Um túmulo para meu avô

A linguagem e a ficção como potentes maneiras de registro de um ancestral sem berço, sem túmulo
Ilustração: Tereza Yamashita
01/04/2023

Bichos andejos
Neto de espanhóis por parte de avô paterno e bisneto por parte de sua esposa, não herdei deles nenhuma palavra em castelhano. A língua ancestral não foi transmitida na sucessão das gerações não apenas pela interrupção da vida de Miguel Sánchez, morto muito cedo, mas também por um apagamento do idioma pela falta de uso. Este ramo de minha gente chegou ao Brasil em 1912, ano conhecido como o do grande dilúvio migratório, passando a viver em colônias dominadas por etnias mais coesas — como os italianos e os japoneses. Assim, forçosamente, o português foi a língua de contato, destinando o espanhol a um lugar cada vez mais secundário no cotidiano de nossa família, até que ele desaparecesse.

Pesou para isso também a constante mudança a que eram obrigados os que não tinham um pedaço de terra. Naquele momento, os contratos mais vantajosos eram os que previam a derrubada da mata e o plantio de cafezais nos extremos dos sertões de Araraquara, interior de São Paulo, o que os empurraria sempre para novas áreas, como trabalhadores temporários, num permanente desenraizamento, dificultando o cultivo de tradições. Estes contratos previam o direito de plantar arroz, feijão, milho e batatas nas linhas entre os pés de café, o que representava um ganho adicional. Com o café já formado, não havia mais espaço para esta prática, o que obrigava quem precisasse aumentar os rendimentos a ir para outras regiões que ainda estavam sendo desbravadas.

Não existem documentos sobre a itinerância de meus familiares pelo Brasil, mas tais mudanças eram muito comuns entre os espanhóis que chegaram tarde, em um momento de saturação imigratória. O ciclo de abertura das terras e de cultivo de mantimentos durava em torno de cinco anos, ao final dos quais o grupo de trabalhadores sem posses era empurrado à próxima fronteira da cafeicultura. Durante quase 50 anos, manteve-se esta diáspora interna e permanente, que reforçava a diáspora maior.

A parte final do romance A viagem maravilhosa (1929), de Graça Aranha, um dos autores de nosso Modernismo, se passa numa fazenda no Estado de São Paulo e denuncia esta natureza móvel da agricultura numa época sem adubações, em que se precisavam de solos virgens. Há uma discussão entre os nortistas, recentes naquela paisagem, e os paulistas, favorecidos pela riqueza desta lavoura. São os migrantes, no entanto, que revelam uma verdade sobre tal sistema.

O paulista, furioso, quis intimidá-lo.

— O melhor, cabra, é tu te calares, porque tu estás na pátria alheia.

— Terra estranja — gritaram os camaradas nortistas.

— Olha, paulista, deixa de arreliação e de pabulagem. Tu só arrotas café, café. Vai te fiando. Nós somos da terra de cana, que dá açúcar, cachaça, melado, rapadura. Açúcar já foi rei. Açúcar pagou a independência do Brasil. Realeza do açúcar acabou, acabará também despotismo de café.

Outro cangaceiro gritou, ameaçador:

— Toma tento, paulista velho, café é bicho andejo. Café te deixa nu na estrada, como já deixou Rio de Janeiro. Café agora só procura por Paraná e Mato Grosso…

Este bicho andejo que é o café estimulou a vocação de um grupo social que não se fixara em nenhuma destas áreas com mais recursos, procurando as regiões ainda selvagens do Norte do Paraná, que estava sendo desmatado por esta altura. No novo território, meus familiares continuaram se mudando ciclicamente, talvez como forma de demonstrar descontentamento com o país a que acabaram condenados.

Um dos resultados desta mobilidade é que se encontravam sempre em áreas novas, sem maiores estruturas. Os filhos não puderam estudar, repetindo assim uma sina histórica. Meu pai morreu analfabeto em 1969, idealizando para a prole a conquista de alguma escolaridade. O café os havia deixado nus, tal como as terras improdutivas. Mas a nudez deles era de palavras.

Esses agricultores não só não dominaram nenhum idioma escrito como perderam o que originalmente falavam. Convivi com três irmãos de meu avô e nunca ouvi deles nenhuma palavra em sua língua primeira. Não havia nem mesmo um sotaque que os ligasse ao país anterior.

Diferentemente das comunidades alemã, japonesa e italiana, entre as quais se manteve a língua — ou, no mínimo, traços dela — e outras marcas culturais, os espanhóis dos quais descendo não nos transmitiram nada, prendendo-nos a um universo monolíngue, em que o verdadeiro código estrangeiro que devíamos aprender era o português culto, pois falavam uma variante sertaneja, acaipirada, própria dessas latitudes.

Nelas, em pequenas cidades interioranas, sem maiores oportunidades de estudo, num período de fechamento do Brasil, o da Ditadura Militar (1964-1985), minha geração tentou dominar de forma um pouco menos precária o português — idioma materno e estrangeiro; língua de acolhida e de apagamento.

Perder o idioma, perder pessoas
Tal pobreza de linguagem se reflete também na ausência de documentos sobre este grupo, demonstrando uma carência total de bens legados. Não nos chegaram informações mínimas sobre o processo de imigração deles.

Não tenho de meu avô sequer uma foto. Nem mesmo uma descrição física por parentes. Sobreviveram apenas alguns episódios de sua vida, narrados de forma fragmentária, em estado de ruína, por sua viúva. Com estes trapos memorialísticos, não é possível reconstituir uma biografia.

Em tentativa recente de restaurar a sua trajetória, um dos meus objetivos principais era definir de que região da Espanha a família viera. Sabíamos vagamente que meu avô chegara aos 8 anos de idade no Porto de Santos, em São Paulo. Havia nascido em 1905 e se casara no município de Dobrada, em 1925. Dispúnhamos também dos nomes de seus pais e irmãos, sem saber quais destes nasceram no Brasil, quais na Espanha. Consultando os parentes mais velhos a que tive acesso, pois a nossa não é uma família que se reúne nem mesmo para se desentender, ninguém conseguiu me informar nossa procedência. Em criança, convivi com minha avó, e me lembro de ouvir dela duas referências geográficas recorrentes — Málaga e Navarra. Queria agora delimitar com alguma precisão os pontos de partida.

A primeira pesquisa foi feita nas atas da Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, destino de quem procurava se colocar nas atividades produtivas do Brasil. A hospedaria funcionava como um estoque de mão de obra barata, oportunidade de negócios para os fazendeiros que já não podiam contar com a escravidão. Muitos trabalhadores vinham, no entanto, com destino certo, agenciados por profissionais ligados às companhias de navegação que faziam o transporte do contingente de esfomeados ou iludidos por novas oportunidades. Estes seguiam direto para as fazendas, num fim de linha qualquer, podendo ou não passar algum tempo na hospedaria. Outros ali permaneciam até acharem uma colocação, o que era uma questão de dias, pois a necessidade os tangia aos piores postos de trabalho. Nas atas da hospedaria, não encontrei referência ao meu bisavô e seus filhos. Ou passaram por aquele mercado humano sem registro (uma possibilidade bastante forte dado o grande número de pessoas nas levas imigratórias, que seriam acolhidas informalmente nos alojamentos) ou foram encaminhados sem escalas a alguma fazenda.

Esta primeira frustração apontava para ingressos não oficiais no país. Restavam quase mil listas de bordo dos navios que atracaram em Santos naquele ano. Minha irmã e eu fizemos a conferência delas, uma por uma, linha por linha. Encontramos nomes parecidos, mas a composição familiar não permitia que os tomássemos como parentes. Eles também não figuravam entre os passageiros contabilizados. Havia uma clandestinidade documental que iria se confirmar ao longo da pesquisa.

