A morte de um ser amado nos irmana no desamparo. Perder alguém traz uma dor aguda, brutal, dilacerante. Na literatura, colocar em palavras essas sensações não é novidade, sendo a morte um tema dos mais relevantes na arte de todos os tempos. Em pleno século 21, como extrair desse lugar-comum algo inédito, ou pelo menos uma perspectiva renovada? O romance Agosto, de Romina Paula, surpreende pela linguagem escolhida e pelo tom adotado para narrar um luto. Primeiro de seus escritos traduzidos no Brasil, é o segundo romance da autora, publicado em 2009 na Argentina. Nele acompanhamos o retorno da personagem Emilia à pequena Esquel, na PatagÓnia argentina, cidade em que nasceu e de onde partiu para construir a vida em Buenos Aires. Ela vive na capital com o irmão Ramiro e namora hÔ algum tempo Manuel, um de seus amigos. No dia 28 de agosto, a jovem irÔ participar do espargimento das cinzas da amiga Andrea, morta hÔ cinco anos.
O frio Ć© intenso nessa parte mais meridional da AmĆ©rica do Sul, e se faz presente no tĆtulo seco como a temperatura cortante do lugar. Esse Ć© um agosto que vai se arrastar: o frio deprime, as noites sĆ£o longas, fazendo com que o mĆŖs de inverno assinale no confuso calendĆ”rio emocional a data da despedida, em que o corpo da amiga serĆ” retirado do tĆŗmulo para cremação, vencido o prazo legal em que poderia ser exumado. Fogo e gelo, extremos que tocam a carne em igual medida: lĆ”bios partidos, pele queimada do frio, fumaƧa saindo pelas bocas, sensação de imobilidade.
Esta Ć© uma viagem de duplo movimento; um para fora de Buenos Aires e outro para dentro da mente da protagonista e narradora. Emilia Ć© uma personagem encantadora, intensa em suas contradiƧƵes e inquieta diante de certezas que duram menos de quinze minutos. āO mesmo que me atrai Ć© o que me deprime, esse Ć© o dilemaā, assinala. Quer o ex-namorado JuliĆ”n, mas tambĆ©m a vida de mulher independente na capital; tem vontade de ficar imóvel para sempre no quarto da amiga que se foi, mas precisa partir e retomar a vida. Humana, muito humana na constatação do carĆ”ter imponderĆ”vel dos desejos.
Vida familiar
Ao mesmo tempo, um rato se instala na cozinha de seu apartamento na capital argentina, despertando a sanha exterminadora na locatĆ”ria e no irmĆ£o. Seriam os roedores uma famĆlia?, indagam-se. Matar os animais e revirar a casa pelo avesso se torna uma obsessĆ£o, quase como se fosse tambĆ©m possĆvel perscrutar as entranhas da vida familiar. Mas afinal, o que seria mesmo uma famĆlia? Mais que um grupo amoroso e coeso, muitas vezes o espaƧo do dissenso e da violĆŖncia, como demonstram algumas situaƧƵes reais incorporadas ao longo do romance: assassinatos, traiƧƵes, perversƵes abundam. Em geral, com finais infelizes para as mulheres. Talvez Andrea seja uma delas.
Na pequena Esquel, por vezes a ideia de famĆlia equivale ao lugar em que uma mĆ£e desiste da dedicação esperada e abandona marido e filhos pequenos sem motivo aparente; outras, ao espaƧo em que a melhor amiga da filha morta fica como adotada em seu lugar por alguns dias. Tudo plausĆvel, nem tudo garantia de felicidade.
Que horror, que espanto, e eu escondida atrĆ”s do muro, que patĆ©tico, a história da minha vida: as pessoas formam famĆlias enquanto eu me oculto atrĆ”s de um arbusto. E pior, espio.
O trecho evidencia a funda autoironia da narradora, que a cada tanto ri de si mesma antes de gargalhar dos outros, não caindo na cilada de se levar a sério demais.
Outro grande trunfo da narrativa é essa voz que se constrói em diÔlogo com o ser ausente. Emilia fala consigo enquanto se dirige a Andrea. O uso da segunda pessoa no texto, endereçando dúvidas e confissões à amiga morta funciona muito bem como suporte para essa reflexão incessante, como na cena da despedida:
Foi por isso que, entĆ£o, me comovi para dentro, uma comoção interna, como se algo, suas cinzas, se abismassem, como se caĆssem dentro de mim tambĆ©m, como se tivessem caĆdo de costas para dentro, sem gravidade.
A comoção para dentro diz muito do romance. Um livro em torno da perda de um ser amado pode facilmente escorregar no melodrama. NĆ£o aqui. Romina Paula monta os curtos 37 capĆtulos do livro com mĆ£o segura e amplo domĆnio narrativo, de modo a retardar o momento em que o golpe vai chegar. Quando chega, nos desmonta no pequeno, no detalhe, no que fere a carne. Porque a saudade nĆ£o Ć© grandiloquente, nĆ£o atinge tom maior. Ela se faz presente nos objetos que ficam pelo caminho, na jaqueta da amiga que agora muda de corpo, no adesivo mal colado em cima da mesa de estudos, nos CDs e filmes antigos que contam histórias de outro tempo, na antiga passagem de Ć“nibus encontrada no bolso da roupa. Um tempo que nunca termina de acontecer, como o próprio funcionamento das lembranƧas, que se movimentam de forma aleatória, Ć s vezes mais em função de uma cena de Caindo na real (um dos filmes dos anos 1990 citados ao longo do livro) do que na solenidade oficial de um Ć”lbum de fotos.
Oralidade
O recurso do tom confessional atravessa essa viagem de luto, dando a ver a presenƧa da oralidade do texto, que acompanha de perto a intimidade da personagem. Sequer saberemos a causa real da morte de Andrea, que figura como elipse. Importa mais o como se narra do que propriamente os (poucos) acontecimentos narrados. E Ć© nesse momento que chamam a atenção as falhas na tradução, que vĆ£o de palavras nĆ£o empregadas em portuguĆŖs (dizemos fumantes e nĆ£o āfumadorā) a mĆŗltiplas escorregadas na transitividade verbal, para ficar em poucos exemplos. Um romance tĆ£o bem escrito mereceria mais cuidado na tradução e na revisĆ£o, para que o belo projeto editorial da Moinhos possa de fato propor esse diĆ”logo com a literatura de paĆses próximos, como a Argentina.
Em Agosto, Romina Paula escapa do óbvio, e sempre que parece prestes a cair na previsibilidade, dĆ” um salto e oferece a outra margem. Quem acompanha esse ziguezague pelas paragens desĆ©rticas do espaƧo patagĆ“nio tambĆ©m fica um tanto aturdido. NĆ£o Ć toa, a narradora utiliza por duas vezes a imagem do malabarismo, de um constante esforƧo para atingir um equilĆbrio precĆ”rio dentro do movimento. Esquivando-se tambĆ©m do modelo do romance de formação, que pressupƵe uma aprendizagem definitiva, Agosto enfrenta com coragem a ideia do inacabamento, da vida em processo:
Nunca vou terminar de saber exatamente o que eu quero e que talvez eu esteja me equivocando sempre, e então nem ir nem ficar, nem nada, nem estar, nem estar.
Voltar para casa é também retomar esse fio partido, lidando com as faltas e silêncios que passam a nos constituir, na lenta tarefa do amadurecimento.