Um verdadeiro outsider

Duas antologias — com traduções diferentes — reúnem o trabalho do poeta sérvio-americano Charles Simic, que nasceu e cresceu entre guerras e destruições
Charles Simic, autor de “Mestre dos disfarces”
01/01/2022

Num país que lê pouca poesia, nacional ou estrangeira, deve ser motivo de celebração sempre que um poeta de fora aparece por aqui traduzido em livro. E agora, no caso de Charles Simic, a alegria é dupla, pois dois volumes com seleções de poemas do sérvio-americano estão sendo publicados, ao mesmo tempo, no Brasil. E, diga-se, desde já, Simic é um grande poeta. Portanto, viva!

Por outro lado, e aqui abro um parêntesis, é impossível não pensar na coincidência. Com tantos nomes por traduzir no Brasil, por que será, que, de repente, um único poeta aparece, com dois livros ao mesmo tempo? O que faz com o mercado editorial brasileiro eleja, de tempos em tempos, algum autor estrangeiro (não só poeta) como favorito?

Numa lista sem muito método, puxada na memória, me lembro das fases Charles Bukowski, Gary Snyder, Sylvia Plath, Sam Sheppard, Allen Ginsberg e os Beats todos… Isso não é ruim em si, muito pelo contrário, pois todos eles são importantes e merecem ser traduzidos; o que incomoda são as ausências. Por exemplo, não fossem por umas poucas e esparsas traduções espalhadas por aí (inclusive minhas, aqui no Rascunho), Louise Glück teria sido uma completa virgem, em português, quando o Nobel para ela foi anunciado no ano passado. E alguns dos mais importantes poetas norte-americanos dos últimos tempos continuam a aguardar alguma edição em nossas terras, casos, salvo engano, de Donald Hall, Frank Franz Wright e W. S. Merwin (se houver curiosidade, faça uma busca no site, pois todos eles já bateram ponto nestas páginas). Fecho o parêntesis.

Caso curioso
Charles Simic é um caso curioso. Nascido em 1938 na Sérvia, então parte do reino da Iugoslávia, Dusǎn (seu nome de batismo) acabou por se tornar um dos mais importantes poetas dos Estados Unidos, país onde desembarcou, como refugiado, aos 16 anos de idade. Isso poderia ser apenas uma curiosidade biográfica, mas não é.

Por um lado, seu país natal era um lugar relativamente periférico na cena cultural e política europeia. Mas, por outro lado, quando se trata de protagonismo em guerras ao longo do século 20, a Iugoslávia e a Sérvia se destacam. Por séculos, foi a fronteira, raramente pacífica, entre a Europa cristã e o império turco. Foi lá, em 1914, que o herdeiro do trono austríaco foi assassinado, acendendo o pavio que detonaria a Primeira Guerra Mundial; foi lá um dos lugares em que os nazistas invasores, na guerra seguinte (quando Simic era criança), mais sofreram nas mãos de uma guerrilha corajosa e eficiente; e foi lá, finalmente, que, na década de 1990, uma guerra civil de proporções inacreditáveis (pelo menos para os padrões europeus pós-Segunda Guerra) entre bósnios, sérvios e croatas, viria a causar o sofrimento e a morte de milhares de pessoas, a maior parte, civis. A história do país natal de Simic não é, enfim, uma história idílica ou banal.

Depois de alguma perambulação pela Europa devastada do pós-guerra, o adolescente Charles Simic chegou aos Estados Unidos, com sua família, em 1954. Poucos anos mais tarde, ele começaria a construir seu nome como um dos grandes poetas norte-americanos, mais um daqueles raros exemplos de autores importantes que escreveram suas obras (ou grande parte delas) em línguas não nativas, como Joseph Conrad, Vladimir Nabokov, Arthur Koestler e Joseph Brodsky.

Um outro dado curioso a respeito de Simic é que a poesia norte-americana no século 20 foi pródiga em “escolas”, nem sempre estanques, é verdade, mas que, de um jeito ou de outro, definiam seus membros: San Francisco Renaissance, New York School, Harlem Renaissance, Beats, Objetivistas, Confessionais, Black Mountain… e Simic jamais se identificou (ou foi classificado) como parte de qualquer uma delas. Ou seja, Simic é, por natureza, um verdadeiro outsider.

O que não quer dizer que não se possa ver nele as marcas claras do modernismo norte-americano de William Carlos Williams, Ezra Pound e, principalmente, Wallace Stevens, e tampouco que ele não tenha sido plenamente adotado pelo establishment cultural dos Estados Unidos. Ter sido três vezes finalista do Prêmio Pulitzer (venceu uma vez, em 1990) e Poeta Laureado do Congresso (2007) é prova mais do que cabal.

Tudo isso para dizer, em resumo, que a poesia de Simic é de alguém que nasceu e cresceu entre guerras e destruições, que se expressa na língua que aprendeu depois de adulto, e que sempre carregou um sentimento de deslocamento, de perplexidade e de transitoriedade.

Além do interesse pela poesia de Simic, sinto uma empatia pessoal por sua trajetória de vida, pois sou filho de um pai que, tendo também enfrentado as vicissitudes da guerra na Europa, passando a infância entre Paris, Londres e Genebra, e, muito depois, terminou seus dias no Brasil (um país que aprendeu a amar, mas para o qual jamais teria emigrado por vontade própria e cuja língua, diferentemente de Simic com o inglês, nunca pôde chamar de sua).

Desafios da tradução
O fato é que temos agora uma dose dupla de Charles Simic em português. O volume da 7Letras, um pouco mais parrudo, traz 48 poemas (traduzidos por Maria Lúcia Milléo Martins), três ensaios de Simic (traduzidos por Maysa Cristina da Silva Dourado) e um belo prefácio de Maria Claro Paro, no qual descobrimos que as tradutoras são estudiosas de Simic há um bom tempo, e que inclusive contaram com a ajuda do poeta na seleção dos poemas. O livro da Todavia, por seu lado, nos apresenta 34 poemas e conta com um posfácio igualmente esclarecedor do tradutor e organizador Ricardo Rizzo.

Em obras desse gênero, o primeiro desafio está na seleção dos poemas. Não importa se 48 ou 34, o número será inevitavelmente muito pequeno se comparado a tudo que, ao longo de décadas, o autor já publicou (em cerca de 40 coletâneas). Eu mesmo enfrento esse dilema todos os meses, ao selecionar os poemas que traduzo para o Rascunho.

O ponto de partida sempre é, claro, procurar dar uma mostra daquilo que for mais representativo na obra do poeta, e para isso as antologias e os volumes de “poemas escolhidos”, que o próprio Simic já publicou algumas vezes (1978, 1985, 1997, 1999, 2004 e 2013), costumam dar umas boas dicas. Mas, no fim das contas, as seleções serão absolutamente subjetivas e pessoais. Do total de poemas escolhidos nos dois livros aqui analisados, apenas três se repetem nos dois volumes (talvez não por acaso, os três aparecem no volume New and selected poems, 1962-2012).

E então vem a questão da tradução, e transpor poemas para outra língua não é apenas difícil; é, se formos realmente rigorosos, uma tarefa impossível, parte de um debate que já deu, e continua a dar, muito pano pra manga. Isso porque, no poema, a forma, o ritmo, a respiração, a musicalidade, a sintaxe e a semântica, a identidade nacional do poeta, as sutilezas da língua, a história, etc., estão absolutamente imbricadas no resultado final — se o tradutor enfatiza alguns dos aspectos, muitas vezes precisará desprezar outros.

De certa forma, traduzir poemas é como traduzir um concerto para piano de Mozart para a banda de pífanos de Caruaru. Você poderá reconhecer o original na obra traduzida, cujo resultado poderá ser belíssimo, mas você jamais dirá que são a mesma coisa. Digo isso como alguém que já traduziu quase 100 poetas para este Rascunho, mas que, independentemente de críticas ou elogios recebidos, termina invariavelmente frustrado com o resultado.

