Há livros de viagem, há livros sobre viagens, há livros de viajantes contando suas viagens (que, salvo exceções, são de um narcisismo extremo), e há livros de viajantes que usam sua experiência para recriar a própria história e, na recriação, inventar outras. O despojamento já é um bom sinal. No caso de Mauro Pinheiro, uma virtude. Ele saiu do Brasil em 1978, por motivos políticos, com 21 anos. Morou no Iraque, em Londres e na França. Nesses lugares, algumas vezes clandestino, trabalhou como intérprete, criou cabras e foi operário numa fábrica de perfumes.
Seria muito fácil para ele contar a própria história. Felizmente, resolveu partir de sua vida para mostrar retratos de um povo comum como nós, presente em todas as estradas e bares desse enorme Brasil, e que muitas vezes passam desapercebidos dos olhos da mídia, da imprensa, dos holofotes e de outros pedestais de publicidade.
O livro de estréia de Pinheiro é Cemitério de Navios (Rocco, 1993, 160 págs.). Pinheiro conta ali duas histórias, duas vidas que de semelhante têm um encontro em um lugar já distante na história, e principalmente a vida na estrada. E essa vida é um vício. Quem já experimentou colocar a mochila nas costas, ir até a saída da cidade, apontar o polegar para onde a estrada indica e deixar-se levar sabe como é essa cachaça. Há um mistério e um fascínio na vida itinerante que poucos sabem explicar, quiçá os ciganos, que vivem um pouco cá, outro acolá. E o vício é tão grande que, depois de um tempo, a viagem torna-se o objetivo em si, não o meio que nos levará de um lugar a outro.
Esse perigo leva muitos a se perderem. Um dos que se perderam na estrada da vida é Ivo, um dos protagonistas de Cemitério… O canto de sereia que atrai Ivo para alhures, lugares onde nunca esteve e aos quais provavelmente nunca retornará, não é irresistível para todos. Sua atração se exerce mais fortemente em quem deixou algo importante para trás algum dia e vive a eterna angústia de voltar a buscá-lo.
A trama não fala apenas de Ivo, mas também do personagem principal do livro, que, ao receber a notícia da morte de Ivo, fica desconfiado da carta endereçada de Teresina (PI), com um atestado de óbito de Fortaleza (CE). Partindo da premissa que seu antigo amigo poderia estar vivo, lá vai ele em sua busca, deixando para trás a mulher e os filhos.
A história de Ivo é um retrato 3×4 da vida na estrada. Casado e com filho, ele sai de seu Rio de Janeiro natal para procurar um emprego melhor em uma auto-estrada em construção. Nesse lugar, Ivo se apaixona por uma moça. Diante da impossibilidade do amor, por incompatibilidade de origens sociais, ele cai na estrada. Essa não era a primeira vez que ele fugia de um amor declarado impossível.
A partir desse ponto, Pinheiro vai mostrando os passos que o personagem principal vai traçando em busca do destino de Ivo, para saber se ele realmente está morto ou não. O próprio protagonista tem dúvidas se sua viagem vale a pena ou não, se Ivo, mesmo vivo, já não estaria morto em vida, por diversas razões. O objetivo de encontrar as respostas para suas perguntas, no entanto, é maior do que suas dúvidas e as dificuldades da viagem, pois ele não tem dinheiro. Vende o carro para conseguir algum dinheiro e, dessa forma, prossegue a trancos e barrancos.
Ao longo da viagem, Pinheiro vai descrevendo os insólitos encontros a que estão sujeitos os viajantes. A cada parada, praticamente, Pinheiro faz um retrato 3×4 das pessoas que atravessam o caminho de Ivo e de seu perseguidor. Brasileiros, cada um com um destino que parece normal, e que no entanto é transformado em romance. Na verdade, não são todas as vidas possíveis de virarem romance? Se olharmos bem, em cada uma delas há uma tragédia ou uma comédia escondida, esperando um escritor para transformá-la em livro.
Ivo e seu perseguidor, no entanto, têm uma diferença básica. Ivo é o viajante sem rumo, cujo único objetivo é seguir adiante até onde não der mais, caminhar até o ponto do não-retorno. Ele busca o destino último com seus atos, e não pretende voltar onde esteve. Já o detetive em seu encalço tem o objetivo de encontrar ou descobrir o que aconteceu com seu comparsa. Todo o tempo, ele vai se lembrando das pessoas que vão ficando para trás, sendo que algumas delas poderão significar a necessidade do retorno.
O roteiro de viagem de Pinheiro inclui o Brasil além das margens das rodovias, que já não são tão belas assim. São hotéis pardieiros e pulguentos, são bares de copos de geléia para cerveja, café, pinga e conhaque, e nada mais chique que isso, são restaurantes onde se come de olhos fechados, para que a comida não provoque náuseas, são puteiros onde as prostitutas se aproveitam da solidão que assola todos os viajantes.
Muitos dos encontros sexuais que acontecem com o protagonista parecem despidos de desejo, como se fossem meras lombadas da estrada que ele deve ultrapassar. Mas no fundo, ele se sente atraído, algumas vezes quase apaixonado por uma ou outra pessoa e situação, que mostram a diferença da viagem que um faz e o outro fez.
O segundo e recente romance de Pinheiro é Concerto para Corda e Pescoço (Rocco, 128 págs.). Entre um e outro também publicou os contos de Aquidauana (Rocco). O ponto de encontro de pessoas tão díspares dessa vez é um boteco: o bar do português Hermínio, no Rio de Janeiro de nossos dias. Não que a viagem tenha deixado o imaginário de Pinheiro. O próprio bar acaba sendo uma estrada. Há aqueles que por ali passam e sabem que é apenas uma ponte entre dois lugares, ou dois momentos (trabalho/casa, solidão/companhia, sóbrio/ébrio). Para alguns, porém, é o objetivo em si.
Além do bar, pode-se dizer que Concerto… é um livro sobre escritores. Mais uma vez, o protagonista principal de Pinheiro não tem nome. Ele é um escritor inédito, alcoólatra, que já teve uma mulher e um filho (que o deixaram por causa do álcool e de traições etílicas), e que termina de escrever seu único livro, Ramadã em Schaerbeek (distrito de Bruxelas, capital belga), mais para provar a Hélène, sua ex-mulher, que era capaz disso.
No entanto, terminada a obra, não sabe o que fazer com ela. Ele teme que qualquer coisa que seja feita com Ramadã possa alterar seu significado, que até o momento só existe para ele. O escritor, nesse caso, é como um pai. Ele cria uma obra como quem cria um filho. E a comparação não é exagerada, nem indevida. Cada palavra deitada sobre o papel tem um significado emocional, forte, que é único ao escritor, e que, às vezes, ele tem a impressão que só ele é capaz de entender sua obra. No entanto, depois que ele conclui a obra e a coloca no mundo, ela não mais lhe pertence.
Encontros do destino, porém, farão com que o escritor de Pinheiro perca o controle completo de sua obra, antes mesmo de existir alguma chance de ele publicá-la. Há uma série de motivos para que isso aconteça, e não vale a pena dizer aqui quais são. O livro perderia a graça. No entanto, vale lembrar que abrir mão do agora pode significar para o escritor ter em mãos o futuro.
Nosso escritor tem dois eixos geográficos, que norteiam sua vida. O primeiro é o apartamento onde mora, que pertence a George e Adélia — ele um inglês, ela uma mulata —, casal que mora na Inglaterra temporariamente. Além da casa emprestada durante a estada inglesa, deixam ao escritor Agatha, uma gata que acaba funcionando como espécie de porto seguro para ele. O segundo eixo é o bar do Hermínio, onde o escritor conhece muitos dos personagens do romance, e ponto de partida para tramas e subtramas que se desenvolvem no romance.
O escritor inédito, para sobreviver, faz traduções. Em uma ida à editora para a qual presta serviços, descobre que foi demitido, devido a uma renovação do quadro funcional. Na decepção da saída, conhece Judith, que se tornaria sua agente literária. No entanto, a proposta de Judith soa acintosa ao escritor. Ela quer que ele lhe venda Ramadã para um escritor decadente, de fama antiga, Sebastião Newton Paes, que adaptaria o romance e publicaria com um outro nome. O leitmotiv da aquisição seria uma crise de criatividade do famoso autor, que poderia ser resolvida com a “adaptação” da obra para ser publicada.
Pinheiro não dá margens para muitas elucubrações. Ele é curto e direto em sua mensagem. Por um lado, temos a tentação de sentir pena do personagem principal, já que foi abandonado pela mulher e pelo filho, não consegue emprego, não sabe qual direção tomar na vida. Por outro, vemos uma pessoa que não consegue ficar sóbria nem nos momentos mais difíceis e não usa a bebida como escapatória, mas sim como algo patológico, uma muleta para qualquer coisa. Vemos um cara que é capaz de trair a mulher por uns beijos ébrios em qualquer pé-sujo. Ou, na voz de Pinheiro, “tudo não passava de alguns beijos numa boca pastosa de cerveja que não se prolongara além daquela noite e nunca saíram daquele bar. Mas o tudo varia de pessoa para pessoa”.
Se quisermos, Pinheiro conta a história de escritores. Paes é o famoso, já estabelecido no mercado editorial, que passa por uma crise criativa, ou não. A ressalva acontece porque o protagonista lê dois romances antigos de Paes e vê neles diferenças de estilo profundas. Surge a suspeita de que Paes sempre teve como prática literária a compra de originais de outros escritores como ele, para se dar bem na literatura.
O outro escritor é o iniciante que procura um espaço no mercado. Há uma diferença, porém, entre o escritor realmente convicto de seu talento e o protagonista de Concerto... O autor de Pinheiro escreve para provar aos outros, para Hélène, que é capaz de traçar um objetivo e alcançá-lo. Já com Ramadã pronto, vem no autor a angústia de ter superado uma etapa crucial, mas que não lhe dá nenhuma outra perspectiva.
No fundo, somos todos um pouco assim. A cada objetivo conquistado, temos instantes, segundos de prazer pelo sucesso. Passada a euforia, vem um sentimento triste, depressivo, geralmente acompanhado da pergunta “o que fazer agora”? O homem é acompanhado dessa eterna angústia, de não saber direito o que estamos fazendo aqui, ou qual os motivos que nos levam a fazer o que fazemos.