Uma aventura de crianças – Rabisco

Mario Vargas Llosa leva o mundo da imaginação para o tempo das Cruzadas
15/05/2016

Mario Vargas Llosa dispensa apresentações, é um dos escritores mais famosos do mundo, Nobel de Literatura em 2010, autor de A guerra do fim do mundo, Tia Julia e o Escrevinhador etc., etc., etc. O que talvez seja novidade são suas incursões pelo universo da literatura infantil. O barco das crianças é o segundo livro do autor destinado a esse público, publicado originalmente em 2014, mas lançado esse ano no Brasil. O primeiro, Fonchito e a lua, foi publicado aqui em 2011. Em ambos, Llosa procura criar um ambiente de sonho e fantasia para contar temas que são pouco abordados na literatura infantil, como a relação amorosa entre crianças e as guerras do passado.

Em O barco das crianças, reencontramos Fonchito, já um pouco mais crescido, mas ainda criança, envolvido em sua rotina: acordar cedo, tomar café, ir para a escola. Um dia, ele percebe que há um senhor sentado em um banco de um pequeno parque em Barranco, contemplando o mar. Depois de vê-lo durante várias manhãs, sempre no mesmo lugar e olhando para a mesma direção, ele se pergunta o que estaria fazendo ali, curioso como qualquer criança. Até que um dia, não se aguenta e acorda mais cedo para ir perguntar ao idoso o que ele tanto olha. É nesse momento que começa a história do Barco das Crianças.

De acordo com o senhor, ainda à época das Cruzadas Europeias, um grupo de crianças de várias cidades do continente decide ir até a Terra Santa para ajudar a recuperá-las para os cristãos. Durante um tempo, as crianças vagam pela Europa até darem em Marselha, pois sabiam que precisariam de um barco para atravessar o Mediterrâneo. Ali, são recebidos pela população com um pouco de desconfiança de alguns, mas com muita alegria pela maioria, como se fossem anjos enviados por Deus. O relato do senhor conta a história dessas crianças, desde o momento em que se encontram.

A cada dia, o idoso fala um pedaço da história para Fonchito, que tem poucos minutos antes que o ônibus escolar apareça e ele tenha que partir. E a cada dia, Fonchito mergulha um pouco mais no relato do velho senhor e leva para a escola e para casa as imagens que sua cabeça cria a partir da história ouvida. Esse ritmo, aliás, torna o livro uma companhia extremamente agradável para pais que gostam de ler para seus filhos. Se a regra da hora de dormir for um capítulo por dia, são onze noites para se ler o livro (dez capítulos e um epílogo).

Llosa procura criar um ambiente de sonho e fantasia para contar temas que são pouco abordados na literatura infantil, como a relação amorosa entre crianças e as guerras do passado.

Terra Santa
A história é inspirada no conto A cruzada das crianças, escrito pelo francês Marcel Schwob em 1885. Ele, por sua vez, se inspirou em diversos fatos — alguns verídicos, outros sem comprovação — que aconteceram em 1212 e que resultam em um elemento comum: um rapaz que conduz um vasto grupo de crianças originárias da França e da Alemanha que desejam ir à Palestina para libertar a Terra Santa. Em seu livro, Llosa não menciona nenhum rapaz líder, apenas as crianças que decidem fazer a jornada a pé do interior da Europa até Marselha e, de lá, a viagem de barco em direção à Palestina.

À época do lançamento de seu primeiro livro infantil, Llosa havia dito que era muito mais difícil escrever para crianças do que para adultos. Essa dificuldade pode ser notada em alguns trechos de O barco das crianças em que o autor parece não conseguir esquecer a sua erudição e toda a sua história de escritor adulto. São momentos em que falta explicar algum detalhe da história das Cruzadas, por exemplo, que talvez já seja conhecida pelos adultos, mas ainda não faz parte do universo intelectual das crianças. A escolha de palavras rebuscadas ou pouco comuns, em alguns trechos, também conspira para deixar o texto menos infantil. Não é nada que comprometa a leitura e pode servir como um incentivo aos pequenos leitores usarem um dicionário, porém uma ou outra vez são palavras fora do lugar.

Ainda sobre o lançamento de Fonchito e a lua, Llosa disse que era a realização de um sonho muito antigo, de um projeto pessoal que estava abandonado e que havia muito ele gostaria de ter retomado. Para ele, era mais importante fazer com que as novas gerações não renunciassem a literatura. “Que a literatura pode desaparecer, que pode terminar confinada às minorias, todos sabemos. Essa perspectiva seria um retrocesso absurdo para a cultura de todas as sociedades. Somente com a boa literatura adquirimos a sensibilidade, o poder imaginativo, aprendemos a confrontar nossos desejos e anseios e, fundamentalmente, a formar um espírito crítico sobre o mundo em que vivemos e estamos construindo”, comentou.

A edição da Alfaguara é muito bonita. As ilustrações da polonesa Zuzanna Celej, artista premiada internacionalmente, são um ótimo complemento a uma história bonita. Talvez se Llosa conseguisse ser mais simples e menos prolixo, a garotada curtisse mais o livro. Mesmo assim pode servir como um excelente ponto de partida para o universo dos livros.

O barco das crianças
Mario Vargas Llosa
Trad.: Paulina Wacht e Ari Roitman
Alfaguara
112 págs.
Mario Vargas Llosa
Nasceu em Arequipa, no Peru, em 1936, ganhou notoriedade com a publicação do premiado romance A cidade e os cães (1961). Mudou-se para Paris nos anos 60, e lecionou em diversas universidades americanas e europeias. Ganhou importantes prêmios literários como o Cervantes, Príncipe de Astúrias, PEN/Nabokov e Grinzane Cavour. Em 2010, recebeu o Nobel de Literatura.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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