dos serviços e ferramentas que oferece, como o Google Maps, o Google Docs (documentos) e o Picasa (fotos). Os ganhos vêm, basicamente, de links patrocinados. Além disso, a cada vez busca que fazemos, ajudamos o algoritmo da empresa, o PageRank, a melhorar esse serviço. Todos nós, de certa forma, também trabalhamos para o Google. E fazemos isso de graça.
Free mostra que esse tipo de negócio tornou-se possível graças ao barateamento contínuo de três componentes tecnológicos: processamento de dados, arquivamento e largura de banda. A cada ano, a melhoria destas tecnologias permite também a redução gradual de custos, tanto de produção quanto de distribuição que, ao final do processo, tende a ser $ 0, ou quase isso.
Deste modo, qualquer coisa que seja cobrada para ser distribuída na forma de um produto físico — uma revista, por exemplo — pode ser disponibilizada na web sem ônus algum para o produtor e, conseqüentemente, para o público.
Tal é o sentido econômico da Era da Informação: de commodity escassa, passou a ser abundante. Com uma maior oferta de informação, o que se tornou escasso foi a atenção das pessoas e, por isso mesmo, item valorizado. É fácil entender. Até bem pouco tempo atrás, o acesso à informação consistia em ler um jornal pela manhã, ouvir um rádio no carro e, à noite, assistir a um telejornal. As pessoas tinham mais tempo para dedicar-se a outras coisas. Hoje, qualquer adolescente sabe o quanto seu tempo é curto. Como o fluxo de informações é muito maior e a atenção humana ainda é a mesma, os jovens parecem fazer tudo ao mesmo tempo: conversam ao celular enquanto falam num comunicador instantâneo, baixam um vídeo, jogam game e escutam música.
O segredo, segundo Anderson, é que a informação abundante pode, e deve, ser gratuita, mas é possível ganhar com o que ainda é escasso, como serviços que poupem tempo do usuário para encontrar um arquivo ou uma informação privilegiada e de qualidade superior. Se você tem tempo, e habilidade, para procurar uma música em um site de torrent, pode obtê-la de graça. Mas se você tem pouco tempo e algum dinheiro, pode comprar a mesma música pelo iTunes. Com a vantagem de ter mais segurança e qualidade no arquivo baixado.
Grande parte de Free é dedicado a expor argumentos de que essa é a melhor maneira de competir com o grátis. Juntando-se a ele. A pior seria negar ou tentar competir por meio de ações judiciais, como a indústria fonográfica européia fez recentemente com os garotos do “The Pirate Bay”.
Pirataria
O mercado da música e os meios de comunicação são os melhores exemplos de como essa mudança rumo à economia do Grátis vem mudando hábitos de consumo e relações comerciais e financeiras.
A passagem do capitalismo industrial para a economia informacional, desmaterializada, ou, como diz o autor, dos átomos para os bits, foi fatal para a indústria da música. Com a queda na venda de CDs, artistas foram obrigados a desenvolverem novas estratégias de vendas, oferecendo faixas e mesmo álbuns inteiros para download gratuito, de modo a aumentar seu número de fãs e faturar com shows e produtos licenciados.
Neste novo ambiente, a pirataria — o “grátis imposto” — funciona mais como marketing para os artistas, substituindo os ganhos antes garantidos pela restrição dos direitos autorais. Por isso, mercados emergentes com altos índices de informalidade, como o Brasil e China, são verdadeiros laboratórios de experimentos para o Grátis. É o que explica o sucesso da paraense Banda Calypso, comentada por Anderson. O grupo distribui os CDs por meio de camelôs pelos estados do Norte e Nordeste, para depois lucrar com os shows em turnês da banda.
E, ao mesmo tempo em que fica difícil (impossível, melhor dizendo) comercializar a música nos moldes tradicionais, abre-se um novo mercado para a venda de música para aparelhos celulares, os ringbacks. De novo, o pago aos poucos fica restrito a um setor segmentado, convivendo com o Grátis.
O segundo setor que sofreu impactos do Grátis na internet foram os meios de comunicação, sobretudo os impressos — jornais e revistas — nos Estados Unidos e na Europa, com recuos na circulação e queda no número de anunciantes. Afinal, por que pagar por informação quando ela pode ser conseguida de graça na internet? Segundo Anderson, neste ramo de atividade, “depois de experimentos on-line pedindo às pessoas para pagarem pelo conteúdo, ficou claro para quase todo mundo que lutar contra a economia digital não funcionaria e o Grátis saiu vitorioso”.
Mas não é bem assim. Jornais ainda tentam buscar soluções para manter a qualidade e os empregos em formas alternativas de financiamento, uma vez que a publicidade on-line ainda não gera receita suficiente. Enquanto isso, a maioria adotou um meio termo entre o conteúdo liberado do The New York Times e o conteúdo pago do The Wall Street Journal, como alguns dos principais jornais e revistas brasileiras, disponibilizando cotas de matérias on-line e cobrando assinaturas para acesso a todo conteúdo.
Longe de vencer a batalha, o Grátis é apenas uma das partes de modelo híbrido de negócios que, como veremos, o próprio Anderson é obrigado a admitir em Free, apesar de seu discurso declaradamente otimista e tendencioso de guru na cibercultura.
