Uma careta viril, engraçada e maliciosa

Com o esmero de uma escuta clandestina, Sigrid Nunez registra a intimidade de Susan Sontag
Sigrid Nunez, autora de “Sempre Susan”
01/01/2024

O reduto das intimidades processadas em literatura anda bem iluminado nas vitrines das livrarias. Na seara do relato pessoal, Sempre Susan: um olhar sobre Susan Sontag traz as lembranças que a autora Sigrid Nunez guarda do seu período de convívio com a escritora Susan Sontag. Mesmo o relato sendo breve e ligeira a leitura, não é sem desconforto que fechamos essas páginas.

Sigrid era uma jovem de 25 anos, com mestrado recém-concluído, quando aceitou o “bico” de trabalhar para Susan Sontag, então recém-saída de uma mastectomia, ajudando-a a liquidar a correspondência acumulada. Sigrid “datilografava e morava por perto”, por isso a haviam indicado a Susan. O que se desdobra entre quatro paredes, a partir dessa relação, primeiramente entre uma escritora e sua assistente, durante não mais que três ou quatro encontros, depois, entre Susan e a namorada de seu filho (Sigrid começaria a namorar David e a morar na casa de Susan), é registrado nessas breves memórias com o esmero de uma escuta clandestina.

Conversas telefônicas (literalmente), meandros psíquicos de relações familiares e amorosas, espontaneidades de ocasião, engraçadas ou virulentas (ou uma mistura de ambas), tudo o que foi captado pela observação aguçada da autora, enquanto ela frequentou a casa de Susan, vai temperando a dedo esse caldo de lembranças, que tem início na primavera novaiorquina de 1976, no número 340 da Riverside Drive. Era a época da primeira luta de Susan contra o câncer, doença que passaria a ocupá-la como motivo de estudo e escrita, época em que, nas palavras de Sigrid, “em parte graças a seus ensaios altamente conceituados e populares sobre fotografia e em parte por causa de sua franqueza sobre ter câncer, Susan surfava em uma segunda onda de celebridade”. Também época de presenças importantes em sua vida cotidiana, como a do poeta russo Joseph Brodsky, que viria a namorar Susan à mesma altura em que Sigrid começava a namorar David.

A menção de Sigrid a esses namoros paralelos é emblemática de um espelhamento praticado em seu livro também sob a forma de uma interlocução literária. Mas não custa o mínimo pudor de observar que a relação entre Sigrid e Susan não se configurava numa relação entre colegas. Pode provocar uma impressão de coleguismo, por exemplo, quando a autora se lembra de estar com Susan na St. Mark’s Place e ela apontar para “duas mulheres com aparência excêntrica, uma de meia-idade, a outra idosa, ambas vestidas como ciganas”, dizendo em tom de brincadeira: “Nós duas daqui a trinta anos”. Ou o fato de Sigrid dispor de um quarto a mais no apartamento de Susan para seu próprio escritório, ou de ser confundida com a escritora, certa feita, numa festa em Nova Orleans, por um homem embriagado.

Íntimo inevitável
Essa era uma relação confusa por natureza e circunstância, que transitava entre o íntimo inevitável da vida de Susan Sontag em sua casa e seus círculos de amigos, e leituras, reflexões, conversas que nutriam e atiçavam uma escritora principiante, por um momento ali, parte e testemunha do dia a dia no apartamento da Riverside Drive, parte e testemunha de uma vívida circulação de ideias e pessoas, rápidas refeições desleixadas, chistes e críticas misturados, recorrentes jogos psicológicos. Havia sim pequenas mágoas e pequenas desforras na dinâmica desses jogos, e isso nós acompanhamos de perto nas ambivalências do relato de Sigrid, que não se furta a revelar, por exemplo, o deboche que Susan lhe fez, um dia, na frente de várias pessoas, dizendo: “Todo mundo publica suas porcarias. Por que você não publica as suas também?”.

Há outros episódios, digamos, carinhosamente humilhantes sob o alvo da zombaria de Susan, como quando a própria compara a jovem que ela foi com Sigrid, e, na sequência, na presença da ex-companheira Maria Irene Fornés, incita: “Diga a Sigrid como eu era quando você me conheceu”, ao que Fornés responde, detonando o riso em Susan: “Ela era uma idiota”. Ou ainda o título atribuído a Sigrid dentro do trio formado juntamente com David: “o duque, a duquesa e a patinha de Riverside Drive”. Podemos estender o gosto desse humor amargo e acrescentar que, para “uma aspirante a escritora”, essas doses de provocação de sua “mentora” não seriam em vão: se não lhe serviram para matar a vocação, a puseram à prova e agora se dispõem ao uso, por armas também verbais.

Dentro do jogo que ambas parecem jogar, Susan Sontag teria se sentido “vingada” quando Sigrid não se deu bem num retiro de escritores. E “magoada” por Sigrid não acatar suas sugestões sobre um dos seus rascunhos, a ponto de ignorar todos os seus textos dali para frente. O contra-ataque vem com teor crítico-literário: embora considere Susan de fato sua mentora, Sigrid “não confiava” no que ela tinha a dizer sobre escrita, por não gostar de sua ficção nem de seu estilo, considerava-a insegura por se preocupar com cada vírgula e depender de um leitor por perto durante o processo de escrita. Além disso, a “patinha de Riverside Drive” também se divertia com David cunhando um título para Susan: “nossa enfant terrible” — a que tinha alma de eterna estudante, a que buscava aprovação e “não suportava ficar sozinha”, a que se levava demasiado a sério, nada maternal, irritável, elitista, tão suscetível à beleza que “se a pessoa fosse linda, não precisava ser nem um pouco inteligente”, a de inimigos entre os próprios amigos, descontente por não ter sido mais artista do que crítica, famosa por seus ensaios, mas frustrantemente pouco reputada por seus romances e contos.

Assim a autora vai compondo seu retrato particular de Susan Sontag, essa “sempre Susan” por David jamais tê-la chamado de mãe, essa “sempre Susan” como possível expressão de afeto, porém igualmente guardando aí o sentido irônico de um “divaísmo”. A autora joga com essas ambiguidades o tempo todo, se comenta eventualmente sobre o “privilégio enorme” de ter podido ouvir Susan e Joseph Brodsky conversando, logo em seguida lança seu juízo sobre eles e cuida de temperar seu relato com aspas de piadas inapropriadas e outras grosserias que ouviu. Sobre as grosserias de Susan com estranhos, Sigrid arremata com esta:

Eu pensava que um homem que se comportasse como ela provavelmente teria aprendido muito tempo antes, pelas mãos de outro homem, uma ou duas coisas sobre respeito.

Anedota
Toda essa costura de lembranças envolvendo nomes conhecidos do meio literário (como desforra incidental, Sigrid se dá conta, enquanto escreve, mais de trinta anos depois, de que “estão todos mortos”), toda essa trama de aspas, fora do âmbito das entrevistas, essa trama de entranhas, de falas captadas na intimidade ou ditos inéditos, sabemos que atende sempre muito bem ao gosto popular pela anedota. Sigrid ela mesma, antes de conhecer Susan Sontag, ouvia rumores sobre o que se passava na cobertura da Riverside Drive, e depois de morar lá se viu cercada de curiosos por fofocas e informações de bastidor.

Descortinar a privacidade de alguém que consideramos nosso mentor, mesmo dosando decepção e apreço, há de colaborar em suprimir distâncias, redimensionar grandezas, além de facilitar alguns espelhamentos muito humanos. Essa impressão de proximidade também atende bem a possíveis novas gerações de escritores autoconfiantes. De qualquer modo, seja qual for sua razão de ser, Sempre Susan dá à autora a credencial de ter feito parte de um período da vida de Susan Sontag, e talvez seja essa, também para alguns jovens leitores, a porta de acesso a outros livros seus (lançados no Brasil também pela Instante).

Nos diários de Susan Sontag, há uma curiosa menção a Sigrid, entre novembro e dezembro de 1976: “‘Isto não é um tema: uma sensibilidade delicada em confronto com o mundo viscoso, sem coração, frustrante. Vá arranjar um conflito para você.’ (eu para Sigrid)”. Encontramos, ainda, nos diários, a mesma “piada casual” de Joseph Brodsky que aparece nas páginas de Sempre Susan: “se você quer ser citado, não cite”. Também nas anotações de 1976, Susan registra uma definição para a escrita: “Escrever é fazer uma careta — viril, engraçada, astuta. Não desdenhosa. Maliciosa”. Pensando em Sempre Susan e na influência da escritora sobre o modo de pensar e escrever de Sigrid, essa é uma visão afinal bastante oportuna. Uma careta viril, engraçada, astuta. Sim: maliciosa.

Sempre Susan: um olhar sobre Susan Sontag
Sigrid Nunez
Trad.: Carla Fortin
Instante
128 págs.
Sigrid Nunez
Nasceu em Nova York, em 1951. Graduada em 1972, obteve mestrado na Universidade Columbia em 1975. Estreou no romance em 1995 com A feather on the breath of God e, desde então, segue publicando outros livros de ficção, como o romance The last of her kind, em 2006, e Salvation city, de 2010. Recebeu diversos prêmios literários, entre os quais o Berlin Prize, bolsa de estudos concedida pela American Academy em Berlim, em 2005. No Brasil, além de Sempre Susan, foram publicados pela Instante: O amigo (2019) e O que você está enfrentando (2021).
Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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