Entre as muitas maneiras de se olhar para a tradução de poemas, gosto de seguir a linha de Eliot Weinberger, que divide os tradutores entre acadêmicos e poetas. Os primeiros são os que, dentro das universidades, estudam (e ensinam) poesia e técnicas de tradução. Fazem seu ofício com rigor, e procuram ser bastante fieis ao conteúdo. Os últimos, como são, eles próprios, poetas, costumam usar muito mais o coração e a intuição, traduzindo como se de certa forma estivessem escrevendo seus próprios poemas, permitindo-se tomar liberdades — mesmo sem mergulhar em radicalismos como a “transcriação” dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos — às quais os acadêmicos normalmente não se arriscam.

Essa classificação obviamente não deve ser tomada ao pé da letra, pois a vida real não é dicotômica, e com frequência o mesmo tradutor, conforme o caso concreto que tenha diante de si, oscilará para um lado ou outro. Ainda assim, o recorte de Weinberger me parece útil quando olho para esses dois volumes de Simic em português, dos quais as traduções de Ricardo Rizzo se parecem mais com as de um poeta, e as de Maria Lúcia Miello Martins, com as de uma acadêmica. Como escrevi acima, há três poemas que se repetem nos dois livros.

Abordagens diferentes
A comparação entre essas traduções ajuda a iluminar minha argumentação. Vejamos o poema Country fair. Já no título, as diferenças aparecem: Maria Lúcia o traduz, mais precisamente, como Feira do campo, enquanto Rizzo simplifica para apenas Feira. O mais interessante vem a seguir.

Num trecho do original, temos:

One got used to them quickly
And thought of other things.

Maria Lúcia transpõe com rigor o conteúdo:

A gente se acostumava com elas rapidamente
E pensava em outras coisas.

Ao passo que Rizzo prefere tomar suas liberdades de poeta, mudando até mesmo o tempo verbal, mas sendo, por outro lado, mais fiel à concisão e ao estilo corriqueiro do autor:

Logo a gente se acostuma a elas
E pensa em outras coisas.

Um outro exemplo pode ser visto nos versos finais de Snowy morning bluesBlues da manhã nevada, para Rizzo, e Blues da manhã de neve, para Maria Lúcia:

Before whatever words are there
Grow obscure in the coming darkness.

Na tradução de Maria Lúcia, temos:

Antes de quaisquer palavras restantes
Ficarem obscuras na escuridão que se aproxima.

Ao passo que Rizzo traduz assim:

Antes que quaisquer palavras ali
Mergulhem na escuridão que chega.

Mais uma vez, ficam claras as diferenças de abordagem. Mas, ressalto, nenhuma das versões é mais correta do que a outra. Ambas tentam, da melhor maneira que conseguem, transportar o original em inglês para o português. Enquanto as tentativas de Maria Lúcia são mais “corretas”, as de Rizzo são mais “poéticas”. Eu, como um “poeta não acadêmico”, tenho cá minhas preferências. Mas aqui não existe certo ou errado, e a palavra final deve ser do leitor: qual das duas abordagens você prefere?

No fim das contas, o que importa é que, com qualquer um desses dois livros, o leitor brasileiro terá uma preciosa introdução à obra do poeta sérvio-americano. O volume da 7Letras tem a vantagem de, com quase 60 páginas a mais, trazer, além de um número maior de poemas, três ensaios do próprio Simic, ajudando a iluminar a leitura de seus poemas.

Por outro lado, o livro da Todavia, ainda que mais enxuto, tem traduções mais líricas, além de um excelente posfácio do tradutor. E, como eu disse, apenas três poemas se repetem nos dois livros. Se tiver que escolher entre um ou outro, leitor, fique com os dois.

Meu anjo da guarda tem medo do escuro
Charles Simic
Trad.: Ricardo Rizzo
Todavia
112 págs.
Mestre dos disfarces
Charles Simic
Trad.: Maria Lúcia Milléo Martins e Maysa Cristina da Silva Dourado
7Letras
181 págs.
Charles Simic
Nasceu em Belgrado, na Sérvia, em 1935. Poeta e professor, leciona na Universidade de New Hampshire desde 1973. Publicou cerca de 40 coletâneas de poemas e ganhou alguns importantes prêmios, como o Pulitzer (1990). Vive nos Estados Unidos desde a década de 1950.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho