Escrever é sempre dilacerar seja a alma do leitor ou o espírito do próprio autor. Rimbaud disse tudo o que tinha ainda jovem, e se calou. Flaubert e Joyce dedicaram suas vidas e suas saúdes aos seus livros. Oscar Wilde pagou o mais alto dos preços — a sua dignidade — por tudo aquilo que foi a sua literatura. Borges abraçou os labirintos para escapar do fauno. A dinamarquesa Tove Ditlevsen (1917–1976) fez da sua literatura um caderno de memórias, um diário da sua experiência pelo mundo e das impossibilidades de ser e estar na Terra.
Em Trilogia de Copenhagen — volume que reúne os livros Infância, Juventude e Dependência —, Ditlevsen desenleia uma existência simples, cheia de dificuldades e cuja única salvação era a poesia. Em toda a sua prosa, a autora compõe uma espécie de corolário para o seu próprio fim — Ditlevsen se matou por overdose de remédios para dormir —, como se os seus dias fossem grãos de areia em uma grande ampulheta. Todos os eventos — da infância pobre ao marido abusivo que a viciou em drogas — foram acumulando incoerências com uma vida feliz, com a capacidade de caminhar pelo mundo em segurança.
Na primeira parte, Infância, Tove Ditlevsen ainda vive no sonho da poesia, de conseguir escrever e se tornar conhecida. Vivendo em um bairro operário, seus pais não têm consciência da arte como libertação, ao contrário, veem nela um alheamento da realidade, uma maneira de escapar dos deveres mais prosaicos. Seria, aos olhos deles, a primeira droga de Ditlevsen. Esse é, sem dúvida, o primeiro dilaceramento da Trilogia de Copenhagen: já é possível perceber o deslocamento geracional da escritora e a sua perpétua permanência em uma espécie de não-lugar.
A relação com o irmão também não é das melhores. Tanto pela diferença de idade quanto de gêneros, eles são dois estranhos no ninho e que tentam escapar do destino que o capitalismo parece reservar para ambos. Tove consegue, claro; ele não.
E, mesmo tudo tendo se passado quase um século atrás, Tove é capaz de retratar com fidelidade e beleza o espírito dos jovens e seu desejo — sempre infrutífero — de mudar o estado das coisas. E é nesse universo que a potência da escritora se materializa: na necessidade natural de transformar tudo ao seu redor em poesia, algo que Ditlevsen compartilha com Marina Tsvetaeva, russa cuja vida foi escancarada em versos de uma perfeição avassaladora.
Tempo e espaço
Porém, é em Juventude que a vida, até então idílica em seus erros, começa a desandar. Como em O silêncio, de Bergman, as certezas de Ditlevsen começam a desabar. O sinal inicial é, por si só, uma ruptura. Ao apresentar seu namorado à família e ao conhecer a dele, Tove se vê numa jogada kafkiana: trancada em seu desejo e assustada com a realidade. Naquele momento, ainda muito jovem, ela se dá conta de que nem sempre será possível conciliar expectativa e realidade, as suas e as dos demais. Em um filme de Antonioni, seria ela a fugir.
Ao mesmo tempo, diante de todos esses enigmas, começa a experimentar o ofício do verso em uma forma plena, dedicada, entendida não apenas de como compor, mas de como transfigurar o lugar-comum — usando as palavras de Arthur Danto — para ressignificá-los adiante. Aqui, poesia e sexo ganham um espaço importante na vida de Tove, e são experiências que se materializam como funções naturais desse avanço no tempo e no espaço.
Entrementes, não é de se espantar que seja aqui também o começo da derrocada que levará Ditlevsen à bancarrota emocional. O seu realismo será o espelho de outros nomes da literatura como Patti Smith — cujos livros são enormes viagens dentro de si mesma — e Annie Ernaux — que extrapola os limites do real em uma prosa dolorosa e consoladora — e Édouard Louis — que usa a sua desgraça familiar como matéria-prima —, mas não serve de lição. Ninguém estará, ainda bem, imune aos mesmos erros, pois é deles que surgem as formas artísticas mais bonitas.
Dor e desejo
A última parte da Trilogia é Dependência, a maior descida de Tove ao Hades. Já conhecida nos círculos literários da capital da Dinamarca, Ditlevsen conhece um sujeito estranho, que logo depois será seu segundo marido e a viciará em opioides. Meio cientista, meio maluco, Karl vive enevoado em suas experiências, que chega a reproduzir com a esposa. O inferno começa com uma dor no ouvido, passando pelo uso de drogas fortes para curá-la e a suspeita de que era Karl quem provocava essa dor.
Esse é o ponto de inflexão da vida da autora. Dali em diante, da separação até às tentativas de recomeço, ela não conseguirá mais se reerguer completamente. Haverá sempre alguém a puxá-la para baixo. Esse parece ser o destino de todos os escritores que abrem esse texto, não? Um a um, todos foram caindo em desgraça. É possível que Borges, com a sua cegueira iluminada, seja o que melhor soube lidar com a sua danação. Embora, o que tenha feito o Maestro se dedicar ao conto — antes era poeta — foi um acidente: o portenho, já com dificuldades de enxergar, bateu a cabeça em uma viga e ficou internado alguns dias, onde começou a sua carreira definitiva como prosador. A escuridão definitiva foi o estopim para que a sua imaginação mitológica e sem fim fosse mais fundo.
Mas voltando a Tove Ditlevsen, a sua literatura está carregada de todos esses acidentes de existência: suas escolhas, suas percepções, seus desatinos e seu vício. À medida que envelhece, a escritora se percebe mais e mais refém de suas próprias vontades, muitas delas incontroláveis. Isso não tira a sua forma bela de ver o mundo, entretanto, vai fazendo com que definhe dia após dia.
Trilogia de Copenhagen é um livro que exige um comprometimento grande do leitor, não por qualquer falha, mas por destacar todas as experiências de uma mulher sensível e corajosa, que não esconde suas lutas e guerras mais íntimas. E pensar que, antes da Trilogia, Tove Ditlevsen havia passado ao largo do leitor brasileiro. Um verdadeiro crime. É preciso que façamos com a escritora: nos dilaceremos onde quer que