Tendo se mostrado sem eficácia estes documentos da imigração, partimos em busca dos registros pessoais. Fui a Dobrada para retirar a segunda via da certidão de casamento de meu avô, na esperança de que ele houvesse declarado de que região imigrara. O documento não fazia referência a isso, constando apenas que era genericamente da Espanha. No município vizinho, Santa Ernestina, tentei achar o seu atestado de óbito no cartório, mas ele jamais foi lavrado. Nem do livro de enterros da prefeitura constava seu nome.

De tal forma que meu avô nasceu não sabemos onde e foi enterrado também em lugar incógnito, sem que se possa precisar sequer o ano em que isso ocorreu. Faltam-lhe berço e túmulo. A única certidão sua que há é a de casamento, com dados errados, como o nome de sua mãe e a idade de sua noiva.

O apagamento da língua espanhola no interior de nossa família faz parte de um movimento maior, do próprio apagamento das pessoas, que não tiveram documentado seu curso existencial. Deixando o campo histórico rumo ao poético, seria aceitável afirmar que o memorial que coube ao meu avô foi a repetição de seu nome no meu.

Em um dístico de versos livres publicado em minha segunda coletânea de poemas, Venho de um país obscuro (2000), explorei alguns sentidos desta sobreposição.

Meu avô e meu pai eram analfabetos.
Como pesa este nome: Miguel Sanches Neto.

Em mim, meu avô encontrou um registro, um lugar de permanência pela linguagem, um túmulo onde pudesse ser lembrado. Carrego comigo este morto.

O Nobel francês Patrick Modiano, que compõe seus livros como tentativas detetivescas de reavivar minimamente a lembrança de pessoas que não deixaram maiores sinais da própria existência, diz em Ronda da noite (1969): “Se não escrevesse seus nomes não haveria nenhum resquício de sua passagem pelo mundo”. No meu caso, se o nome de meu avô não estivesse inscrito no meu, ele talvez restasse apagado para sempre.

Como em tudo que marcou esta biografia, há aqui também um erro, um desvio. Em mim, seu sobrenome não manteve a grafia original, num processo acidental (por parte do cartorário) de aportuguesamento, cifrando assim a perda do próprio idioma.

Fome de terra
Se não posso conhecer a história de indivíduos específicos, cabe-me intuí-la por movimentos históricos maiores. Meus antepassados estão representados nestas fotos de grupos de imigrantes que esperam a partida em vários portos da Europa ou que chegam enfim à América. São faces anônimas às quais colo seus nomes, em um processo de fundação falseadora. Sem traços memorizados entre nós, eles ganham rostos-padrão, que servem a uma época toda.

A diáspora espanhola não tem uma causa única, embora a principal talvez seja o anseio por novas oportunidades de escrever a própria vida. Marília Klaumann Cánovas, em Hambre de tierra (2005), aponta para a diversidade de razões que levavam uma família ou uma pessoa sozinha a cruzar o oceano, desafiando a sorte e, em certo momento, a proibição de imigrar com a ajuda financeira do Brasil. O que ela chama de grande derramamento populacional teria como causa ora as más colheitas, as secas, as inundações, ora as guerras coloniais, o caciquismo, o direito hereditário à propriedade, o latifúndio, o minifúndio, a superpopulação, a miséria, a desmoralização da sociedade e mesmo o espírito de aventura do povo. Observando minha família, vejo que também contou e continua contando certa inquietude que nos joga de um canto a outro. Deste traço familiar nasce uma energia centrífuga ainda ativa.

Meus antepassados não se enquadrariam no grupo dos proprietários de terras que vendem pequenas áreas para tentar o enriquecimento em outro país. Tudo indica que partiram com pouco dinheiro (fruto da venda de mobílias e do acúmulo de jornadas de trabalho) e se valendo dos subsídios, o que os levou a uma existência errante durante décadas. Nada (ou pouco) tinham na Espanha e continuaram não tendo nada nos sertões de São Paulo e depois do Paraná.

Devem ter sido seduzidos pela propaganda da empresa de navegação contratada em 1897 para remeter imigrantes ao Brasil. Era a firma José Antunes dos Santos & Cia, com sede em Lisboa e sucursal em Gibraltar. Os seus agentes, os ganchos, percorriam os povoados, arregimentando candidatos para a viagem subsidiada, com promessas de terra e prosperidade. Também orientavam o que devia ser feito para fugir aos trâmites legais de imigração impostos pelo governo espanhol. Em 1910, diante da denúncia das más condições de trabalho na construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré e dos conflitos entre os colonos e os fazendeiros paulistas, para quem mesmo os nortistas eram estrangeiros (de acordo com o depoimento romanceado de Graça Aranha), e para tentar conter o derrame emigratório, o governo espanhol proíbe a vinda subvencionada para o Brasil, obrigando os que não tinham outros meios de fazer a travessia a alcançar Gibraltar, colônia inglesa, vencendo a pé muitos quilômetros. Permaneciam aguardando na fronteira a passagem de navios oriundos principalmente da França e da Itália, para então partirem. Eis a hipótese mais forte da maneira como meu povo fez a viagem, porque a mais comum num período de fuga em massa. “Estima-se que 10% da população espanhola tenha emigrado entre 1901-11, e desse contingente, 80% seriam camponeses, sobretudo de zonas tipicamente minifundiárias” (cánovas). A probabilidade de que os meus façam parte destas estatísticas é muito grande. Assim, se seus nomes não estão nos registros de entrada no Brasil, dificilmente estariam nos de saída da Espanha.

Chegados em um período de excesso de mão de obra, teriam que buscar as regiões mais remotas, as bocas das matas, e disputar espaço aceitando condições pouco vantajosas, que não lhes permitiram vencer a pobreza da qual fugiam, antes aprofundando-a, pois acabaram destinados a uma vida errante. Este excedente humano ajudava a diminuir o preço de produção do café, tornando-o mais rentável e competitivo no mercado internacional.

Passaporte ficcional
Continuo não sabendo de onde a família de meu avô veio. Provavelmente de algum povoado da Andaluzia, região que mais mandou gente para a lavoura cafeeira paulista neste período e que foi referenciada por minha avó em algum momento de nossas conversas, embora outros locais também apareçam na memória escassa que guardamos de suas recordações. Só posso pensar nestas origens familiares em termos aproximativos, de probabilidades estatísticas. Não há como olhar o mapa da Espanha, fincar o dedo em um lugar e dizer: somos daqui.

Sem nenhuma província, cidade ou povoado para tratar como terra ancestral, resta-nos o país inteiro, ao qual nos ligamos com um sentimento genérico de pertencimento, passando por cima de defesas de culturas regionais (que são micronacionalismos) e de desejos de separação. Não nos sentimos bascos, galegos, catalães, andaluzes etc. E este apagamento talvez tenha um valor simbólico em um momento em que se precisa reafirmar a ausência de fronteiras.

O que nos torna, na condição de descendentes sem passaporte europeu, espanhóis a distância não é sequer o idioma preponderante do país, substituído entre nós pela língua portuguesa, hábitos alimentares ou o cultivo de outros traços culturais próprios da pátria antiga, e sim a capacidade de sonhar-se, de repovoar o passado, afirmando pela ficção nomes sem densidade de memória, feitos de ar. É pela invenção que convoco seres que não deixaram sinais de sua existência, propondo-os como figuras históricas, que assim se fazem a partir do momento em que ganham alguma espessura de linguagem. Se suas vivências são inventadas, isso não inviabiliza a sua historicidade, antes lhes dá uma estatura mais representativa.

NOTA
Este artigo apresenta o contexto que o autor explora ficcionalmente em seu novo romance Inventar um avô (Maralto, 2023).

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho