Uma estrada que leva a lugar nenhum

Resenha do livro "Uma sombra logo serás", de Osvaldo Soriano
Osvaldo Soriano, autor de “Uma sombra logo serás”
01/02/2002

Para falar sobre o livro Uma sombra logo serás, do argentino Osvaldo Soriano (1943-1997), é preciso dizer que a diferença entre a tragédia e a comédia, na prática, é tão tênue, que não seria exagero dizer que elas são uma coisa só. Entre rir e chorar, é uma questão de ponto de vista.

Afinal, seria muito engraçado pensar em um sujeito que foi banido ainda bebê pelo próprio pai, um cara assustado com a possibilidade — revelada por um oráculo (vejam vocês! quem acredita nessas coisas?) — de futuramente ser morto pelo filho. Bem, o sujeito cresce longe da terra que ignora ser o seu torrão natal. Um dia, andando por aí, encontra alguém que, por um motivo ou por outro, acaba matando. Mais tarde, descobrirá que se trata de seu próprio pai. Antes disso, o sujeito se envolve em muitas outras peripécias, como livrar uma cidade de um monstro através de um jogo de charadinhas — que a menor das crianças saberia resolver —, casar com a rainha — que não imagina ser sua mãe — e investigar a morte do pai — da qual ele mesmo, o investigador, foi o causador, nos tempos em que andava por aí. Essa comédia de erros, na verdade é a maior de todas as tragédias já escritas para teatro: Édipo Rei, do grego Sófocles.

Para dar o exemplo do outro gênero, nada melhor que um filme de Carlitos. É uma comédia, mas todos sabem que, inevitavelmente, ele acabará sozinho, provavelmente triste, com fome e com um buquê de flores murchas em suas mãos.

Classicamente, a tragédia pode ser resumida a um determinado personagem, o herói, servindo de joguete às mãos do destino, impotente contra as agruras que a vida lhe arremessa de tal maneira que ele não tem como escapar. A comédia, por sua vez, nos evidencia a falta de virtude de seus personagens e serve, assim dizendo, de exemplo ao contrário.

Na prática, na tragédia, nos angustiamos e choramos e, na comédia, nos regozijamos e rimos. Na tragédia os personagens são uns heróis virtuosos que, vítimas do destino, se dão mal de qualquer jeito — e as lemos e as assistimos para nos convencermos de que não precisamos ser tão virtuosos — e na comédia os personagens são um bando de idiotas que também se dão mal e, eventualmente, se dão bem. Essa categoria lemos e assistimos para que pensemos que, afinal de contas, não somos tão idiotas assim.

Não cabe classificar, portanto, Uma sombra logo serás em uma ou em outra categoria, pois nele encontramos tudo ao mesmo tempo.

Como cenário, nesse livro escrito em 1990, Soriano apresenta uma Argentina desolada, um lugar onde as estradas ligam vilas praticamente desabitadas povoadas de perdedores. Se uma delas é tomada como fuga, inevitavelmente ou se retorna de onde saiu ou se encontra outra cidadezinha cheia de losers. A impressão que se tem é que houve uma guerra nuclear e o país se tornou uma terra desolada. Convém, no entanto, evitar qualquer facilidade de se falar na crise argentina e outras patacoadas.

O personagem central já é desenhado na primeira frase: “Nunca tinha me acontecido de andar sem um tostão no bolso. Não podia comprar nada e já não tinha mais nada para vender”. Como se pode ver, um camarada que era bem de vida, mas que se deu mal. E que já no segundo capítulo, ao tentar tomar banho escondido em um posto de gasolina, encontra o dono de um circo falido que insiste em falar palavrinhas italianas para fingir a nacionalidade. O farsante foge sem pagar a gasolina e, de quebra, lhe dá uma carona. Infelizmente, o nosso herói — que durante o livro inteiro não terá nome ou uma descrição física, apenas moral — esquece a cueca e, a seguir, faz meditações sobre as conseqüências que buscar ou não buscar a peça terá sobre sua vida. Engraçado, né?

Queria ver se fosse com você. Esse herói, por sinal, perambula por aí. Não tem um objetivo que não seja matar a fome, encontrar um lugar para dormir e tomar banho e matar, de alguma forma, a saudade da filha.

Além do italiano farsante, ele ainda vai encontrar em sua viagem uma cartomante que usa as cartas inclusive para lembrar se já tinha visto ou não uma pessoa. Dado momento, ela as usa para dizer que já conhecia o personagem, que ele tinha ido até o quarto dela, bebido demais, sendo expulso. É excesso dizer que nada disso aconteceu.

Quem garante a estadia do herói em diversos destes hoteizinhos vagabundos de beira de estrada é um banqueiro falido e traído que vive de trapacear em cassinos pulgueiros. Ele depende dos conhecimentos em matemática do personagem para vencer definitivamente nas roletas.

Há ainda o funcionário do automóvel clube, em greve, que vigia o pátio e, colocando a todos sob a mira de sua arma, não permite que ninguém passe sem se identificar. Também se recusa a abastecer o carro de quem quer que seja. Tudo bem, há um truque para ligar a bomba de graça.

Sem falar no outro que perambula pelos campos enrolado em uma mangueira usada para dar banho nos peões em troca de algumas moedas. Ou no padre que vai de fazenda em fazenda fazendo exorcismos, arrancando o dinheiro dos fazendeiros.

O principal no livro de Soriano é descobri-lo como um mestre do insólito. As situações por ele criadas podem causar pena ou riso, dependendo do estado de espírito. Como o momento em que se encontra uma orquestra inteira tocando no meio da desolação, próxima ao ônibus que a leva, os instrumentos afundando na lama e, ao fundo, as nuvens cinzas. Nesse sentido, Soriano é um pintor de poucas pinceladas. Não que fossem necessárias muitas, afinal qualquer um que já tenha viajado já viu estradas, mato, pastos, cidadezinhas ridículas e talvez tenha até encontrado personagens similares. Isto é, todas essas coisas de que ele fala em Uma sombra logo serás por incrível que pareça são verossímeis, por mais loucas que sejam. São como cenas de um filme de David Lynch. O melhor exemplo que me ocorre é Twin Peaks, quando o xerife e o investigador do FBI entram em uma sala e há uma cabeça de alce sobre a mesa. Eles a olham com estranheza e alguém lhes explica que ela teria caído da parede. Os dois continuam a conversar normalmente, mas ninguém pode negar que aquela cabeça de alce em primeiro plano é muito esquisita — um misto de motivo de riso com motivo de choro. Em outro momento, os dois conversam e, dessa vez, a mesa está tomada por dezenas de donuts. Tudo muito normal. E tanto é assim que, no livro, a única coisa com que o personagem se espanta é, depois de tantas aventuras, ele ter tido mais relacionamentos do que durante toda a sua estada na Europa.

Uma sombra logo serás traz essa espécie de sensação quando se olha um pôr-de-sol em uma terra distante de nossa casa, em algum lugar de onde não se sabe se será possível voltar ou de onde a volta será muito longa e custosa, algo como uma melancolia de lágrimas secas ou um sorriso discreto — desses que se ri por dentro, mais com os olhos que com a boca.

O tempo todo a história se passa às margens de estradas. Quem sabe essa estrada seja exatamente a divisão entre a tragédia e a comédia de que antes se falava, percorrida por esse personagem sem nome, sem cara, sem corpo e que, se fosse necessário descrever, talvez a figura que melhor dele se aproximasse seria um Carlitos, marido de alguma Jocasta desaparecida.

Uma sombra logo serás
Osvaldo Soriano
Relume Dumará
199 págs.
Alessandro Martins

É jornalista e blogueiro. Edita vários blogs de cultura. Um deles é o Livro e Afins: http://livroseafins.com.

Rascunho