Numa entrevista à revista The Believer, Hans Keilson, então na véspera de seu centésimo aniversário, diz ao entrevistador Damion Searls que pretende viver até pelo menos os 101 anos. “Porque Leni Riefenstahl viveu até os 101, ele queria vencê-la.”
Keilson faleceu em 2011, quando completaria 102 anos de idade. Com o advento do nazismo, exilara-se na Holanda em 1936. Participou da resistência holandesa como médico, ganhou fama como psicólogo ao tratar de crianças órfãs traumatizadas pela guerra. Como ficcionista, viu seu romance A morte do inimigo (publicado pela primeira vez em 1959) figurar em listas de best-sellers nos Estados Unidos na década de 1960, para logo afundar num obscurantismo tamanho que, segundo Searls, em 2007 seu nome sequer aparecia nas todas-poderosas Wikipedia ou Amazon. Foi redescoberto em 2010. Entre nós, foram publicados Comédia em tom menor, em 2011, e A morte do inimigo, em 2012.
Sintoma de uma obsessão
Em A morte do inimigo, passado nos momentos que precederam a Segunda Guerra Mundial, Hans Keilson não se refere a nenhum dado biográfico ou histórico. Tudo que há é o “tirano”, o “inimigo” ou simplesmente “B.”. Tags como “nazismo”, “fascismo”, “judeus” não fazem parte do texto. A história se passa principalmente durante a ascensão de Hitler ao poder, mas também a cronologia é perturbada pela presença de um narrador que retrata a partir de um momento posterior à Guerra, que talvez esteja morto, e que insiste em não estar preocupado em escrever um romance, e sim em “resolver problemas muito individuais do seu destino”. Porém, o objetivo desses artifícios está longe de ser o de desestabilizar, de instalar um piso falso sob o leitor. Tampouco se trata de uma alegoria ou fábula universal sobre o fascismo. O que levou muitos críticos a chamarem Keilson de gênio é que os artifícios contribuem para despir a História de seu “H” maiúsculo e enfatizar o “destino muito particular” do personagem: o de estar apaixonado pela idéia do inimigo. A morte do inimigo é na verdade muitas coisas, dentre elas uma enorme estrutura erguida sobre uma idéia, até o ponto onde não se consegue ver mais nada além dela.
A partir de agora, Hans se referirá ao narrador-protagonista, e Keilson ao escritor de A morte do inimigo.
Os primeiros capítulos exibem características típicas de um romance de formação: narração em retrospecto, começando na infância; Hans quando criança escutando seus pais conversando “em tom apocalíptico” sobre o advento de um inimigo; descobrindo que esse é um momento-chave na sua vida, o momento que possivelmente plantou o embrião da futura obsessão que o ocupará pelo resto da vida. Não demora muito, porém, para percebermos não se tratar de um amadurecimento pessoal. À medida que os capítulos avançam, à medida que a vida pessoal de Hans é ignorada, outra coisa amadurece um pouco: a obsessão pelo inimigo, o anseio pelo nêmesis. Nesse sentido, A morte do inimigo soa como um Bildungsroman de uma idéia.
Já no começo, Keilson revela algumas predileções literárias que acabam servindo como declaração procedimental:
À parte a inexperiência em manifestar minhas idéias e sentimentos em frases inteligíveis, minha observação vincula-se a uma grande impaciência por esperar até que a imagem saia redonda. O detalhe, sobre o qual é preciso ter ágil domínio, me entusiasma, a pista do corredor de curta distância é minha trilha.
No mesmo parágrafo em que revela seu procedimento, Keilson rejeita outro: o processo de germinação de sua obsessão por B., o inimigo:
Quanto ao mais, detesto o procedimento. Meu pai era fotógrafo. O romance ou o conto também consiste, como filme, em tomadas fotográficas isoladas e separadas da unidade temporal, que, quando reunidas, devem dar a impressão de uma ação em movimento constante no curso do tempo e, na verdade, dão mesmo. É compreensível que eu esteja farto de truques de qualquer sorte.
Esses dois parágrafos contêm duas das muitas ambivalências que formam o tecido do romance. O escritor e seus “truques” — como o pai de Hans, que manufaturava realidades via montagens fotográficas — são rejeitados em prol de uma suposta movimentação da realidade, onde as coisas germinariam e nasceriam espontaneamente, sendo o trabalho do escritor apenas o de criar as condições necessárias. Hans detesta os conceitos, não passam de “sarcófagos”. Técnicas de colagem e justaposição, vitais para a arte do século 20, entediam-no. Porém, as coisas se complicam, e a ingenuidade de validar um truque e rejeitar outro logo se revela um dado importante. Num engenhoso jogo de espelhos, o procedimento de partir de uma imagem, um acontecimento ou uma situação para desenvolvê-las em cenas complexas e “orgânicas” acaba sendo o mesmo que põe em funcionamento o mecanismo valorativo de sua obsessão, que por conseguinte desvaloriza o fanatismo violento, populista, que começa a aflorar na Alemanha como “inautêntico”, instintivo, não reflexivo.
