Minha vida sem banho, romance de Bernardo Ajzenberg, pinica desde a capa. A imagem de um cacto bojudo, recoberto por espinhos, causa no leitor a sensação que o acompanhará até a última página: uma coceira incessante.
Os capítulos alternam-se em três vozes facilmente diferenciadas: a de Célio Waisman, anódino funcionário de um instituto ligado à conservação de recursos hídricos; de Débora, sua ex-namorada, em viagem de trabalho, histérica e imatura; e de Marcos, advogado e amigo dos pais de Célio, mas muito mais do que isso, como se descobre aos poucos.
Célio resolve parar de tomar banho quando se depara com uma resistência queimada. É uma não-atitude transformada em Projeto, com raízes em uma família que leva Projetos muito a sério. Seu avô, Gersh, é dessa fibra de homens que conseguiram escapar de dentro da boca do nazismo, e aí refazer sua vida. Seu pai, Wilson, “não conseguia desenhar para si nenhuma meta para além do objetivo coletivo que levava o nome mágico de Revolução”. Para Célio, então, restava “ir ao encontro do essencial”. Monta um blog onde conta suas novas experiências, e se junta a um grupo chamado Falanstério, que quer mudar os hábitos do mundo — só isso! A hipocrisia do discurso politicamente correto, o uso de projetos banais na obsessão pelo reconhecimento, tudo isso é posto a nu.
Ajzenberg reserva a esse grupo pretensamente revolucionário o melhor da ironia. Enquanto Célio relata em tom contido a autoimportância que o grupo se dá, em outros capítulos Marcos, o amigo dos pais, descreve de forma paralela os grupos subversivos-light dos anos sessenta. Sem esbarrar no panfletário, em linguagem distanciada mas detalhada, o autor mostra como “operam” tais grupos, “voltados para o próprio umbigo”: as mesmas disputas acirradas por poder, os mocinhos da classe média sem objetivo na vida, as mulheres soi-disant liberadas que usam seu corpo para avançar na carreira.
Pesadelo do Holocausto
As três gerações da família de Célio se encadeiam por seus fantasmas. O avô carrega o pesadelo do Holocausto. Seu filho, Wilson, luta contra essa herança. Em uma visita saudosista ao Bom Retiro, Wilson se dá conta da semelhança entre sua resistência contra a ditadura militar e a de seu pai contra o nazismo. Essa ideia gruda em sua pele feito sarna, da qual não se livra mais.
Na esteira da culpa e paranoia, Wilson adota outro fantasma: Rogério, uma figura sinistra que entra e sai misteriosamente de sua vida em momentos extremos, como se estivesse sempre a espreitá-lo. E não é que Rogério ressurge trinta anos mais tarde, na vida de Célio, novamente como uma figura paternal e obscura? E o impressiona. Nas palavras de Célio, “dali para frente, vencer as leis da hereditariedade: mais Rogério, menos Wilson”. O tema da paternidade e a relação pai-filho perpassam todo o romance.
Marcos é vítima e algoz de uma paixão. Ao conhecer Flora, a esposa do amigo, não resiste, permite-se um affair. Anos depois, mediante o diagnóstico de um câncer, Flora, tomada pela culpa, recusa tratar-se. Entrega-se à condenação flaubertiana. “Isso da vesícula é café pequeno, Célio. Dentro de mim tem coisa muito pior, pode acreditar. Está tudo podre. E sem remédio.”
E assim o leitor vai percebendo a importância da confissão de Marcos: causou o fim do casamento do amigo, e agora o fim da luta contra a morte da amante. O filho do casal destruído não se dá conta de nada disso, o que está perfeitamente coerente com uma personagem autocentrada como nosso narrador sem banho. Na epígrafe o autor já avisa do que se trata, citando Kertész: “Por que me sinto tão perdido? Obviamente porque estou perdido”. Mas se Célio está perdido, Ajzenberg sabe muito bem aonde vai.
O autor pinica o leitor com a falta de empatia de Célio. Aí está o protagonista, poucos furos acima de um oportunista, irritado mediante o sofrimento do pai, lacônico mediante a aproximação da morte da mãe, mas satisfeitíssimo com o progresso de seu Projeto de não tomar banho. Sua grande contribuição é relatar suas experiências nessa nobre causa. À medida que passam os dias sem banho, vai ficando mais evidente a personalidade de Célio. A química corporal passa a ser uma linguagem sem subterfúgios.
Com a aprovação do blog pelo poderoso Rogério e pelo Diretor do Instituto, o autor ironiza a facilidade em manipular-se um jovem sem causa. Ninguém ali sabe exatamente o que pretendem os dois poderosos, mas desconfia-se de motivações ulteriores. E Célio, inocente útil, presta-se a ambos. Sem julgar seu personagem, Ajzenberg o coloca no centro de um tema da maior relevância, o curto-circuito entre mediocridade e vaidade, e mostra como a tecnologia pode favorecer o loser que anseia por aplauso.
A linguagem também vem a serviço da construção da personagem. A voz de Célio reflete tédio, o egocentrismo sem banho nem perfume. Tenta adivinhar o que os colegas querem dele, lista as possibilidades a, b, c, mas erra com frequência, porque não sabe decodificar os sinais sociais. É um narrador pouco confiável. Forma e conteúdo aqui se casam perfeitamente, porque Célio “pensa” como se escrevesse em um blog.
Em contraste, a voz de Marcos é mais melodiosa, ora em tons de inveja, ora de saudade, mas sempre bebendo nas marés da memória, descobrindo esse ou aquele fragmento do passado. Marcos é movido por amor a Flora, mas nutre um grande amor pelo amigo a quem traiu. Não há declarações explosivas nem reencontros cinematográficos, tudo no romance é contido, como os recursos hídricos. Mas Marcos também é o tendão de Aquiles do romance, porque seus capítulos começam com promessas grandiloquentes que nem sempre se cumprem. Um capítulo que começa com “quietude, liberdade, tranquilidade”, revela-se apenas a história de um militante espanhol que usava dentadura. Em outro, é sugerido que há uma importante razão para Wilson não ir a Paris, mas a única revelação é que foi lá que conheceu Flora. Marcos tem um objetivo durante todo o romance, mas desvia-se do percurso com frequência.
Débora, a (ex?) namorada de Célio, nada tem de contida. Presença histérica, invasiva apesar de geograficamente distante, é mais um produto dos nossos tempos. Independente, comporta-se na vida afetiva como uma adolescente mimada. Recusa-se a aceitar o fim do namoro. Usa as ferramentas tecnológicas de forma infernal para fazer-se presente na vida de Célio. Quando emails não surtem efeito, recorre à mudança de tipo de letra, telefonemas, chantagem emocional, promessas de amor e de vingança. Enquanto a mãe de Célio é uma mulher distante do filho, Débora parece assumir o papel da mãe judia, tão frequente na literatura judaica.
Débora incomoda até o leitor, feito o zumbido de um pernilongo durante o sono. A comichão chega ao insuportável. O leitor se vê torcendo para que Célio tome logo um banho e livre-se desse tormento. Mas é preciso muito mais do que uma coceira para que Célio — e o leitor — descubra qual é sua verdadeira missão no romance. Como sugere a capa, a vida é cheia de espinhos.