Uma cordilheira de escombros

A menina que roubava livros tem uma estrutura engenhosa, valendo-se de frases curtas e parágrafos de poucas linhas
Markus Zusak: indiscutível talento para criar metáforas e outras expressivas figuras de linguagem.
01/02/2008

Em novembro passado, num dos eventos da Feira do Livro de Porto Alegre, o jornalista Carlos André Moreira, editor de literatura do jornal Zero Hora, foi convidado a apresentar um dos maiores sucessos editoriais do ano, A menina que roubava livros, do australiano Markus Zusak. Na condição de quem assiste ao jogo de um lugar privilegiado, Moreira teceu alguns comentários dignos de serem aqui resgatados. O primeiro deles, que o romance fugiria ao padrão do best-seller de hoje, qual seja: thriller cujo ritmo frenético não propicia a reflexão mas impele o leitor a um vôo cego rumo ao final e — a cereja do bolo — tendo o Iraque ou o Afeganistão como cenário; na falta desses, qualquer outro dos eternos conflitos étnico-políticos que grassam pelo mundo envergonhando a humanidade. Se tal padrão de fato existir, para além do evidente toque de ironia, a história da pequena ladra de livros por certo não o seguirá. Comparado, por exemplo, a O caçador de pipas, do afegão Khaled Hosseini — que por vários meses liderou as listas dos mais vendidos, seguiu impávido entre os primeiros colocados e voltou novamente a liderança no Brasil por conta do lançamento do filme nele baseado —, A menina… tem um ritmo bem mais lento. O cenário agora é a Alemanha nazista, cujos horrores já foram cantados e decantados de forma exaustiva e não têm mais o mesmo apelo desses da moda. Para completar, Zusak vem se dedicando ao público infanto-juvenil, e A menina… inclusive consta há cerca de dois anos como o romance para crianças mais vendido nos Estados Unidos, segundo o The New York Times. Embora no Brasil as listas não costumem trazer essa distinção, mesclando literatura adulta com títulos claramente voltados à petizada como os da série Harry Potter ou os da rediviva O Senhor dos Anéis, tampouco A menina… tem concepção semelhante a qualquer um desses fenômenos editoriais.

Há que se considerar, sem dúvida, a imponderabilidade de alguns fatores que levam ao êxito das vendas. Mas, no presente caso, Moreira arriscou especular que a história terá talvez caído no gosto do grande público pelo que ela tenha de melodrama. Afinal, sempre renderá lágrimas (e conseqüentes lucros) a saga de uma menina pobre que assiste impotente à morte do irmão caçula, não tem condições de compreender a perseguição sofrida pelos pais comunistas, é entregue pela própria mãe à adoção, sofre na pele as agruras da guerra e os humores de uma madrasta iracunda e tem como amigo um lutador judeu que sua nova família decide salvar dos nazistas escondendo-o no porão. Assim resumida, a história de Liesel Meminger chega a evocar à da pequena judia Anne Frank, só que vista pelo outro lado — e eis aí um aspecto forte concorrente a servir de justificativa ao sucesso. O próprio autor dá uma pista: filho de pai austríaco e mãe alemã, ambos testemunhas oculares do Holocausto, Zusak interessou-se pelos estimados 10% da população alemã que à época se opunham ao regime de Hitler. Um atrativo adicional fica por conta da narradora: a morte, agora sem a sutileza da inicial maiúscula imaginada por Saramago em seu As intermitências da Morte, e talvez menos humanizada do que aquela.

Mas o que resta nas entrelinhas desse exercício de especulação: qual o motivo que faz um ótimo livro ter um desempenho de vendas igualmente excepcional, contrariando algumas expectativas mal-humoradas. E volta-se assim à antiga questão de que, pelo menos no Brasil, a crítica via de regra olha com desconfiança para os best-sellers. (Um bom exemplo está aqui mesmo, no Rascunho, onde O caçador de pipas permaneceu vários meses na lista de candidatos a merecer resenha sem que nenhum dos colaboradores se interessasse em trabalhá-lo. Já A menina… esteve à beira de um pior destino: sequer chegou a constar de tal lista, e só é tema agora por sugestão do resenhista ao editor.)

Vencida a etapa daquilo a que se poderia chamar de uma “defesa prévia”, passa-se ao que realmente importa: o livro, suas características, virtudes e eventuais defeitos.

O primeiro destaque deve ser dado à cuidadosa edição. Com capa e projeto gráfico de Mariana Newlands para a pequena editora carioca Intrínseca, o alentado volume — quase 500 páginas em papel pólen e capa que reproduz a impressionante imagem de um campo nevado com três árvores desfolhadas e negras, tendo em primeiro plano uma estrada, reduzida pela perspectiva a pouco mais de uma linha, por aonde passa uma figura em preto de capa longa portando um enigmático guarda-chuva encarnado — não faz feio entre os melhores trabalhos de casas que já têm longa tradição na qualidade de suas edições. Palmas também são devidas à competente tradução de Vera Ribeiro.

A menina… tem uma estrutura engenhosa. Com óbvio foco no público juvenil, Zusak propõe algumas soluções interessantes. Valendo-se de frases curtas, parágrafos de poucas linhas, muitas vezes formados de uma única frase, a história é narrada com base em esquemas que vão sinalizando ao leitor seu andamento. Cada uma de suas dez partes abre com um índice que, se não refere estritamente os títulos dos respectivos capítulos, antecipa seu conteúdo de forma sui generis. A página de rosto do prólogo, por exemplo, traz:

PRÓLOGO

UMA CORDILHEIRA
DE ESCOMBROS

ONDE NOSSA NARRADORA APRESENTA:

ela mesma
as cores
e a roubadora de livros

O fluxo narrativo vem entrecortado por anotações da própria indesejada em um suposto diário, e também por fragmentos de livros, além de duas histórias completas. A última das dez partes tem o sugestivo título de A menina que roubava livros, numa auto-evocação do romance que está prestes a terminar. Toda essa engenharia, ao contrário do que possa parecer, não apresenta dificuldade alguma para o leitor. De resto, a condução firme da história é outro dos grandes atrativos do livro.

Para dar voz a uma abstração, ao mesmo tempo em que procura isentá-la de uma indesejável condição humana, Zusak usa de subterfúgios ineficientes a seu propósito mas de efeito saboroso. Um deles, a relação da morte com as cores, e é justamente falando sobre ela que o romance inicia de forma enigmática:

Primeiro, as cores.
Depois, os humanos.
Em geral, é assim que vejo as coisas.
Ou, pelo menos, é o que tento.

E logo adiante:

Em algum ponto do tempo, eu me erguerei sobre você, com toda a cordialidade possível. Sua alma estará em meus braços. Haverá uma cor pousada em meu ombro. E levarei você embora gentilmente. (…)
A pergunta é: qual será a cor de tudo nesse momento em que eu chegar para buscar você? Que dirá o céu?
Pessoalmente, gosto do céu cor de chocolate. Chocolate escuro, bem escuro.

Zusak usa à larga o recurso de criar pequenos suspenses no decorrer da trama ao antecipar de forma propositadamente parcial e sugestiva algum aspecto do que vai ser adiante trabalhado, numa provocação constante à curiosidade do leitor. Alguns desses casos cumprem apenas uma função; noutros, a técnica ajuda na construção de algumas das mais belas passagens da obra. A forma soberba pela qual a história do vínculo que o pai adotivo de Liesel mantém com o lutador judeu é apresentada responde por um desses momentos. Noutros, o autor revela um indiscutível talento para criar metáforas e outras expressivas figuras de linguagem (como, por exemplo, no trecho que ilustra esta resenha, ao descrever de forma soberba uma queima de livros proibidos em praça pública). Também chama a atenção a limpidez da prosa, sem nenhuma sofisticação estilística senão a da busca da naturalidade. Zusak escreve com graça e ironia, o que já é meio caminho andado nessa imensa galeria de virtudes a serem perseguidas por quem visa à excelência. Por outro lado, o fato de a exótica narradora se dirigir às vezes livre e diretamente ao leitor causa uma divertida estranheza.

Os personagens são todos muito bem estruturados. Zusak escreve sem pressa, seguro em seu objetivo, podendo assim dar-se ao luxo de construir seu elenco de forma minuciosa e compor tipos multifacetados que, por conseqüência, acabam absolutamente verossímeis. Um bom exemplo é o do jovem corredor Rudy Steiner, misto de melhor amigo e primeiro namorado de Liesel, para quem o relacionamento, pontuado desde o início de pequenas implicâncias mútuas, torna-se um agente de transformação pessoal.

Para o fim ficou reservado o que talvez seja o mais importante: como e por que a pequena Leslie se torna uma ladra. Tudo começa com a morte do irmão, cujo enterro acontece num dia de inverno no meio da viagem que os levaria à nova família. Na desolação do cemitério, Leslie presencia quando o jovem coveiro deixa cair na neve um pequeno volume preto que trazia no bolso. Sem ter sido ainda alfabetizada, ela não resiste ao impulso de resgatar o livro e tomá-lo para si — anos mais tarde nossa protagonista vai descobrir que o objeto de seu furto não passa de um prosaico Manual do coveiro. Mas, naquele momento, é estabelecida uma poderosa relação dela com os livros, que vem a ser o grande mote do romance — e que acaba relegando a um plano perfeitamente secundário o exotismo da narradora. A partir de então, o amor às palavras passa a guiar o caminho de Leslie nessa “cordilheira de escombros” produzida pela guerra, e é o que consegue salvá-la da tragédia.

Hábil construtor de metáforas, Zusak rende assim uma tocante homenagem à literatura.

A menina que roubava livros
Markus Zusak
Trad.: Vera Ribeiro
Intrínseca
480 págs.
Eu sou o mensageiro
Markus Zusak
Trad.: Antônio E. de Moura Filho
Intrínseca
320 págs.
Markus Zusak
Nasceu e mora em Sydney (Austrália). Aos 32 anos, já publicou cinco romances, dois deles no Brasil (além do mais recente A menina que roubava livros e no rastro de seu estrondoso sucesso internacional, acaba de sair pela Intrínseca Eu sou o mensageiro). Outros títulos são The Underdog, Getting the Girl e Fighting Ruben Wolfe.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho