T.E. Lawrence, mais conhecido como Lawrence da Arábia — , o inglês que teve destacada atuação na guerra de libertação da Arábia do domínio turco — , foi mais do que um aventureiro. Seu livro Os Sete Pilares da Sabedoria, uma espécie de epopéia moderna em prosa e sem o sentido clássico de exaltação, sugere que se deixe, como pano de fundo, as razões políticas dessa aventura, antes de tudo interior, para explorar uma faceta pouco notada de Lawrence — a do escritor —, nesta excelente tradução em português, editada agora pela Record.
Creio que uma pesquisa interessante, se possível de ser feita, seria tentar dar uma idéia do tipo de leitor que se interessa pela leitura de Os Sete Pilares… ; que tipo de inteligência ou de sensibilidade é capaz de se deter nas quase oitocentas páginas desta narrativa. Dentre as especulações, uma que se voltasse para o interesse despertado pelo que há de modernidade no perfil humano de Lawrence, refletido sobretudo na densidade poética de sua linguagem. A propósito, Lawrence afirmou certa vez, em uma de suas freqüentes auto-análises, que sempre tivera apenas uma aspiração em toda a sua vida: “o poder de expressar-me em qualquer forma imaginativa”. Se na leitura não nos mostramos interessados apenas nas informações da camada mais imediata, sobre o qual se estrutura o arcabouço narrativo do livro, descobrimos o que está por trás dessa “forma imaginativa”: o talento de um escritor capaz de, no trabalho reconstituir os fatos de um relato histórico — nos quais ele próprio esteve envolvido —, apresentar o mundo de forma complexa, como um tecido em que a face do real testemunhado transparece na palavra objetiva, como que marcada por uma preocupação de neutralidade da visão — aspecto predominante nas descrições —, deixando a emoção a cargo da linguagem que, como um cristal facetado, reflete a sensibilidade do artista. Os episódios, sejam ou não recortados do cotidiano, atraem sempre a atenção pela agilidade com que são mostradas as coisas, numa vivacidade que só poderia brotar de uma plena participação dos sentidos; mas dentro de uma contenção que, de maneira indireta, fala do temperamento do homem tanto quanto do talento do escritor. E assim todo o relato dá a impressão de um grande rio que se bifurca em afluentes e subafluentes de descrições animadas de movimento, de um senso de espacialidade que evita o monótono fluir numa única direção.
O livro, no todo, é uma teia de contrastes, de luz e sombra, um terreno acidentado e cheio de imprevistos, alternando visões de inferno e de paraíso, para usar aqui uma imagem dantesca; o inferno de longas travessias pelo deserto, em caravanas de camelos, sob um sol de tostar, por caminhos acidentados, de areias frouxas ou de pedras cortantes, maltratando os cascos dos animais exaustos; passagens de causar horror ao espírito sedentário do burguês urbano, condicionado às telas da televisão e do computador, alternam-se em fantásticos saltos da perspectiva, ora com oásis e regiões de pura magia, como o desfiladeiro de Rumm, onde o olhar se torna um músculo só com todo o corpo; ora são os cortes da cena exterior para a interior, para o plano da reflexão.
No capítulo 33, Lawrence reflete sobre seus conhecimentos em teorias militares, adquiridos desde o seu tempo de estudante na Universidade de Oxford, e em leituras posteriores (e às quais se reporta mentalmente, deitado sobre mantas estendidas no chão da tenda, enquanto se refaz de mais uma exaustiva jornada), aplicando-os ao contexto da revolta árabe, na qual ele estava empenhado — pausa do ser individual e pensante na engrenagem feroz da ação coletiva —, para considerar qual dessas teorias era mais ou menos válida, mais ou menos lógica ou coerente com a realidade dos fatos. Do abstrato da teoria, ao concreto da prática. Uma prática na qual são testadas mentalmente as idéias, até que sua verdade se torne convicção produzida matemática dos fatos: “O acampamento espreguiçava-se depois do torpor das horas médias do dia. E rumores do mundo exterior começavam a filtrar-se até mim, através do pano amarelo da minha tenda cujos orifícios e rasgos eram atravessados por longas punhaladas de luz do sol. Eu ouvia o escarvar e o relinchar dos cavalos atacados pelas moscas, no ponto em que se encontravam à sombra das árvores. Ouvia também o lamento dos camelos, o borbulhar de bules de café e alguns tiros distantes.
Ao seu ritmo, comecei a tamborilar sobre a finalidade da guerra. Os livros apresentavam-na muito bem: a destruição das forças armadas do inimigo pelo único processo: a batalha. A vitória só poderia ser conquistada pelo sangue, tentação dura para nós, visto como os árabes não dispunham de forças organizadas. Não teria porventura um Foch turco objetivo algum? Aos árabes não importariam perdas de vidas. Como poderia o nosso Clauswitz comprar a sua vitória? Von de Goltz parecia ir mais ao fundo, dizendo ser necessário não aniquilar o inimigo, mas destruir a sua coragem. O que havia apenas era que nunca alimentávamos esperanças de destruir a coragem fosse de quem fosse. Contudo, Goltz era embusteiro e todos estes homens sabidos talvez falassem por metáfora. Porque nós estávamos sem dúvida alguma ganhando a nossa guerra. E á medida que eu ponderava ia despontando lentamente em mim a certeza de que havíamos ganho a guerra do Hedjaz. De cada dez quilômetros quadrados do Hedjaz, novecentos e noventa e nove, agora, estavam livres. Será que o meu provocado gracejo dirigido a Vickery, segundo o qual uma rebelião se assemelhava mais à paz do que a guerra, continha tanto verdade como precipitação? Talvez na guerra o absoluto imperasse, mas para a paz, a maioria deveria ser mais do que suficiente. Se ocupássemos o resto, os turcos seriam bem vindos na insignificante faixa em que se encontravam. Até que a paz ou o juízo final lhes mostrasse a futilidade de eles treparem às nossas janelas”.
