Traçar paralelos entre arte e culinária não é nenhum disparate. Ao contrário, metáforas que aproximam duas grandezas tão íntimas — afinal, ambas lidam com sensações e sentidos — podem ser bem pertinentes. Na literatura, talvez a comparação mais tosca nesse contexto tenha vindo do italiano Ermanno Cavazzoni, expoente da literatura do absurdo e o escritor preferido de Federico Fellini, para quem “escrever é como fazer polenta: você deve mexer e mexer e, depois, servir”.
(Parênteses para um episódio divertido: há alguns anos, quando Cavazzoni participou de uma das edições da Feira do Livro de Porto Alegre, este resenhista foi escalado para fazer a mediação de uma mesa-redonda em que o italiano era a grande atração, ao lado de outros dois experts em sua obra. O convite foi feito de última hora e sem dar tempo ao mediador de se inteirar minimamente do assunto. Como haveria na mesa quem o dominasse, isso não parecia a priori ser um problema. Mas eis que a platéia já se inquietava no auditório lotado quando o atraso dos dois especialistas da obra cavazzoniana se transformou na notícia preocupante de que, primeiro um e logo em seguida o outro, nenhum dos dois compareceriam. Passado o susto inicial, o jeito era improvisar. Depois da apresentação, toda ela sugada da orelha de um livro, o mediador deu a palavra ao italiano valendo-se da mais absoluta sinceridade: “não conheço a sua obra a ponto de poder discuti-la, mas você fala de polenta, e disso eu entendo”. A gargalhada foi geral, e a mesa, que tinha tudo para fracassar, acabou sendo uma das melhores daquele ano.)
Comparar livros e polentas, por mais graciosa que seja a intenção, não produz de fato metáforas elegantes. Mas se pensarmos num prato mais requintado, numa sobremesa dessas de se comer ajoelhado, a comparação deixa de ser tão extravagante. O nome de uma iguaria — e nisso os portugueses são imbatíveis com suas natas do céu e pastéis de santa clara — equivale ao título de um livro. Num caso, o simples arranjo de certas palavras chega a provocar água na boca; noutro, tem o poder quase mágico de fisgar o leitor, esse que é uma espécie de gourmand das letras.
O céu dos suicidas, romance de Ricardo Lísias recém-lançado, se presta à perfeição a metáforas culinárias, desde que estejam à altura de seu texto: uma receita elaborada com todo o requinte para agradar aos paladares mais exigentes e que não se contentam com o trivial. Começando pelo título, de uma estranheza instigante, cujo equivalente na cozinha prenunciaria um prato de sabor exótico. Explique-se: para as religiões judaico-cristãs, o castigo imposto ao suicida será arder eternamente nas profundezas do inferno, e jamais ele vagará livre, leve e solto, para todo o sempre, na paz celeste. Ricardo — o próprio Lísias, agora na condição de protagonista e narrador do romance — está convencido exatamente do contrário. A situação é tão peculiar quanto comovente: depois de abrigar por uma semana seu melhor amigo, cuja inconveniência vai aos poucos se tornando insuportável, ele acaba por expulsá-lo de sua casa. Passados alguns dias, chega a notícia de que André, o tal amigo, havia se suicidado. O remorso e a culpa, ao tomarem de assalto uma personalidade já não muito estável, desencadeiam um cataclismo psicológico. Ricardo passa a despejar sua ira incontrolável contra tudo e todos, não aceita ser contestado, imagina o que não existe, gasta energia e dinheiro correndo atrás de fantasmas, e por aí segue o baile provocado por seu infortúnio. No auge da perturbação e na base do grito, tenta convencer um padre — logo um padre! — de que o amigo suicida está no céu, o que perante a Igreja é obviamente uma heresia.
Harmonia
As proporções que pode assumir tal conflito e seus vários desmembramentos seriam mais do que suficientes à construção de um romance de peso — um manjar dos deuses, dentro do espírito da brincadeira proposta. Mas Lísias não se satisfaz com o certeiro e se arrisca a agregar outros ingredientes que, embora marcantes, vão se harmonizar muito bem com os da base da receita. O personagem Ricardo, por exemplo, apresenta-se assim na abertura do livro: “sou um especialista em coleções, mas doei os meus selos há mais de dez anos”. Eis aí um achado que rivaliza em originalidade com o do título. O gosto por colecionar raridades ou esquisitices traz intrínseca uma tendência obsessiva, que pode ocorrer em maior ou menor grau e que tem tudo a ver com a patologia do personagem. Entretanto, Ricardo deixou de colecionar há muitos anos; professor universitário formado em História, ele vive também de ministrar cursos sobre sua especialidade e de organizar coleções alheias. A situação funciona como um contracanto sutil ao conflito principal: o sentimento de culpa pelo suicídio de André leva Ricardo a se ocupar de um problema que não foi propriamente gerado por ele, mas pelo qual se sente o único e atormentado responsável.
A opção por um narrador que leva o nome do próprio autor é, mais do que uma ousadia não de todo original, algo que funciona como uma espécie de antídoto às inevitáveis confusões que sempre rodeiam as narrativas em primeira pessoa quando o personagem tem traços em comum com seu criador. Ao emprestar o nome ao protagonista, declarando assim sua intenção de confundir o leitor, Lísias provoca um efeito contrário e afasta qualquer sugestão de autobiografia, por mais autobiográfico que possa ser o relato.
O exotismo do prato não dispensa um toque oriental. Num de seus delírios obsessivos, Ricardo lembra de um tio-avô já falecido que lhe havia presenteado com uma caixa de envelopes de cartas vazios para que os selos fossem agregados à sua coleção, quando esta ainda existia. Os envelopes eram em sua maioria provenientes de Santos, cidade com a qual a família não tinha vínculos maiores nem recentes: seu porto era não mais que o da chegada ao Brasil quando, havia mais de 40 anos, vieram imigrados do Líbano. Ricardo passa a fantasiar que as misteriosas cartas do tio-avô estariam relacionadas a atividades terroristas. A cisma o leva a viajar àquele país, metendo-se em confusões hilárias quando começa a indagar abertamente a parentes distantes, e mesmo a desconhecidos, sobre as supostas relações do tio-avô com o terrorismo.
Pulo do gato
O céu dos suicidas se estrutura em capítulos curtos, que não ultrapassam o limite de pouco mais do que uma página, sem títulos ou números. A narrativa é toda fragmentada, o que reflete uma perspectiva de colecionador na percepção e narração dos fatos. A prosa é ágil, concisa, essencial. Flui com naturalidade, mas o leitor não deixa de perceber que o resultado, longe de ser algo espontâneo, decorre de muito trabalho de escrita e, principalmente, de muita reflexão.
Uma característica importante da prosa de Lísias é que ela, embora sempre contundente, nunca deixa de ser bem humorada. Nesse aspecto, chega em alguns momentos a lembrar o estilo único do norte-americano Philip Roth, que sabe combinar crueza e bom humor como poucos. Vinicius Jatobá, em recente resenha do livro publicada no jornal O Estado de S.Paulo, afirma que Lísias, embora ele ainda não saiba disso, é “um dos mais bem realizados humoristas de sua geração” e que deveria investir mais no que seria sua verdadeira vocação. É uma opinião interessante e que não deve ser menosprezada. O talento para a comédia, que o autor esbanja numa obra que pretende ser séria, é de fato um dom exclusivíssimo. Muito mais do que um simples tempero, o humor é um ingrediente valioso que pode propiciar um desejado “salto de qualidade”, como refere o crítico carioca. Noutras palavras, e usando uma expressão da moda, algo que faça a diferença.
Tal conclusão talvez possa explicar também por que um livro tão bem urdido e bem escrito, sem defeitos ou vícios aparentes, de leitura fácil e andamento preciso, original em sua concepção, emocionante em muitas passagens e que não decepciona em nenhum aspecto o leitor, não chega exatamente a empolgar. Tem tudo para ser uma grande obra, e está de fato muitos degraus acima da média da produção literária brasileira contemporânea, só lhe falta o toque de gênio — aquela folhinha de sálvia que um cozinheiro de escol acrescentaria no último minuto para despertar no prato o sabor adormecido de um queijo fino.
Com seu novo romance, Ricardo Lísias demonstra já ter a sálvia guardada na manga e com ela vai dar o pulo do gato que irá levá-lo até onde só os grandes chegam — e permanecem.