Modelos de grátis
Para Anderson, existem duas noções de grátis. O grátis do século 20 era, basicamente, uma ferramenta de marketing. A idéia, chamada subsídios cruzados indiretos, consiste em dar uma coisa de graça para criar uma demanda e vender outro produto, condicionado ao primeiro. Um dos pioneiros no uso dessa estratégia foi o inventor King Gillette (1855-1932), que distribuía aparelhos de barbear a preços muito baixos e faturava com a venda de lâminas.
Atualmente, empresas de aparelhos celulares, por exemplo, empregam o mesmo artifício, dando aparelhos para lucrarem com contas mensais. É a chamada “isca” para atrair consumidores. É daí que vem também a expressão “não existe almoço grátis”. No final do século 19, alguns bares dos Estados Unidos serviam almoço grátis para clientes que comprassem pelo menos uma bebida. Faziam isso com o objetivo de aumentar o número de freqüentadores e ganhar dinheiro com a venda de bebida alcoólica.
Outro modelo de grátis do século passado é o chamado mercado de três participantes, que vigora até hoje no ramo da comunicação. Rádios e tevês abertas não cobram pela programação e ganham na venda de espaço publicitário. Os veículos são, portanto, uma maneira dos anunciantes chegarem até o consumidor — o que as empresas de mídia vendem, na verdade, é a atenção do público para firmas que querem anunciar seus produtos. Jornais e revistas também faturam com publicidade, além de assinaturas e venda direta.
Já o Grátis do século 21 (Anderson usa o “g” maiúsculo para diferenciar do antigo) é diferente. Algumas coisas são efetivamente dadas de graça.
O tipo mais comum de Grátis no mercado da internet é o chamado freemium, por meio do qual um produto é oferecido em duas versões: uma gratuita e outra paga e diferenciada. O freemium inclui desde softwares gratuitos que comercializam versões mais completas, com mais funções, até o próprio livro de Anderson, distribuído de graça em versão PDF (em inglês). O mercado de games é outro exemplo comum de uso do freemium.
Mas a internet também possui economias não monetizadas, em que as pessoas compartilham bens sem qualquer perspectiva de pagamento por isso. Pelo menos sem esperar o retorno em dinheiro. É um negócio movido por atenção e reputação.
“O Facebook e o MySpace têm ‘amigos’. O eBay tem classificados de vendedores e compradores. O Twitter tem ‘seguidores’, o Slashdot tem o ‘carma’ e assim por diante. Em cada caso, as pessoas podem acumular capital de reputação e transformá-lo em atenção. Cabe a cada um descobrir como converter isso em dinheiro, se for desejado.” O problema, como qualquer blogueiro bem sabe, é que o caminho da capitalização é muito mais árduo no terreno na web. Por esta razão, para a maioria das pessoas que escrevem em blogs e wikis ou compartilham conhecimento técnico em sites e fóruns, o único retorno esperado é a atenção do público e a conseqüente reputação.
Ponto fraco
Nem tudo, porém, são vantagens em se tratando do Grátis. Além do argumento econômico, Anderson expõe o argumento psicológico, que é a sedução que as coisas gratuitas exercem sobre as pessoas, algo que os publicitários do século passado já sabiam. O autor cita um experimento com chocolates relatado por Dan Ariely no livro Previsivelmente irracional. A pesquisa envolvia a escolha entre duas marcas de chocolates por um grupo de voluntários: uma de boa e outra de qualidade mediana, por preços diferentes. Na primeira rodada, os grupos preferiram a guloseima de melhor qualidade, mesmo que ela custasse alguns centavos a mais. Na segunda parte do experimento, os produtos tiveram a mesma porcentagem de redução, só que, com isso, o chocolate mais popular passou a custar $ 0. O resultado? Os voluntários preferiram o chocolate servido de graça.
Por outro lado, diz Anderson, nem sempre dar uma coisa de graça é vantajoso, principalmente quando antes era vendido. Para o ser humano, algo de graça pode significar algo sem valor ou de valor menor que o mesmo produto pago.
Esse é o trade-off do Grátis: o Grátis é a melhor forma de maximizar o alcance de algum produto ou serviço, mas, se não for isso o que você está tentando fazer, pode ter efeitos contraproducentes. Como qualquer outra ferramenta poderosa, o Grátis deve ser utilizado com cautela, pois pode provocar mais danos do que benefícios.
Mesmo assim, o que prevalece em Free é uma versão auto-ajuda sobre o futuro gratuito da economia. É esse também o problema do livro. A primeira tese — de que é possível e mais inteligente lucrar com o Grátis do que tentar impedir seu avanço — é bem fundamentada, apesar de pouco inovadora para os nativos da cibercultura. Já a segunda tese, de que o Grátis nos tornará ricos e irá dominar a economia do futuro, é apenas um chute. Diz o guru: “As pessoas que compreendem o novo Grátis dominarão os mercados de amanhã e abalarão os mercados de hoje — na verdade, elas já estão fazendo isso”.
Existe um descompasso entre dois extremos representados, de um lado, pelo bilionário Google, e de outro, pelo YouTube, que pertence à mesma empresa mas que não gera um centavo de lucro. E Anderson é honesto o suficiente para admitir que a economia digital, hoje, é uma mistura de Pago com Grátis (mais honesto do que foi ao plagiar a Wikipedia em trechos de Free). Em resumo, o oráculo não funciona tão bem para descrever algo que ainda está em movimento. Fica parecendo mais uma idéia à venda pelos marketeiros da Era Digital.