Domingo, antes de escrever este texto, reli alguns trechos de Pico na veia, nova obra de Dalton Trevisan, e deparei com o seguinte: “Para ele o rico pastelzinho. Para ela o cheiro de fritura no cabelo.”, fragmento número 82 do livro (há muito o escritor optou pela narrativa mínima, como se tivesse pinçado de algo maior o essencial).
Tomado subitamente por uma vontade incontrolável de comer pastel, ergui-me da cadeira e fui ao supermercado. O escritor mora no bairro Alto da Glória, a umas duas quadras do meu apartamento, na esquina de duas ruas de um certo movimento. Na que leva em direção à Reitoria — onde funciona boa parte dos cursos da Universidade Federal do Paraná — e ao supermercado, há uma ladeira bastante íngreme, para o lado em que o sol se põe, por trás do recorte dos prédios do Centro da cidade. A que corta esta se origina a umas poucas quadras dali, onde há um estádio de futebol, e vai em direção a um viaduto que conduz aos bairros periféricos, mais ou menos nobres. No fim das tardes de verão, as de domingo em especial, quando aquelas ruas costumeiramente cheias de carros encontram-se vazias, o céu avermelhado dá um ar melancólico e nostálgico a todas as coisas, como se fosse fim do mundo em Curitiba. Dali daquela esquina, Dalton Trevisan tem visto o mundo.
No entanto, conhecer Curitiba pessoalmente é desnecessário para ler a obra deste escritor, mesmo sendo tantas Curitibas as que ele nos apresenta em Pico na veia. Seria dar importância em demasia a tal província achar que a cidade é personagem imprescindível de sua obra, quando, na verdade, é Curitiba, mas poderia ser Macondo ou São Paulo ou Metrópolis. Trata-se apenas de um nome genérico — palavra subitamente desgastada — para o cenário onde os sujeitos de Trevisan agem em sua comédia melancólica.
Temos, no livro, pelo menos quatro Curitibas diferentes.
Na Curitiba “Macondo” — tomando-se emprestado o nome da localidade fictícia de Gabriel García Márquez, para melhor ilustrar o conceito de cidade universal — desenrolam-se as vidas dos personagens, que alguns dirão serem sempre os mesmos nas mesmas histórias, com as devidas variações poéticas. É um espaço mais feito pelos sujeitos que se intercalam pelas páginas, e por suas ações, do que pelas três dimensões propriamente ditas.
Na Curitiba real, há o desconforto do medo, da violência, da agitação e da transformação de uma cidade que era muito mais próxima daquela fictícia e que agora se encontra cada vez mais distante disso. Porém, também isso representa algo universal, que é a perplexidade diante do novo.
Há também a cidade em que o escritor coloca seus amigos, demonstrando suas saudades, nostalgia e o peso da sobrevivência aos seus.
A cidade institucional também está presente no livro, mas é sumariamente rejeitada, como ainda menos real que a primeira, a Curitiba-Macondo.
Da contraposição e alternância dessas cidades, que representam muito mais que mera localização geográfica ou mapeamento da ação, se faz esta obra de Dalton Trevisan.
Como por exemplo, no fragmento número 6:
“Curitiba: não o relincho de tuas estátuas eqüestres — sim a alameda escondida dos teus plátanos no Passeio Público.
Não a tua ópera do ufanismo babaca — sim os teus sinos da Igreja dos Polacos numa noite de janelas acesas no céu.
Não os portais dos teus sete monumentos ao horror — sim as tuas velhas casas de madeira com degrau, varanda, lambrequim.
Não o teu memorial ao merdoso kitsh, Curitiba — só uns poucos rostos queridos.”
Aí temos a Curitiba institucional — a Ópera de Arame, os Portais, o Memorial da Cidade — em confronto com uma Curitiba mais emocional. Afinal, o que pode o monumento em sua enormidade que serve ao ufanismo oficial e à adoração publicitária diante de um lambrequim, que não serve, em princípio, para nada. Sensibilidade, afinal de contas, não se constrói com ferro e vidro de uma hora para outra. Leva anos, o tempo necessário para se ter uns poucos rostos queridos e, afinal, perdê-los. No fragmento número 39: “Guido Viaro, uma rua barulhenta de Curitiba. Mestre Poty, uma praça Tiradentes às cinco da tarde, florida de mocinha, maníaco sexual, pombo branco em revoada. E eu, mal de mim, esse perdido beco sem saída atrás da catedral.” Deixa claro como a cidade está muito mais ligada às emoções que às coisas em si. Mesmo quando se fala em, por exemplo, revoada de pombos brancos, não se pensa apenas nos pombos, mas nos sentimentos a que eles remetem. Quando se fala em Poty, Guido Viaro — ambos artistas plásticos, amigos já mortos de Trevisan — sem dúvida, fala-se da cidade ligada à saudade. No fragmento 90: “Esses mortos, ingratos, que te esquecem tão depressa”.
Não se perde a oportunidade de execrar a publicidade como no fragmento 71: “Curitiba toda catita do primeiro mundo — com essa população de quarto mundinho?” ou, no 165: “Curitiba é uma boa cidade se você for a barata leprosa e pálida de medo.” Ainda, no 18: “Curitiba — essa grande favela do primeiro mundo”.
No 2, um dos poucos relatos longos do livro (três páginas), a narrativa em primeira pessoa de uma viciada, uma cidadã sem teto, personagens que, se já não existiam na época em que Dalton Trevisan escreveu o seu O vampiro de Curitiba, agora são mais freqüentes. A voz perfeita e o encadeamento das frases é menos fruto da criatividade do escritor que de seu ouvido absoluto e perfeito: “Só fumo sozinha. Todo mundo é muito sozinho. Pô, tem vez que fumo com o negão, no mocozinho. Daí a gente dormimo junto. Fatal.” De qualquer forma, mesmo as figuras do submundo do escritor têm se transformado. Se em obras anteriores eram as prostitutas, os velhos tarados e inócuos, o malandro de bigode fininho — figuras das quais poderia se dizer serem doces ainda que tristes ou mesmo cômicas —, agora são sombras mais maléficas, que geram menos pena, como os outros, e mais medo: “Pare na primeira esquina e conte os minutos de ser abordado por um pedinte, assediado por um vigarista e trombado por um pivete — se antes não tiver a nuca partida ao meio pela machadinha do teu Raskolnikov”. O mundo transmutou-se em crime e castigo. Mais crime que castigo e, dizem, Nelsinho se esgueira com medo dos marginais. E de dia. À noite, nem pensar, pois mesmo os autores de crimes passionais — aqueles que misturam pó de vidro na comida — são mais amenos. É a Curitiba que muda, assombra e irrita.
No que diz respeito à cidade que é feita pelas ações dos personagens, isso já é conhecido. Mas nesse livro há algumas novidades, como a presença mais clara do humor. Um humor que pende para o melancólico, mas humor. E aqui vale, pelo menos em um dos fragmentos, o 128, a observação que o contexto é tudo para uma obra. Há diferença entre um texto ser escrito por um escritor qualquer e esse mesmo texto ser obrado por outro:
“— Alô. Quem?
— …
— Não estou te ouvindo bem. Um momento. Deixa eu pôr o óculo.
— …
— Agora, sim. Pode falar.”
Se qualquer um, que não Dalton Trevisan, fosse o autor deste trecho — ainda que com cada ponto e travessão iguais —, beiraria a infâmia, pois a intenção quase que certamente seria o riso fácil, a piada. Porém, estando nas páginas de Pico na veia, ao lado de tantos outros personagens, fracassados no amor, na vida e em tudo o mais, não há lugar para o riso fácil. O que vem é quase um dar de ombros ao perceber-se que o homem nasce, cresce, envelhece e, no final, não sabe a diferença entre audição, visão e demais funções. Não se vê um Didi Mocó, mas o velho caduco e só.
Neste livro, o autor lança mão do recurso de pinçar um clima ou uma situação do cotidiano para arrematá-la em outro fragmento, páginas adiante ou, mesmo, na página seguinte, como é o caso do sujeito que trabalha no Passeio Público e é infernizado pelas araras. A seguir, ele vai chorar as pitangas para a esposa. A seqüência de três fragmentos em que se repete a estrutura “o que vão dizer minhas amigas no chá das cinco” tem uma conclusão fabulosa na terceira.
Os fracassados no amor não poderiam faltar em Pico na veia, e são eles a principal argamassa dessa cidade literária chamada Curitiba.
Amor, em Dalton Trevisan, não é o contrário do ódio, como leva o senso comum a pensar. Amor não tem contrário. Ou se tem ou não se tem. E essas figuras que povoam as páginas deste livro, e de outros, não o têm. A amada some no meio do sonho e nem no sono o amante a possui, a filha que, por carta, não consegue se comunicar com os pais, o marido que não reconhece o esforço da mulher em se arrumar para ele. Algumas vezes, a falta de amor é compensada com o sexo: embora a namorada não ame, é boa de cama.
A mãe triste a cuidar dos filhos sem poder sair, o poeta incompreendido pela esposa, o pintor que não cortou a grama, o exibicionista ignorado são outros exemplos, em tantos, do vazio de amor que existe entre os personagens de Trevisan. Mas o fragmento que melhor resume isso é, inesperada e sutilmente, o 22:
“No Passeio Público, ao longo do viveiro de aves, o menino para a mãe:
— Olha só, mãe. Aqui não tem nada. Legal, né? A gaiola tá vazia”.
Pode ser que a corruíra já tenha voado, mas também pode ser que o escritor tenha tão simplesmente e sem elocubrações retratado ou criado uma cena de extrema poesia em que uma criança, em sua inocência se encanta com o diferente, depois de ver tantas gaiolas cheias. Cada leitor escolhe o que lhe apetece. Cá comigo jogo com a história daquele que já em tenra idade se habitua à ausência. Pode ser que, a mesma criança, ao crescer seja aquele que diz: “Do amor desprezado, fiquei mudo, surdo e cego. Mudo porque não me fala. Surdo porque não me ouve. Cego porque não me vê.”, no fragmento número 51.
Ao voltar do mercado, com a massa de pastel e o queijo, já é noite caída, daquelas quentes, típicas do verão. Nas janelas dos apartamentos, a luz típica da tevê em torno da qual famílias, jovens e velhos, reúnem-se em uma busca sem esperança de aproveitar o resto do domingo que acaba, uns mais conscientes que outros de que este dia, afinal de contas, é sem esperança. Muitos já vislumbram as frustrações de segunda-feira, outros nem isso. Esses pensamentos me fazem concluir que, além de se passarem em Curitiba, as histórias, os pensamentos dos personagens de Dalton Trevisan acontecem, em sua maioria, em um interminável domingo.
Finalmente, termino a noite comendo o rico pastelzinho.
Em Dalton Trevisan, às vezes é assim. Fala-se de Curitiba e de pastéis para, na verdade, falar-se de outras tantas coisas.