Uma canção de exilado

“Maíra”, primeiro romance de Darcy Ribeiro, reúne todo o imaginário que o autor aprendeu na longa convivência com os índios
Darcy Ribeiro, autor de “Maira”
01/05/2014

Darcy Ribeiro apresentava Maíra, seu primeiro romance, e segundo ele mesmo o melhor, como um livro nascido da necessidade de mirar outros mundos. Exilado no Uruguai, intelectualmente esgotado pelo trabalho de escrever O processo civilizatório, resolveu enfrentar outro desafio: reunir num romance todo o imaginário que aprendeu na longa convivência com os índios. Envolvido com outros projetos, não encontrou tempo e espaço para terminar a empreitada. Em 1969, preso no Rio de Janeiro, retomou o texto como uma maneira de manter a lucidez. Também não foi desta vez que o terminou. A terceira e última tentativa aconteceu durante um segundo exílio, agora em Lima. “Liberado pelos militares depois de nove meses de cadeia, fui aconselhado a sair ligeiro do país (…). Fui para a Venezuela, depois para o Chile e, afinal, fixei-me no Peru, para ajudar a equipe do presidente Velasco Alvarado a pensar a revolução que os peruanos estavam levando à frente com toda a força e fervor.”

Diante destes fatos é fácil pensar em Maíra como um livro que surgiu para matar a saudade do exilado. Longe da própria terra, ou preso quando nela, Darcy se aproximou do imaginário indígena para não perder de vez o laço que o prendia a uma pátria idealizada, sonhada. Anos depois, ele diria que perdeu todas as batalhas que enfrentou, mas só se sentiria derrotado se estivesse ao lado dos vencedores oficiais.

Destas utopias e lutas ele extraiu um romance alegórico em que apanha as crenças indígenas, crenças que colheu na convivência com várias etnias, e as traz para o mundo real da exploração do índio e de sua terra. Maíra é sim um romance de denúncia, bem aos modos do realismo social que marcou os romancistas da geração de 1930, mas foge com maestria dos códigos sociológicos ou antropológicos. É claro que muito se aprende aqui do modo de vida dos indígenas, mas tudo está diluído nas entrelinhas de um romance real e que se resolve muito bem como instrumento ficcional.

Aliás, já no início, o livro revela nuances policiais. Um pesquisador suíço vai à delegacia de uma cidadezinha do interior para comunicar que encontrou o corpo de uma moça branca abandonado numa praia do rio Iparanã, no Mato Grosso. Junto a ela estão os cadáveres de dois recém-nascidos. Não sabia dizer se a mulher teria morrido no parto dos gêmeos ou se teria sido assassinada. O mistério da morte de Alma, uma aspirante a missionária, se estende por toda trama que conta ainda com pelo menos mais dois bons enredos paralelos.

O primeiro deles, de cunho psicológico, segue o drama de Isaías Mairum. Desde muito pequeno, o índio foi educado por padres católicos para também se tornar padre. Estudava em um seminário em Roma quando decide voltar para a aldeia em busca de suas verdades pessoais. No caminho de volta, conhece Alma, com quem se junta para a etapa final da viagem. Esta volta coincide com a morte de Anacã, o tuxaua, ou seja, o líder da aldeia, espaço que de direito passa a pertencer a Isaías.

No segundo enredo paralelo, Juca, filho de uma índia mairum com um branco que trabalhava para o Serviço de Proteção aos Índios e pacificou os índios da região, sobrevive explorando a miséria dos caboclos. A exploração, aliás, começa com o pai dele que ganhou muito dinheiro fazendo os índios extrair o látex das seringueiras. Neste caminho segue Juca, que vende de madeira a manteiga feita com ovos de tartaruga. No momento ele estava interessado em levar os aborígenes a conseguir peles de animais silvestres. E acredita ser o tempo certo, pois com a morte de Anacã, que não o queria ver por perto, pensa poder se aproximar daqueles que ele chama de primos. No entanto, persiste a oposição à sua presença na aldeia.

Esta trama social se completa ainda com as desconfianças de Juca. Os pesquisadores suíços estão na região estudando o comportamento das formigas, mas o explorador acredita mesmo que eles conhecem os segredos das minas de algum tipo raro e valioso de minério. E põe o caboclo Quinzim para espionar os estrangeiros.

Resolvida a questão das tramas, o romance se ocupa com a descrição das tradições ritualísticas dos índios. O enterro de Anacã é descrito com minúcia, uma descrição, apesar de mórbida, recheada de elementos poéticos. Na mesma trilha segue todo o adorno lendário que enfeita a narrativa. O nascimento de Maíra, também um dos momentos de plena beleza do texto, se equilibra entre o lírico e o grotesco sem nunca perder o sentido que tem para o romance. Ao mergulhar o leitor em todas estas teias antropológicas, mais do que se colocar como ensaísta, Darcy Ribeiro nos leva a refletir sobre como os conceitos culturais profundos aproximam os homens em sua dimensão. Há nesta criação fenômenos como o dilúvio universal e o apocalipse, além de detalhes divinos, como um sopro capaz de fazer viver homens e bichos.

Trabalhar com três elementos tão próximos quanto distintos — o universo mítico dos índios, as crises de consciência dos homens e os jogos de ambição — faz de Darcy um romancista pleno. Sua linguagem também precisa se reinventar a cada momento para chegar à cor ideal para a narrativa. Neste ponto chega a se aproximar, medidas as devidas proporções, de Guimarães Rosa. Naturalmente que não descamba para uma inventividade léxica, mas vai semeando uma poética que sobrevive nos sentimentos mais puros e ingênuos. “Não somos filhos de Deus. Somos os pais do homem que há de ser”, diz Maíra ao tentar definir a si mesmo e ou seu irmão gêmeo.

Maíra, enfim, é um desses romances que atende muito bem a todos os leitores. Aos que buscam divertimento ele se oferece na trama de mistérios que cerca a morte de Alma. Para quem quer conhecimento, os debates antropológicos são bem honestos na apresentação de um mundo novo que ainda guarda seus sentimentos inaugurais. Àquele que cata denúncia social o texto se apresenta como um manifesto em defesa das nossas culturas mais profundas. No entanto é mesmo como uma canção de exílio que deve ser lido, afinal no romance se apresenta um Brasil real por suas injustiças e pela força de sua brasilidade. E este é um elixir bem eficaz para a cura da saudade.

Maíra
Darcy Ribeiro
Global
326 págs.
Darcy Ribeiro
Nasceu em 1922, em Montes Claros (MG). Formado em Ciências Sociais, em 1946, construiu uma brilhante carreira intelectual como antropólogo e etnólogo. Destacou-se como escritor, educador e político. Foi senador e membro da Academia Brasileira de Letras. Como romancista, além de Maíra, escreveu O mulo, Migo e Utopia selvagem. Morreu em 1997.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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