Uma história de sorte

"O galo de ouro", de Juan Rulfo, esconde em enredo simples uma reflexão consistente sobre a ambição e a incerteza do destino
Juan Rulfo, autor de O galo de ouro
30/03/2020

Em 2020 completam-se 40 anos da publicação de O galo de ouro, do mexicano Juan Rulfo (1917-1986). Embora não tenha alcançado o mesmo sucesso de seu livro mais famoso, Pedro Páramo (1955), a obra nos ajuda a conhecer a pluralidade desse autor que circulou entre literatura, cinema e fotografia. No Brasil, o livro ganhou uma nova edição pela José Olympio em 2018, com tradução de Eric Nepomuceno — e a capa, de Leonardo Iaccarino, foi finalista do prêmio Jabuti.

O galo de ouro é uma história originalmente criada para o cinema, nos anos 1950, lançada em 1964 com direção de Roberto Gavaldón. A publicação como romance (ou conto, conforme definem alguns críticos) aconteceu apenas em 1980, quando os textos foram finalmente apresentados a uma editora.

A sinopse original para o filme, recuperada pela Fundação Juan Rulfo, está no livro, que reúne ainda textos de grandes estudiosos da produção de Rulfo: há análises de José Carlos González Boixo, Douglas J. Weatherford, e Dylan Brennan, que escreveu sobre A fórmula secreta — texto de Juan Rulfo para o cinema, também publicado nessa edição. O conteúdo complementar permite uma interpretação mais ampla do que Rulfo representa para a literatura e cinema do século 20. Estão ali trechos de entrevistas e textos que revelam pensamentos do autor, fatos históricos, informações essenciais para uma leitura contextualizada.

É difícil não se confundir entre os relatos das edições e reedições do texto de O galo de ouro — isso porque os originais se perderam e Rulfo concordou sem muito entusiasmo à época com a publicação em formato de livro (embora ele mesmo definisse o texto como romance). Fica claro que há um debate acerca da classificação de O galo de ouro entre cinema e literatura. Mas, de modo geral, os estudiosos concordam que identifica-se sim uma estrutura literária.

Enredo
Dionisio Pinzón é o protagonista desse enredo aparentemente despretensioso. Vive em um povoado mexicano e trabalha, inicialmente, como pregoeiro, já que uma deficiência no braço o impede de exercer outros ofícios naquele contexto do meio rural. A descrição de sua rotina pacata e simples no povoado logo desperta nossa empatia, mas Pinzón enfrenta alguns pontos de virada em seu destino e se transforma. Um deles é a mudança de profissão. Quando começa a trabalhar como locutor de rinhas de galo, Dionisio vai parar num ambiente controlado pela ambição, com um “código” próprio, que o protagonista compreende aos poucos e se envolve cada vez mais.

Numa dessas rinhas, ele ganha um galo bastante fragilizado e conta com a ajuda da mãe para curar o animal. Mas aí está outro ponto determinante para o rapaz — sua mãe morre logo após a recuperação do galo. Triste e decepcionado, Dionisio vai embora do povoado para tentar construir uma vida nova. A imagem do enterro da mãe é apenas uma das passagens valiosas do livro, com todo o simbolismo permitido ali. Na nova cidade, o protagonista conhece Bernarda, La Caponera, cantora das rinhas. Com a aproximação entre eles, Dionisio ganha uma grande parceira — nas rinhas e, posteriormente, nos jogos de baralho.

Ele olhava fixamente para ela, com humildade, enquanto Bernarda acariciava os próprios braços com suas mãos repletas de pulseiras. Enquanto olhava para ela Dionisio via que ela era bela demais para ele; que era dessas coisas que estão muito distantes para serem amadas.

Na estrutura do texto, as letras de canções cantadas por La Caponera, que interrompem a prosa vez ou outra, são um elemento folclórico importante. O casamento entre Dionisio e Bernarda, no entanto, parece acontecer por simples conveniência, para que um pudesse garantir ao outro uma vida menos solitária. Pinzón acredita que a presença da mulher lhe garante sorte nos jogos, e essa obsessão tem consequências pesadas para ela.

O galo de ouro é sobre o destino e como suas determinações nos transformam. Não trata apenas de ganhos e perdas no jogo, ciclo comum na vida de Dionisio e Bernarda, mas do que muda dentro de cada um ao longo do caminho. Há uma mudança notável nas personalidades do protagonista e La Caponera. Ele, a princípio um homem inseguro e com medo de perder, ao fim do livro está mais confiante, porém insensível e calculista. Já Bernarda perde muito da vivacidade com a rotina de jogos — mas sobre isso não cabe dar detalhes, para não entregar demais o enredo.

Impacto
Rulfo morreu há 34 anos e é reconhecido como grande referências da literatura latino-americana, mas também da produção audiovisual. Nos anos 1930, já se interessava por fotografia, e na década de 1960 trabalhava com cinema — esteve envolvido na elaboração de pelo menos oito filmes em diferentes funções, segundo contam os textos complementares do livro, até como ator secundário.

Além de O galo de ouro, há outros filmes baseados em histórias suas. A fórmula secreta foi produzido por Rúben Gámez, com forte inspiração no surrealismo, e ganhou prêmio de melhor filme no Primeiro Concurso de Cinema Experimental do México, em 1965. Esse texto está entre o roteiro e a poesia, uma construção pouco convencional que encanta pelo apelo social e sensibilidade com relação à vida no campo.

Em comum, essas produções carregam uma representação forte do ambiente rural mexicano, da cultura camponesa. Nem todas as obras tiveram o mesmo destaque que Pedro Páramo — e a construção textual de O galo de ouro não atinge a mesma complexidade daquele romance —, mas fica evidente que Rulfo deixou marcas importantes em vários aspectos.

Nos anos 2000, houve até uma telenovela de uma produtora de TV colombiana inspirada em O galo de ouro, La Caponera (a intenção era evidenciar a figura da cantora), que fez sucesso por lá e posteriormente também em países como México e Peru. O crítico José Carlos González Boixo, mesmo sem tanta conexão com a história original, esse é um dos fatos que evidenciam o impacto do livro, nas palavras dele, como “expressão de valores populares”.

Boixo destaca ainda a presença da figura materna como ponto comum entre as histórias do autor. “Outro dos temas ressaltados no romance também tem grande importância na obra anterior de Rulfo. É o tema da mãe, refúgio buscado por esses filhos desemparados que costumam ser os personagens das narrativas de Rulfo, exemplificados no personagem de Juan Preciado em Pedro Páramo”, diz. Para além disso, é possível afirmar que O galo de ouro é uma obra marcante porque mostra como Rulfo conseguiu inserir, em meio à ciranda de sorte e azar que é a vida de Dionisio e Bernarda, uma história valiosa pela conexão sensível entre o dualismo do destino, simbolismo e cultura popular.

O galo de ouro
Juan Rulfo
Trad.: Eric Nepomuceno
José Olympio
192 págs.
Juan Rulfo
Nasceu em Jalisco, no México, em 1917. Seus primeiros contos foram lançados em revistas. A publicação de Pedro Páramo (1955) lhe transformou em um dos mais importantes escritores da língua espanhola. Rulfo teve sua obra traduzida para mais de 10 idiomas, recebeu o Prêmio Nacional de Literatura do México (1970) e o Prêmio Príncipe das Astúrias (1983). Em 1991, foi criado o Prêmio Juan Rulfo, que condecora grandes nomes da literatura latino-americana. Morreu em 1986, na Cidade do México.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho