🔓 Uma espécie de família

Ao abordar o luto, o romance "Agosto", da argentina Romina Paula, surpreende pela linguagem escolhida e pelo tom adotado
Romina Paula, autora de “Agosto”
01/03/2023

A morte de um ser amado nos irmana no desamparo. Perder alguém traz uma dor aguda, brutal, dilacerante. Na literatura, colocar em palavras essas sensações não é novidade, sendo a morte um tema dos mais relevantes na arte de todos os tempos. Em pleno século 21, como extrair desse lugar-comum algo inédito, ou pelo menos uma perspectiva renovada? O romance Agosto, de Romina Paula, surpreende pela linguagem escolhida e pelo tom adotado para narrar um luto. Primeiro de seus escritos traduzidos no Brasil, é o segundo romance da autora, publicado em 2009 na Argentina. Nele acompanhamos o retorno da personagem Emilia à pequena Esquel, na Patagônia argentina, cidade em que nasceu e de onde partiu para construir a vida em Buenos Aires. Ela vive na capital com o irmão Ramiro e namora há algum tempo Manuel, um de seus amigos. No dia 28 de agosto, a jovem irá participar do espargimento das cinzas da amiga Andrea, morta há cinco anos.

O frio é intenso nessa parte mais meridional da América do Sul, e se faz presente no título seco como a temperatura cortante do lugar. Esse é um agosto que vai se arrastar: o frio deprime, as noites são longas, fazendo com que o mês de inverno assinale no confuso calendário emocional a data da despedida, em que o corpo da amiga será retirado do túmulo para cremação, vencido o prazo legal em que poderia ser exumado. Fogo e gelo, extremos que tocam a carne em igual medida: lábios partidos, pele queimada do frio, fumaça saindo pelas bocas, sensação de imobilidade.

Esta é uma viagem de duplo movimento; um para fora de Buenos Aires e outro para dentro da mente da protagonista e narradora. Emilia é uma personagem encantadora, intensa em suas contradições e inquieta diante de certezas que duram menos de quinze minutos. “O mesmo que me atrai é o que me deprime, esse é o dilema”, assinala. Quer o ex-namorado Julián, mas também a vida de mulher independente na capital; tem vontade de ficar imóvel para sempre no quarto da amiga que se foi, mas precisa partir e retomar a vida. Humana, muito humana na constatação do caráter imponderável dos desejos.

Vida familiar
Ao mesmo tempo, um rato se instala na cozinha de seu apartamento na capital argentina, despertando a sanha exterminadora na locatária e no irmão. Seriam os roedores uma família?, indagam-se. Matar os animais e revirar a casa pelo avesso se torna uma obsessão, quase como se fosse também possível perscrutar as entranhas da vida familiar. Mas afinal, o que seria mesmo uma família? Mais que um grupo amoroso e coeso, muitas vezes o espaço do dissenso e da violência, como demonstram algumas situações reais incorporadas ao longo do romance: assassinatos, traições, perversões abundam. Em geral, com finais infelizes para as mulheres. Talvez Andrea seja uma delas.

Na pequena Esquel, por vezes a ideia de família equivale ao lugar em que uma mãe desiste da dedicação esperada e abandona marido e filhos pequenos sem motivo aparente; outras, ao espaço em que a melhor amiga da filha morta fica como adotada em seu lugar por alguns dias. Tudo plausível, nem tudo garantia de felicidade.

Que horror, que espanto, e eu escondida atrás do muro, que patético, a história da minha vida: as pessoas formam famílias enquanto eu me oculto atrás de um arbusto. E pior, espio.

O trecho evidencia a funda autoironia da narradora, que a cada tanto ri de si mesma antes de gargalhar dos outros, não caindo na cilada de se levar a sério demais.

Outro grande trunfo da narrativa é essa voz que se constrói em diálogo com o ser ausente. Emilia fala consigo enquanto se dirige a Andrea. O uso da segunda pessoa no texto, endereçando dúvidas e confissões à amiga morta funciona muito bem como suporte para essa reflexão incessante, como na cena da despedida:

Foi por isso que, então, me comovi para dentro, uma comoção interna, como se algo, suas cinzas, se abismassem, como se caíssem dentro de mim também, como se tivessem caído de costas para dentro, sem gravidade.

A comoção para dentro diz muito do romance. Um livro em torno da perda de um ser amado pode facilmente escorregar no melodrama. Não aqui. Romina Paula monta os curtos 37 capítulos do livro com mão segura e amplo domínio narrativo, de modo a retardar o momento em que o golpe vai chegar. Quando chega, nos desmonta no pequeno, no detalhe, no que fere a carne. Porque a saudade não é grandiloquente, não atinge tom maior. Ela se faz presente nos objetos que ficam pelo caminho, na jaqueta da amiga que agora muda de corpo, no adesivo mal colado em cima da mesa de estudos, nos CDs e filmes antigos que contam histórias de outro tempo, na antiga passagem de ônibus encontrada no bolso da roupa. Um tempo que nunca termina de acontecer, como o próprio funcionamento das lembranças, que se movimentam de forma aleatória, às vezes mais em função de uma cena de Caindo na real (um dos filmes dos anos 1990 citados ao longo do livro) do que na solenidade oficial de um álbum de fotos.

Oralidade
O recurso do tom confessional atravessa essa viagem de luto, dando a ver a presença da oralidade do texto, que acompanha de perto a intimidade da personagem. Sequer saberemos a causa real da morte de Andrea, que figura como elipse. Importa mais o como se narra do que propriamente os (poucos) acontecimentos narrados. E é nesse momento que chamam a atenção as falhas na tradução, que vão de palavras não empregadas em português (dizemos fumantes e não “fumador”) a múltiplas escorregadas na transitividade verbal, para ficar em poucos exemplos. Um romance tão bem escrito mereceria mais cuidado na tradução e na revisão, para que o belo projeto editorial da Moinhos possa de fato propor esse diálogo com a literatura de países próximos, como a Argentina.

Em Agosto, Romina Paula escapa do óbvio, e sempre que parece prestes a cair na previsibilidade, dá um salto e oferece a outra margem. Quem acompanha esse ziguezague pelas paragens desérticas do espaço patagônio também fica um tanto aturdido. Não à toa, a narradora utiliza por duas vezes a imagem do malabarismo, de um constante esforço para atingir um equilíbrio precário dentro do movimento. Esquivando-se também do modelo do romance de formação, que pressupõe uma aprendizagem definitiva, Agosto enfrenta com coragem a ideia do inacabamento, da vida em processo:

Nunca vou terminar de saber exatamente o que eu quero e que talvez eu esteja me equivocando sempre, e então nem ir nem ficar, nem nada, nem estar, nem estar.

Voltar para casa é também retomar esse fio partido, lidando com as faltas e silêncios que passam a nos constituir, na lenta tarefa do amadurecimento.

Agosto
Romina Paula
Trad.: Ellen Maria Vasconcellos
Moinhos
158 págs.
Romina Paula
Nasceu em Buenos Aires (Argentina), em 1979. Atriz, diretora, dramaturga e escritora, publicou os romances ¿Vos me querés a mí? (2005) e Acá todavia (2016), ainda não traduzidos no Brasil. Também dirigiu o filme De nuevo otra vez (2019). Agosto foi adaptado para o cinema sob o título La muerte no existe y el amor tampoco (2019), com direção de Fernando Salem.
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho