Uma fuga kafkiana da Europa

Autor de obra imprescindível, Otto Maria Carpeaux viveu a crise de valores do século 20 e os obstáculos da imigração
Otto Maria Carpeaux por Ramon Muniz
01/05/2013

“Kauka… Como é o nome? Kauka! Muito prazer.”[1] Este diálogo um tanto esquisito deu-se em Berlim, no Romanisches Café, durante uma reunião de literatos. Como muitos intelectuais austríacos da época, Otto Maria Carpeaux — então Otto Karpfen — fez, em 1921, uma peregrinação até Berlim para conhecer em primeira mão a vanguarda alemã. Nas mesas vizinhas estavam sentados Franz Werfel, Alexander Döblin e Arnold Zweig, rodeando uma belíssima atriz com fama de Messalina. Mas o mais importante de todos os presentes seria aquele rapaz franzino, magro, pálido e taciturno, cuja voz anunciava tuberculose da laringe — Franz Kafka.

Em 1926, Otto Karpfen voltou à capital alemã e visitou a editora Die Brücke (A Ponte), que lhe devia dinheiro por uns trabalhos de leitorado. Num canto se amontoavam uns livros invendíveis e, ao lado deles, o diretor em crise de desespero. A empresa estava à beira da falência. O livro culpado pela situação era O processo, de Franz Kafka. Picado pela curiosidade, Otto Karpfen pegou um exemplar que viria a ser seu fiel companheiro de exílio. A primeira edição de O processo viajaria com ele de Viena até ao Rio de Janeiro, e hoje se encontra no depósito de livros raros da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.

Em 1930, Carpeaux e Kafka tiveram mais um encontro — simbólico, desta vez — em Praga. Otto Maria saltou do trem e fez escala na capital tcheca. Deu uma voltinha pela cidade até dar com a Karlsbrücke, a Ponte de São Carlos. Em cima da colina avistou o Hradschin, o antigo Palácio Real, muito perto e, no entanto, parecendo inacessível nas alturas: “Reconheci o Castelo de Kafka. Subi. Entrei, ao lado do castelo, na catedral gótica de São Vito, escura e vazia: e reconheci a igreja na qual o condenado, em O processo, ouve a voz da Lei […]. Foi este meu terceiro encontro com Franz Kafka. Tinha-o reconhecido como filho de sua cidade de Praga”.[2]

Otto Maria Carpeaux (Otto Karpfen) tinha nascido a 9 de março de 1900 em Viena, Áustria, filho de uma família judaica cosmopolita, empobrecida pela inflação. Dotado de um talento universal, estudou filosofia em Viena, matemática em Leipzig, sociologia em Paris, literatura comparada em Nápoles e ciências políticas em Berlim. Finalmente, em 1925, concluiu os estudos com um doutorado em química. Devido a uma crise de consciência, converteu-se ao catolicismo por volta de 1930, militou na imprensa católica em defesa dos laços privilegiados entre sua pátria e a Igreja de Roma e combateu as veleidades anexionistas da Alemanha, o Anschluss. A conversão e o compromisso com o corporativismo católico facilitaram os contatos com a hierarquia católica, mas não o salvaram da perseguição nazista.

A entrada das tropas alemãs em Viena, na fatídica data de 14 de março de 1938, não só obrigará o intelectual vienense a fugir da Europa, mas o levará a uma espécie de nova conversão. Ao passo que o jovem Carpeaux, integrista e católico, tinha defendido no seu livro Caminhos para Roma (Wege nach Rom) a religião católica como uma totalidade, no Brasil pós-1940 Otto Maria se debruçará sobre os escritores que encarnam a crise destes valores: Franz Kafka, Claude Mauriac e Graham Greene. Ao se mudar de filósofo católico para crítico literário, Otto Maria passa por um processo de secularização. Profundamente magoado pelo alinhamento da Itália fascista com o Reich alemão, o intelectual vienense deixará para trás as certezas antigas, sua cosmovisão austríaca, católica e barroca para viver a crise destes valores na literatura e nas artes.

Daí o deslumbramento perante as obras do Aleijadinho e a relação conflituosa com Franz Kafka. Até a morte, Carpeaux preservará a primeira edição de O processo como uma relíquia da cultura européia destruída pelo nazismo, último legado de um cristão-novo contemporâneo e de suas crises de consciência.[3] O Anschluss, a invasão da Áustria pelas tropas alemãs (12/03/1938), levou a uma fuga em massa de judeus austríacos. Otto Maria Carpeaux, apologista do regime de Engelbert Dollfuss (1892-1934), teve que abandonar precipitadamente a capital austríaca para evitar a prisão e os campos de extermínio. Saiu pela fronteira italiana (17/03/1938), refugiou-se primeiro na Suíça (25/03/1938) e, finalmente, na Bélgica. Fixou residência em Antuérpia, aprendeu o flamengo e começou a escrever na Gazet van Antwerpen, o jornal católico da capital do país. Carpeaux gostou muito de Antuérpia, seu patinho feio, primeira etapa no caminho do exílio: “Não a imaginei muito bela, a cidade que amei como a nenhuma outra, a cidade feia que me foi uma pátria. Folheando os simples poemas de Elskamp,[4] recordo-me sobretudo desse humilde povo curvado, desses armazéns sujos que se olham com suas órbitas cegas e simétricas, dessas gruas que estendem os braços melancólicos para o céu baço da tarde. Mas era uma pátria”.[5]

Carpeaux compara a Bélgica, sua pátria adotiva, a uma grande estação de trem, onde se cruzam os caminhos do exílio que levam da Alemanha ao Mar do Norte, de Paris à Inglaterra. No buffet da estação bebe-se cerveja, no fundo surgem casas e a torre de uma igreja gótica — numa palavra, a imagem arquetípica do bem-estar burguês, inalcançável para o apátrida, o foragido. A biblioteca pessoal do refugiado austríaco tinha ficado para trás. Otto Maria Carpeaux deixara as obras mais valiosas na casa do cônsul-geral dos Estados Unidos em Viena. Um belo dia chegou um pacote enorme — cheio de livros — que continha as jóias da sua vida de literato e O processo no meio deles.

Carpeaux e os judeus do Vaticano
“No pequeno rés-do-chão em Vichy, onde funcionava a embaixada brasileira durante a ocupação francesa, decorreu um breve e trágico episódio para mim: o embaixador Luís de Sousa Dantas […] estava a ponto de carimbar meu passaporte, quando um conselheiro, deferente e glacial, interrompeu o gesto alegando que o embaixador já não tinha o direito de carimbar passaportes em virtude de uma nova circular. Durante alguns segundos, o braço ficava pairando no ar […] Mas nada aconteceu. Não obtive o meu visto e o meu passaporte foi devolvido com um gesto de pena e desamparo.” Esta cena, descrita por Claude Lévi-Strauss nos seus Tristes trópicos, repetiu-se muitas vezes perante os olhos desesperados de emigrantes europeus, forçados a sair da Europa diante dos avanços nazistas. Seus pedidos de visto foram deferidos, ignorados ou simplesmente recusados.

Na noite de 23 de novembro de 1935, um levante comunista nos quartéis cariocas faliu lamentavelmente e levou a uma série de prisões em massa entre os opositores civis e militares do governo Vargas (1930-1945). Ao mesmo tempo, a Intentona Comunista serviu de pretexto para proclamar um estado autoritário, calcado sobre o modelo do Estado Novo do ditador português Antônio de Oliveira Salazar, e restringir, ao mesmo tempo, a imigração.

A partir de 1937, o Itamaraty emitiu uma série de disposições legais que limitavam a imigração de judeus europeus. Assim, a Circular secreta n°. 1.127 de 7 de junho de 1937 estipulava textualmente: “fica recusado visto no passaporte a toda pessoa de que se saiba […] que é de origem étnica semita”.[6] Em 1938, uma comissão especial foi encarregada de formular uma nova lei de imigração. Uma vez promulgada, esta lei (n°. 406) acabou praticamente com a autoridade do cônsul brasileiro no estrangeiro que devia submeter os pedidos de visto à Divisão de Passaportesno Rio de Janeiro, o que levou a uma redução drástica dos vistos. O imigrante sem nome nem pistolões emaranhou-se numa selva de arbitrariedades, intrigas e corrupção, a não ser que pudesse contar com o apoio de alguma organização caritativa.

Em março de 1939, o cardeal D. Eugenio Pacelli foi eleito papa e assumiu o nome de Pio XII. Pouco depois, o arcebispo de Munique, D. Michael von Faulhaber, escreveu uma carta ao novo pontífice solicitando sua ajuda para obter três mil vistos brasileiros destinados a “católicos não-arianos”, ou seja, judeus convertidos ao catolicismo.[7] Getúlio Vargas — preocupado em manter boas relações com a Igreja — acedeu ao pedido e garantiu a remessa dos três mil vistos (24/06/1939). Logo de início, a diplomacia vaticana decidiu dividi-los em duas partes: ao passo que dois mil vistos seriam destinados a judeus alemães batizados, os restantes um mil do contingente deveriam beneficiar pessoas que tinham conseguido fugir da Alemanha e da Áustria. Estes mil vistos eram autorizados diretamente pelo embaixador brasileiro junto à Santa Sé, Hildebrando Pinto Accioly (1888-1962).[8] Otto Karpfen veio a saber da iniciativa vaticana por um padre holandês — Ambros Pfiffig — e solicitou o seu visto na hora. Poucos dias antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, o cônsul-geral na Antuérpia, Otaviano Machado, carimbou os passaportes de Otto Maria e Helene Karpfen e os salvou da morte certa (25/07/1939).

A cinza do purgatório
“É só a luz interior que pode iluminar o caminho pelas trevas, para conferir um sentido moral ao purgatório dos nossos dias, para acender, na cinza do que foi, a vacilante luz duma nova esperança. Era o meu caminho também: ainda sinto na boca o travo amargo da cinza do purgatório; já devo agradecer a aurora duma vida nova.” [9]

Uma vez vencidos os obstáculos da partida, o imigrante enfrentou no Brasil uma difícil adaptação a uma sociedade e a um ambiente completamente estranhos. A primeira dificuldade era de ordem burocrática: o estrangeiro não-naturalizado era submetido a uma fiscalização minuciosa, e o seu pesadelo era perder a carteira, como relata Richard Katz[10]: “Sem esta carteira, não poderia dispor da minha conta corrente, nem alugar um apartamento; não poderia nem trabalhar, nem viajar e não sei se daria para morrer […]. A minha carteira faz parte do equipamento de todos os dias como o lenço ou o relógio de pulso; ela contém a minha fotografia, a impressão digital, a idade e a nacionalidade, os nomes dos pais, a cor da pele […] o nome do barco em que cheguei, o número do meu visto […] e outras coisas imprescindíveis”.

Além da burocracia, o grande problema era a língua portuguesa: em vários estados brasileiros não se podia falar alemão durante a guerra. E, ao passo que a elite culta brasileira era fluente em francês, poucos se tinham familiarizado com o alemão. Em 1940, Max Fischer, leitor literário da Flammarion (Paris), veio ao Rio de Janeiro e fundou a editora Améric-Edit, que lançava autores franceses exilados. Ao mesmo tempo, Georges Bernanos publicava seus livros em francês e em português, sempre no Rio de Janeiro.

Os imigrantes alemães não se beneficiavam destes favores e foram, em geral, olimpicamente ignorados. A língua portuguesa revelou-se uma barreira difícil de franquear — a maioria dos alemães e austríacos nunca aprendeu português direito, apesar de todos os esforços.[11] Otto Maria Carpeaux chegou a dominar a língua de Camões como poucos: um ano depois da chegada ao Rio de Janeiro, já começou a escrever no Correio da Manhã e, em pouco tempo, ganhou com suas crônicas um público brasileiro exigente, ávido de notícias sobre a cultura da Europa central tão familiar a Carpeaux. Um dos primeiros autores por ele apresentados foi Franz Kafka.[12]

Otto Maria Carpeaux conquistou seu lugar no jornalismo e na vida acadêmica brasileira. Ele foi o único ensaísta de língua alemã a publicar dois volumes de crônicas durante a guerra — A cinza do purgatório (1942) e Origens e fins (1943). Alguns dos mais destacados intelectuais da época — Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Álvaro Lins — obtiveram do Ministério do Interior a nacionalização antecipada do imigrante austríaco e crítico, um raro privilégio para a época (18/01/1944).

Carpeaux escreveu para um público exigente e de certa cultura literária, hoje em declínio. Ao passar da fé judaica para o catolicismo e deste para um ceticismo militante, ele faz figura de um herói dos nossos tempos viajando da certeza para a dúvida e da cultura literária dos avós para o desassossego do homem pós-moderno. Sua vida faz pensar na autobiografia de Stefan Zweig, O mundo que eu vi, exilado como ele no Brasil. Mas, ao passo que o autor de Uma partida de xadrezmorreu no paraíso, Otto Maria Carpeaux venceu esta partida e fez-se uma nova pele, uma nova cultura e uma nova identidade no Brasil.

Em 1953, oito anos após a Segunda Guerra Mundial, Carpeaux passou uns meses na Europa e voltou a Viena, com seus cafés literários, a velha universidade e a célebre Biblioteca Nacional. Ficou entusiasmado com a glória póstuma de Franz Kafka: livros de Kafka, sobre Kafka, ensaios, depoimentos, resenhas na França, Itália, Suíça, Espanha, Bélgica, Alemanha. E na Áustria? Franz Kafka não foi tcheco, porque escreveu em alemão. Não foi alemão, porque se considerava judeu. Mas ninguém é profeta em sua terra. Nos fichários da Biblioteca Nacional de Viena, não achou nada sob a letra K. O diretor da venerável instituição o olhava por cima dos óculos: Kafka? Não conheço. Como foi o nome? Finalmente, o visitante foi até Kierling, um sanatório nos arredores de Viena, onde o escritor morrera de tuberculose em 1924. Bateu à porta, repetidamente. Após muita insistência apareceu um sujeito gordo, calvo e suado, olhos hostis. Kafka? Não sei nada. A porta fechou com estrondo. Fim da romaria.

“Otto Maria Carpeaux poderia ter sido o que quisesse: cientista, professor, crítico de arte, de música ou de literatura, líder político, doutrinador”, escreveu Antonio Candido numa homenagem póstuma.[13] “Por circunstâncias da vida teve de sair do país, a Áustria, acossado pelo nazismo, e no Brasil se tornou uma espécie de polígrafo, um herói civilizador.” Carpeaux, ao rumar para o Novo Mundo, enfrentou um choque de culturas entre dois mundos — Europa e América — e dois modelos de modernização conservadora, a Áustria e o Brasil. Entre o seu compromisso com o integrismo católico no país natal e a militância política na pátria adotiva, deixou uma série inesquecível de ensaios que formaram toda uma geração de escritores e intelectuais brasileiros.

NOTAS
[1] Carpeaux, Otto Maria. “Meus encontros com Kafka” in: Reflexo e realidade: ensaios. Rio de Janeiro: Fontana, 1978, pp. 173-182.
[2] Ibidem, p. 177.
[3] Ventura, Mauro Souza. De Karpfen a Carpeaux: formação política e interpretação literária na obra do crítico austríaco-brasileiro. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, pp. 108-111.
[4] Max Elskamp (1862-1931), poeta flamengo.
[5] Carpeaux, Otto Maria. “Literatura belga” in: A Cinza do Purgatório: ensaios. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942, pp. 115-126..
[6] Carneiro, Maira Luiza Tucci. O anti-semitismo na era Vargas (1930-1945): fantasmas de uma geração. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 168.
[7] Morley, John F. “The Brazilian Visa Project” in: Vatican Diplomacy and the Jews during the Holocaust 1939-1943. New York: KTAV, 1980, pp.18-22 e Avraham Milgram. Os judeus do Vaticano: a tentativa de salvação de católicos não-arianos da Alemanha ao Brasil através do Vaticano (1939-1942). Rio de Janeiro: Imago, 1994.
[8] Zaluar, Achilles. “Um Schindler brasileiro: uma questão histórica pouco conhecida” in: Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros 2(1994) No.17, pp.15-17. Agradeço esta informação a Sérgio Paulo Rouanet.
[9] Carpeaux, Otto Maria. “Prefácio” in: A Cinza do Purgatório: ensaios. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942, pp. 9-10.
[10] Katz, Richard. Begegnungen in Rio. Erlenbach: Rentsch, 1945, pp. 228-229.
[11] Eisenberg-Bach, Susan. “French and German Writers in Exile in Brazil: Reception and Translation” in: Latin America and the Literature of Exile: a Comparative View of the 20th Century. European Refugee Writers in the New World. ed. Hans-Bernhard Moeller. Heidelberg: Winter, pp. 293-307. (Reihe Siegen; 47)
[12] Carpeaux, Otto Maria. “Franz Kafka e o mundo invisível” in: A Cinza do Purgatório: ensaios. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942, pp. 150-161.
[13] Cândido, Antônio. “Dialética apaixonada” in: Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 89-95.

História da literatura ocidental (10 vols.)
Otto Maria Carpeaux
Leya
X págs.
Otto Maria Carpeaux
Nasceu em Viena, em 1900, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1978. Ensaísta e crítico literário, é autor de Cinza do purgatório, História da literatura ocidental e Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira, entre outros.
Albert Von Brunn

Estudou românicas em Basel, Zaragoza, Lisboa e Coimbra, com doutorado em 1982 (Basel). Desde 1986, é administrador do acervo espanhol e português da Biblioteca Central de Zurique. É autor de A estranha nação de Moacyr Scliar (1990), A expedição Callado (1994), A loucura da modernidade (2005), Milton Hatoum: between the Orient and the Amazon (2012).

Rascunho