A época é a Segunda Guerra Mundial, qualquer coisa depois de 1941, data da malfadada invasão nazista à União Soviética, e antes de maio de 1945, quando o Exército Vermelho ocupa Berlin. Os personagens são judeus encarcerados em um dos muitos guetos criados pela Alemanha na época. O cenário é a Polônia, em um desses guetos localizados em uma cidade ao norte de Bezanika. Como? Você não sabe onde é Bezanika? Jakob Heym não tem certeza, mas já ouviu falar que é perto dali. A única coisa que ele sabe é que estão havendo combates na frente de Bezanika, e que o exército alemão foi vitorioso contra os russos. Mas pode ser o contrário, pois a rádio sempre dá as notícias de acordo com a vontade do Führer. Mas a simples notícia bastará para mudar a vida de Jakob, e de todos os seus companheiros judeus no gueto.
Em poucas linhas, esse é o enredo de Jakob, o Mentiroso (Companhia das Letras, 286 págs., tradução de José Marcos Mariani de Macedo), escrito em 1969 por Jurek Becker, e considerado um dos grandes relatos ficcionais sobre a vida dos judeus nos guetos criados pelos nazistas durante a II Grande Guerra. Com conhecimento de causa, ele próprio tendo vivido dos dois aos oito anos no gueto de Varsóvia, e posteriormente em campos de concentração em Ravensbrueck e Saxônia, Becker narra as preocupações e distrações que tinham os judeus enclausurados naqueles dias. De angústia nem se pode falar, pois a morte pairava sobre suas cabeças tão certa como o trabalho forçado e a falta de comida e de liberdade.
Jakob, o personagem central, é uma pessoa comum. Um comerciante frustrado, de poucos amigos, aliás, de nenhum amigo, que assiste à vida passar no gueto sem grandes pretensões, a não ser sobreviver. Jakob teria o perfil ideal para não ser um herói. Porém, uma bela noite (poderia se dizer que as noites em um gueto, com cercas e holofotes por todos os lados são belas?) um vigia alemão lhe prega uma peça, cujo desenrolar irá mudar a sua vida e a de toda a comunidade judaica. Jakob acaba entrando no quartel central do exército alemão de sua cidade, e ali, entre atrapalhado e amedrontado, escuta no rádio o resumo do teatro de guerra em Bezanika. O medo de estar ouvindo notícias proibidas para ele é quase tão intenso quanto a sede de notícias, que desde o início da ocupação alemã lhe eram proibidas.
No dia seguinte, ele não consegue guardar a novidade para si. Perfeitamente humano e normal. Se nem nós conseguimos segurar nossas fofocas, quem diria os judeus daquele tempo, com acesso proibido a qualquer fonte de informação, principalmente jornais e rádios durante a guerra. Mas Jakob também não consegue dizer a verdade, receando que lhe tomassem por um galhofeiro, ou pior, por mentiroso. A saída encontrada é, talvez, a pior de todas, pensará Jakob depois. Ele mente que tem um rádio escondido. Rádios que seriam motivo para um enforcamento ou fuzilamento imediato se descobertos.
O gueto não tarda a saber da novidade. Desse dia em diante, Jakob se torna uma celebridade no gueto. É a pessoa a quem todos correm para saber de novidades, para prospectar perspectivas de negócios após o fim da Guerra, para voltar a sonhar com o futuro, enfim. O futuro, algo que parecia esquecido, volta a vicejar nas mentes dos judeus cativos. Jakob dá a todos centelhas de esperança, capazes de iluminar seu futuro.
Uma mentira, porém, necessita de outras dez maiores para continuar sendo verdadeira. Seus amigos querem saber mais sobre o avanço dos russos, quando chegam, quando lhes libertarão. Afinal de contas, Jakob tem um rádio, e uma rádio que funciona. Mas Jakob não é nada brilhante, tampouco criativo, e a cada dia sofre para imaginar os avanços do Exército Vermelho, para lembrar-se das cidades ao longo da estrada de Bezanika até seu gueto e para criar situações de batalha, mentiras que alimentarão as esperanças de seus companheiros. O rádio de Jakob traz de volta propostas de casamento, projetos de vida, o gosto de viver que parecia esquecido, abandonado. Mesmo a rotina diária, feita de trabalho, repouso, fome e lembranças apenas, passa a abrigar sonhos e desejos.
Outro combate pessoal é o peso nos ombros de Jakob. Sem querer, ele se torna responsável por todo o gueto, um guia espiritual onde todos depositam sua esperança. A taxa de suicídios cai a zero, o que não havia acontecido nunca desde o início da guerra. Ele, que não queria outra responsabilidade que não Lisa, pequena órfã que convalesce sob seus cuidados. Mesmo para ela, sua principal confidente, talvez sua única amiga, a mentira se faz necessária, para protegê-la de perguntas indiscretas. Não tardará para que Jakob sinta nos ombros o peso de seu papel, e como a verdade pode ser dolorosa para determinadas pessoas.
O grande tema do livro, na verdade, é esse, a esperança. Ou então como é a vida na ausência dela. Um final até certo ponto inesperado, ou melhor, dois finais inesperados (o autor brinca conosco ao apresentar opções, ainda que se saiba uma delas ser falsa, e que opções eram o que menos havia para os judeus daquele tempo), mostram o quanto esse bem intangível pode fazer diferença na vida das pessoas. Mas há um outro tema também importante. Os companheiros de Jakob têm sede de notícias, de informação. Nem sempre as notícias são boas, quer dizer, no rádio de Jakob elas sempre o são, mas as pessoas querem saber o que acontece, e principalmente como isso afetará a vida pessoal delas. Informação que em nosso tempo abunda, e mostra que tanto a ausência como o excesso são prejudiciais.
No plano pessoal, o escritor Jurek Becker nos faz refletir sobre nosso papel na sociedade, e sobre como nossas escolhas podem influenciar a vida das pessoas, não importa quão insignificante possamos imaginar nossa existência. Ele próprio, através de sua vida, nos faz pensar sobre nossas escolhas. Becker, nascido polonês em 1937, após a final da Guerra se instala no lado oriental e comunista de Berlim. Mesmo integrante da juventude socialista a partir de 1955, Becker sempre defendeu a liberdade, principalmente a de seus companheiros artistas. Isso lhe custou a expulsão da extinta República Democrática Alemã em 1976. Instalando-se em Berlim Ocidental, Becker continua trabalhando como escritor e como roteirista para a cinema e para a televisão. Becker faleceu em 1997, aos 60 anos, de câncer.