É natural, se considerarmos que o que importa a Hans é o desvelar de uma imagem em algo animado e complexo, que ele seja atraído pelo detalhe, pelo banal. Assim nos é apresentada uma mulher cujo marido não ouve muito bem: “Miúda e delicada, de cabelo escuro, era de uma solicitude extrema, como se o mundo inteiro fosse surdo”. Essa pequena linha é só enganosamente desimportante quando se pensa nas pretensões de Keilson. Pois há nesse detalhe um movimento essencial ao seu protagonista: a empatia. Uma das ambivalências do romance é precisamente o embate da empatia versus solipsismo. Descrição e caracterização em A morte do inimigo sempre implicam numa visão externa sobre o interior dos outros (muito mais do que meramente formar imagens bonitas), inclusive aqueles de pano de fundo. Inclusive os “inimigos”.
Não se trata de narração onisciente, e sim de um exemplo de empatia. Essa empatia, que chegará a níveis extremos, é o sintoma da obsessão de Hans, e a manifestação desse sintoma, o ponderar de todos os lados de uma questão. Hans é impelido a enxergar que cada um tem suas razões para agir como age — e esse é o cerne do romance —, principalmente B. Ele sabe — ou luta para saber — que se B. é inimigo seu e do seu povo, ele também é inimigo de B. Esse aparente relativismo simplista vai adquirindo, ao longo do romance, através da repetição e da teimosia do protagonista, a força contida de um núcleo atômico que nunca implode.
Demasiado humano
Para continuar sã, a mente que passa muito tempo obcecada por uma única emoção acaba dando um “zoom out”, um passo epistemológico para trás, e a emoção passa a funcionar como idéia fixa. É desse ato de distanciamento que é gerada a voz que narra A morte do inimigo. Hans nunca é acometido por nada parecido com um acesso de ódio, nunca perde o controle. O que há, na verdade, é o emaranhado de oposições, paradoxos, racionalizações, aporias que é a mente de alguém procurando um ponto de fuga na enormidade de uma idéia. É desse ponto que Hans parte para reconstruir de memória o amadurecimento da sua obsessão, é daí que nascem suas preocupações com o exercício da escrita, e com a lâmina dupla que é o tema do nêmesis.
Da mesma maneira que B. lança uma sombra sobre a vida de Hans, a ficção de Keilson lança uma sombra sobre a História. O procedimento de tratar uma identidade cultural como estigma, de não nomear o tirano, de esperar que a imagem se desenvolva e revele suas possibilidades internas — com isso, Keilson está reduzindo a História a seu movimento, a sua ação autogeradora.
Ao passear pelos andaimes da História, ao tratar o tirano — a fissura condicional da História — como inimigo e ao desestabilizar a oposição amigo versus inimigo através de um processo de empatia, Hans transforma a guerra numa questão pessoal. Pois para ele, o tirano é o flagelo divino, um inimigo que lhe é pessoalmente destinado, assim como ele deve estar, portanto, destinado a B. Todos odeiam B., querem destruí-lo, e sobre esse ódio fundam uma comunidade informal, da qual Hans hesita em fazer parte porque está obcecado pelo que há de “demasiado humano” em B.
A guerra como questão pessoal é uma atitude que desfunda a coletividade. É a atitude de quem abandona o jogo porque suas regras tomaram proporções irreais, tiveram seus limites expandidos além da conta. “Tinha chegado tão longe que já estava envolvido num lado da luta antes mesmo de ter tido oportunidade de indagar por que a gente se bate, quem é o inimigo, por que ele o é e qual o sentido dessa luta.”
Aos olhos de Hans, a natureza de seu ódio por B. é diferente do ódio estreitamente direcionado, projetado pelos seus amigos “estigmatizados” sobre B. Hans odeia, mas acredita que o ódio é só outra forma de projeção, que não tem nada a ver com o instinto que os outros “estigmatizados” utilizam como justificativa para odiar B. Mas nem mesmo a consciência de si o impede de abandonar sua obsessão. (O fato de Hans perceber essa discrepância é mais importante do que os meandros psicológicos do ódio em si, pois A morte do inimigo é também um romance sobre ética, sobre escolhas individuais, apesar de se demorar em psicologismos que são comparáveis às projeções que os personagens de Dostoiévski fazem uns sobre os outros.)
Ainda assim, a atitude de abandonar o tabuleiro está longe de ser uma certeza, e costuma aparecer em A morte do inimigo em termos mais humanos:
“Quer dizer que você ama a vida”, repete meu interlocutor, pensativo e irônico, “mesmo no seu inimigo. Pois eu tenho a impressão de que a ama mais nele do que em si mesmo”.
“Por quê?”
“Do contrário, você se defenderia mais.”
“Defender-me, o que significa isso, defender-me?”, retruco com amargura. “Significa afirmar uma agressão e, quem sabe, ainda por cima incentivá-la. Significa aceitar o grito de guerra e perpetuar a inimizade. Não é essa minha intenção.”
Encenação e realidade
O título de outro romance de Keilson, Comédia em tom menor, é como o narrador de A morte do inimigo caracteriza o episódio em que seus amigos encenam um grupo de judeus feridos numa enfermaria. Hans é chamado para fotografá-la. Ele questiona seu papel no plano — agora está na mesma posição que o pai quando teve que realizar uma montagem fotográfica na qual três bichinhos de estimação que não se deixavam posar juntos deveriam aparecer na mesma foto. Hans, criança, deplorara a atitude do pai. “Truques!” É o mesmo tom que rege essa cena repleta de judeus tentando colocar gessos e esparadrapos convincentemente, cobertos de suco de framboesa.
O que está em jogo é a questão da autoridade de se apresentar esses truques como reais, mesmo que os propósitos sejam os melhores possíveis (talvez a mesma dúvida das reservas de Hans em relação ao romance). E mesmo que seja só uma “versão da verdade”, já que a cena “está prestes a acontecer” por toda a Europa, Hans hesita. Qual a diferença, afinal, entre encenação e realidade quando seus efeitos — a foto publicada em jornais anti-nazistas — são os mesmos?
A resposta está na câmera com que Hans enquadra o pequeno vaudeville tragicômico. É ela que colocará a moldura, o carimbo do real. Pois o que parece sempre atrair a atenção de Keilson são os procedimentos de falsificação. O interior da câmara escura.
Sem máscaras
Através da voz estática de um alto falante, Hans ouve pela primeira vez um discurso de B. Na cena, Keilson mostra, simultaneamente, uma conjuração, um manual de como fazê-lo, e uma espiadela na câmara escura do próprio Hans. Peço desculpas pelo longo parágrafo de paráfrases e citações a seguir.
B. quebra o suspense de sua chegada ao auditório com uma voz “como se viesse de um túmulo, grave, escura, um tanto sinistra. Correu-me um frio na espinha. Uma voz assim, a gente ouvia com os cinco sentidos”. Em seguida, Keilson descreve os efeitos do discurso em Hans: “Será que [B.] teve um dia ruim? Fiquei ligeiramente decepcionado, algo desconcertado”. A fala mansa de B. “serviu para manter outra coisa sob controle, para ocultá-la, e, ao mesmo tempo, prepará-la (…) Aos poucos, a voz foi se livrando daquela contenção, subiu de tom, passou a mostrar muito mais variação e nuance. Sonora, desprendeu-se do aparelho no refeitório, como se alguém estivesse falando ali mesmo, bem perto”. Em seguida, o ataque: “Proclamou algumas verdades, verdades de natureza genérica, com as quais qualquer um, querendo ou não, era forçado a concordar”. Então, a conjuração: “Embora lá não houvesse ninguém que proclamasse outra verdade ou pusesse em dúvida a que acabara de ser proposta, ele agia como se esse ninguém existisse de fato e estivesse escondido em algum lugar do salão”. Seguem-se mais verdades, um pouco mais complicadas, reflexivas, corajosas. “Uma vez, deu a impressão de polemizar com o tal ninguém. Alçando-o a seu inimigo, iniciou uma contenda perante os olhos da platéia…” “Por que não há de existir uma pessoa com essa aparência e que profira essas palavras?… conseguia encantar os ouvintes mesmo quando fingia dar a palavra ao oponente.” B. termina com um assassinato: “O outro já não tinha quem lhe desse a mão. O pobre coitado que nunca existiu foi morto pela voz e, já que ficava em silêncio, todos pensaram que estava mesmo morto”.
Através, diga-se, da pragmaticidade e ingenuidade com que Hans narra (e sofre) os efeitos da fala de B., após o discurso, tudo o que sobra do tirano é sua retórica. Nas mãos de um escritor menor, isso poderia ser uma mera denúncia: todo fanatismo é fruto de uma retórica elaborada. O toque especial de Keilson, no entanto, é outro, mais comum ao campo da ficção imaginativa. “Nenhum amante havia de falar mais afeiçoadamente que B. no objeto do seu amor, mesmo quando me amaldiçoava. Eu sempre lhe fazia companhia.”
“Que idéia esquisita era aquela que me angustiava? A de ser ele tão inseguro e trôpego quanto eu e, dominado pelo medo de ser um desconhecido para si próprio, desafiar seu inimigo, a mim, e pintá-lo na parede como faziam os pintores antigos, que tanto se afobavam para criar seus ícones quando fustigados pelos demônios. Eu não passava de uma careta, de uma máscara, que B., na sua aflição, tinha plasmado.”
O tal “ninguém” materializado pela voz de B. serve como carapuça para Hans, confuso como se enxergasse a si mesmo refletido num espelho negro. Para Hans, B. é incapaz de se olhar no espelho sem a máscara do rosto de Hans, o inimigo do inimigo. O brilhantismo de Keilson é que o mesmo “truque de montagem” utilizado pelo inimigo para confeccionar sua máscara dentro da câmara escura do auditório é operado na mente de Hans para confeccionar a sua própria máscara com o rosto de B., a qual Hans usará sempre na presença de amigos — uma máscara com o rosto desesperado de B., digno de compaixão, livre de máscaras.
Segundo J. M. Coetzee num antigo ensaio sobre a responsabilidade do escritor frente à inacessível câmara escura do torturador, a tarefa do ficcionista é a de adentrar imaginativamente na câmara de tortura e evocar um outro cenário, cujo funcionamento interno dependeria exclusivamente das regras do escritor. Continuando a metáfora da câmara escura, o que para Coetzee significa reverter as regras do tirano para destituí-lo da sua posição de poder, para Keilson significa operar segundo essas regras, até sua inevitável exaustão. Tudo que Hans faz ao longo do romance é perceber na sua própria obsessão a mesmíssima imagem da obsessão de seu inimigo. Então, o que parece importar para Keilson é a pergunta: o que significa se livrar da máscara? Hans Keilson, em suas próprias palavras, corrobora esse pensamento numa entrevista, e sugere o que acontece quando a idéia atinge seu limite e se torna insustentável: “Hitler se matou! Goebbels se matou e matou os filhos! Isso eram os nazistas. E eu escrevi essa história. O perseguidor é ele próprio perseguido”. Não é a toa que Keilson só pôde terminar seu romance depois da guerra, depois da morte do tirano, “morto num canto qualquer”.
Um novo caminho
O que impede A morte do inimigo de ser “sobre” as conseqüências do fanatismo é precisamente a intensidade da força imaginativa de Keilson (que também impede que o romance seja “sobre” qualquer outra coisa). Munido de alfinetes, o resenhista tenta fixar idéias — empatia, solipsismo, ambivalências, História, nazismo. Mas, no final, tudo que sobra é intensidade da execução, o meio em que as idéias circulam — a narrativa os rastros vaporosos e incolores dessas idéias.
Narrativa é também a forma como o psicólogo Hans Keilson vê o conceito de trauma. Diagnosticado em crianças órfãs no pós-guerra, ele viu o trauma como “eventos múltiplos relacionados que vão junto historicamente [como uma história], manifestados psicologicamente”. Não é minha intenção sugerir que A morte do inimigo é a dramatização de um trauma, apenas que o trauma é uma história que contamos a nós mesmos, vezes sem fim, e da qual não nos livramos facilmente. Com esse abrandamento indevido de um conceito, e sem se distanciar muito do tirano no núcleo do romance, A morte do inimigo acaba sendo um desconforto, uma pedra no sapato. Lê-lo é adentrar em zonas de incerteza, reorganizar os pressupostos, bater a cabeça contra o muro. É possível argumentar que esse é sempre o propósito da ficção. Mas no caso específico de A morte do inimigo, em sua afronta direta contra preto-no-branco, pelo indiscutível, o que estávamos lendo o tempo todo é na verdade um gesto contra a morte, uma maneira de viver sem que a fonte frágil dessa vida se torne insustentável. Diante de épocas que demandam a escolha entre dois caminhos, entre duas idéias, com ferramentas imaginárias um terceiro caminho é aberto — o caminho complicado, chato, inconveniente, chão para uma vida inteira de questionamentos, para uma vida inesgotável.
NOTA
O título deste ensaio é uma frase reapropriada e (para fins de clareza) levemente modificada de um ensaio de Damion Searls publicado na revista The Believer, em setembro de 2010.