Uma breve história das idéias

Aproveitando o lançamento do livro Isaiah Berlin, John Gray (Difel, 224 págs.), Rascunho revisa a vida e as idéias do pensador pluralista que investigava a evolução dos “ismos”.
Isaiah Berlin
01/12/2000

Isaiah Berlin nunca foi homem de aforismos. Artista do bom papo que era, preferia explicar seu ponto-de-vista em frases enormes, compostas de muitas orações subordinadas e parênteses que abriam e pareciam se esquecer de fechar. Mas Berlin, depois da enxurrada de citações e nomes raros, sempre completava seus círculos, terminando suas idéias com clareza e pontuação firmes. Esta tentativa de condensar seus ensaios é uma amostra de seu pensamento e teorias.

Tolstói: a raposa que queria ser ouriço
O poeta Arquíloco disse uma vez que “a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe algo grande”. Interpretando o figurado: a raposa tem um conhecimento amplo, desconexo, às vezes contraditório sobre vários assuntos; o ouriço é um especialista, dedicado a um só conhecimento, a uma forma de pensar e, mais importante, a convencer os demais de que está certo. Por exemplo, Dostoievski, Nietzsche, Pascal eram ouriços; Shakespeare, Montaigne e Goethe eram raposas. Mas o admirável novelista russo Tolstói era uma raposa que queria ser ouriço. Tolstói usa o seu livro Guerra e Paz para este fim, intercalando, em vários pontos da narrativa, um ensaio ideológico sobre a história, que nada tem a ver com o argumento do romance. Artisticamente, o ensaio de Tolstói é um equívoco, pois não cabia ao enredo esse discurso, que segue uma tendência russa de destruir obras de arte ao transformá-las em sermão. Mas seu conteúdo está longe de ser um fracasso: Tolstói tenta explicar sua crença de que a inevitabilidade histórica é um erro — a história se escreve com a vontade de indivíduos. Apesar do estranho texto, seu objetivo foi claro, sua façanha também. Tolstói provou sua própria teoria ao impulsar a revolução russa com suas idéias.

Kant e a Revolução Romântica
Muitas das correntes intelectuais que creditamos ao século 20, como o existencialismo, teatro avant-garde, voluntarismo revolucionário das “condições subjetivas” (Mao, Che Guevara) tiveram início no século 18. Kant disse que “do pau torto da humanidade nunca se fez nada de reto”. Ou seja, como esperar que os ideais do racionalismo e o espírito incendiário de inspiração romântica possam, juntos, realizar utopias, quando o homem em si não serve de modelo? As utopias são quebra-cabeças onde se espera que todas as peças, cada uma com sua peculiaridade, encaixem perfeitamente para formar um conjunto harmonioso. E pior: como pode uma dessas peças decidir que tem a visão geral do quebra-cabeças ao qual pertence, e assumir a responsabilidade de montá-lo? No romantismo, duvida-se dos valores em si, o que levou ao relativismo, niilista quanto à existência de valores universais. O relativismo (“eu bebo café, você não”) não aceita a integração entre os valores, e vai contra a compreensão humana. Esse conceito do mundo sendo mudado desde o universo interior renovou a ordem mundial; a filosofia de Kant foi decisiva para a visão moderna do mundo. Assim é que se pode imaginar “Kant como fonte pouco conhecida do nacionalismo”.

Pluralismo e o fim das utopias
Desde os primórdios, o homem tende a acreditar em uma filosofia capaz de definir o comportamento do homem. O mundo é composto de idéias ambivalentes, incompatíveis entre si: sabedoria e felicidade, justiça e piedade, liberdade e eqüidade. Nenhuma é melhor ou pior que outra — são apenas representações da necessidade de um grupo de pessoas. O que cria conflitos é a crença de que uma idéia sobrepõe-se a outra, e então um grupo tenta subjugar a outro para que sua forma de ver o mundo seja única. Os relativistas, por exemplo, imaginam cada cultura como uma caixa sem janelas, completamente lacrada e independente, sem permitir que se veja as outras culturas. Estão errados. Assim como indivíduos são capazes de entender e simpatizar com as idéias de outro indivíduo, uma cultura inteira deve ter o mesmo senso de humanidade que permite que exista uma harmonia comum.

Só por meio dos conflitos entre ideais e iniqüidades, e da desesperada investida em sobreviver, a civilização avança. As tiranias modernas não se desenvolveram apesar do triunfo da razão e da ciência, mas graças a ele. A idéia de que uma sociedade justa e perfeita pudesse ser criada, e que a razão pudesse ser seu alicerce inabalável, levou à tirania comunista. Os judeus são sionistas porque existe anti-semitismo; a cultura judaica se fortalece com a presença de um valor que vai em contra. Pluralismo implica maior compromisso. O nacionalismo é, portanto, uma das conseqüências do pluralismo.

Dois pólos de liberdade
Berlin divide a liberdade em positiva e negativa. Negativa é a liberdade que consiste em ser seu próprio mestre, em formular a própria vida, ser sujeito e não objeto. A liberdade positiva consiste em não ser impedido por outros de fazer as próprias escolhas, respondida com as perguntas “Por quem sou controlado?” e “Quem é que diz o que eu posso e não posso fazer?” Liberdade tem seu próprio significado, e não depende de interpretações lingüísticas, assim como a estética e a moral. Defender a liberdade pessoal (liberdade negativa) a todo o custo é um valor utópico e otimista, mas que não harmoniza os interesses humanos, porque é por meio dela que governos fazem promessas e impõem tiranias.  Só a liberdade positiva, que é a liberdade política, permite o avanço da civilização. Deve-se buscar o equilíbrio entre o liberalismo, que preza a liberdade individual, e a unidade, que requer barreiras e implica leis.

A Madeira de Lei da Humanidade
Um dia chuvoso em Oxford, um hipocondríaco dando aula deitado, a cama coberta com farelo de biscoito e embalagens de chocolate. Seus ouvintes, um grupo de pretendentes ao prestigioso, mas já desgastado All Souls, paralisados diante do ligeiro murmúrio que seu mestre, Cavaleiro da Rainha, lhes pronuncia.

Esse murmúrio é conseqüência da idade, que degenerou seu inglês veloz e difícil de captar, de origens russas e judaicas. Aliás, foi a mistura de três culturas — inglesa, judaica e russa — que deu a Berlin a capacidade de observar o Ocidente com olhos de rapina.

Sir Isaiah Berlin era, nas palavras de Einstein, “uma espécie de espectador do grande, mas na maior parte pouco atrativo, teatro divino”. Justamente por isso, por seu dom incansável de observar e refletir sobre o mundo apoiando-se nos mecanismos da História, desejava ser imortal.

Berlin, através do século 20, ficou conhecido nos círculos intelectuais que freqüentava como um grande conversionalista. Seu majestoso intelecto era constantemente requisitado, e obscurecido por seu charme e distinção. Era um homem que impressionava não tanto por suas idéias quanto pela forma que as expunha. Tinha um talento nato para introduzir o ouvinte em sua fervorosa mente, onde ouvinte e locutor alternavam lugares. Berlin se deixava conduzir, sem condescender, aonde quer que o levassem: “Sou um táxi intelectual; as pessoas acenam e me indicam para onde querem ir, e lá vou eu”. Seu discurso iluminava o labirinto e os penhascos da humanidade; sua memória completava circuitos e selava lacunas. Extremamente modesto, reduzia sua biografia a meros “Não valho a pena, sou a pessoa mais desinteressante que conheço”. Mas suas histórias eram, em grande parte, sobre si mesmo, sendo a noite que passou com a poetisa russa Anna Akhmatova, considerada como o começo simbólico da Guerra Fria, a mais requisitada.

Poetisa na Guerra Fria
Era o inverno de 1949 e Berlin era secretário na embaixada inglesa em Moscou. Por meio de um amigo, o escritor Boris Pasternak, foi convidado a visitar a poetisa e heroína reclusa ao seu apartamento por desafiar a estabilidade stalinista com seus versos. As enigmáticas noites que Berlin passou com ela, descritas no ensaio Três Noites com Anna Akhmatova, despertou a fúria de Stalin, que encarou a visita como “uma intromissão do bloco ocidental nos assuntos pertinentes à União Soviética”. Seguiu-se um sigilo total de assuntos internos, quando vários dissidentes “antirussos” foram condenados. Não muito mais tarde se descobria uma escuta na embaixada inglesa em Moscou. Anna, em seus diários, se confessou rejeitada por Berlin, “o homem que queria que fosse meu marido”. Se não exata, é, no mínimo, uma forma romântica de encenar o processo que deu início à Guerra Fria.

Berlin conversou e foi elogiado por muitos — Churchill, Roosevelt, Virginia Woolf, e praticamente todas as figuras mais importantes do século —, mas nunca foi um bom escritor, é certo. Ditava seus ensaios, porque, professor, era capaz de expor suas idéias em um sermão melhor que com uma caneta. Já em seus últimos anos, lamentou muito não ter produzido uma obra-prima, um livro grande e definitivo que resumisse todo o seu pensamento. O homem que, ainda jovem, trocou a filosofia pela história das idéias, porque desejava “saber mais no fim da vida do que no começo”, morreu em 1998 sem ter escrito o parágrafo que concluísse sua magnífica vida. Ficou devendo uma síntese de suas idéias conflituosas que só podiam coexistir mediante a presença de um cérebro ágil como o de Berlin para explicá-las.

Rodrigo Gonzalez
Rascunho