Imagino Lawrence no acampamento, entregue a estas reflexões, rodeado pelo burburinho das tropas. Teria ele um ar distante? Ocorre-me à memória uma passagem do livro de Fernando Monteiro T.E Lawrence: Morte num Ano de Sombra, prosa poética em forma de “biografia mental” (editado também pela Record, no ano passado) desse misterioso personagem que às vezes intriga, às vezes fascina, e que sem dúvida prosseguirá em sua viagem, para além do século 20. Esse trecho de Fernando Monteiro faz referência ao comentário de uma pessoa que conheceu de perto Lawrence e afirma que, por vezes, de repente ele se alheava, ficava distante, parecendo estar ausente. E que — parece-me — devia ser coisa do momento; que ele se permitia, ou melhor, que fluía dele como uma jeito de ser, sem nela permanecer, convivendo com momentos de intensa presença. Do mesmo modo como, nesse mesmo capítulo citado acima, alterna a reflexão sobre as teorias da guerra com a absorção das coisas imediatas, observadas.
Depois desse parágrafo, que mostra o exercício da percepção auditiva e visual, já então no plano da memória, o fio narrativo, que fora interrompido, é retomado na reflexão, agora sob o crivo da ironia, resumindo o affair da guerra em observações como esta: “Filosoficamente era idiota porquanto, se de um lado as opiniões eram discutíveis, de outro as convicções precisavam de tiros para se curarem. E a luta só poderia terminar quando os sustentadores de um princípio imaterial não tivessem mais meios de resistência contra os sustentadores de outro. Isto me soava como renovação em pleno século XX das guerras de religião, cuja finalidade lógica era a total destruição de um credo e cujos protagonistas acreditavam que o julgamento de Deus devesse prevalecer.”
Reflexões que, partindo da prática. em que ele próprio se achava mergulhado, alcançavam uma projeção em síntese algébrica, como generalidade: “Estas antíteses pareciam apenas pontos de vista sob os quais se ponderavam os elementos da guerra. O elemento algébrico das coisas, o elemento biológico das vidas e o elemento psicológico das idéias. (…) Os meus pendores, hostis ao abstrato, buscavam novamente refúgio na Arábia. Traduzido para o árabe, o fator algébrico deveria, em primeiro lugar, tomar conhecimento prático do que desejávamos libertar. E eu comecei ociosamente a calcular o número de quilômetros quadrados: 150, 200, 250, 400 mil quilômetros quadrados . E como poderiam os turcos defender tudo isso ? Sem dúvida, por meio de uma linha de trincheiras através da zona se nos apresentássemos como exército de estandartes ao vento. Suponha-se, porém, que fôssemos como desejaríamos ser: um influência, uma idéia, uma coisa intangível, invulnerável, sem frente nem retaguarda, difundindo-se por toda parte como gás.”
O que há de paradoxal é que, a uma tal exigência de precisão, incapaz de conviver com o aleatório, contrapunha-se um estado permanente de dúvida que fazia dele um cético, seja quanto à integridade das próprias razões de agir, seja quanto ao resultado final dessas ações, consideradas as respectivas implicações, sobretudo os jogos de interesses dos países envolvidos, dentro da complexa teia das relações humanas naquele determinado contexto histórico e político. Dúvidas geradoras de reflexões que, vistas de fora, isoladamente, poderiam fazer imaginá-lo um poço de contradições (“Entre os árabes, eu era o desiludido, o cético, que lhes invejava a crença barata.”), mas que, tomadas em termos de um todo complexo, dão a medida de uma personalidade forjada entre razão e sentimento, submetida ao teste dos fatos. Fatos esses que se traduziam por vezes em epifânicas manifestações interiores com que a mente que as contempla — talvez como contraponto às inimagináveis tensões internas ditadas pelas auto-recusas de tentadoras facilidades — gratifica a si mesma, em respostas de plena humanidade: “A abstração da paisagem do deserto vincou-me o espírito, tornando-me vazio, em virtude de sua supérflua grandeza. Grandeza conseguida não pela adição do pensamento à vacuidade, mas pela sua subtração… Na fraqueza da vida da terra, espelhava-se a força do céu, tão vasto, tão belo, tão forte.” Ou, surpreendentemente, quando deixa partir em paz um turco meio desgarrado, encontrado por acaso, durante um dos trajetos de uma região a outra: “Era moço, robusto, mas de aspecto sombrio. Fitei-o e disse-lhe em voz baixa: — Deus é misericordioso. — Ele conhecia o som e o sentido da frase árabe e ergueu os olhos como um clarão, para os meus. Seu rosto, todo enrugado de sono, começou lentamente a transmudar-se, assumindo uma expressão de incrédula alegria.”
Em certo sentido, esta é uma história inconclusa… Ou, como diz Fernando Monteiro, no prefácio à obra, é um livro que se desviou de um projeto original; daí a impressão de estranhamento. que poderá causar a quem exija dele tão somente um relato político-militar da Revolta Árabe — embora a mesma esteja ali, macro e microprojetada, em sua inteira dimensão, não obstante imbricada a ela se projete a figura de seu mais importante protagonista — imponente na modernidade da estatura, irredutível à pretensão de qualquer biógrafo que quisesse deduzir da lógica dos fatos externos uma coerência para o seu comportamento. Para esse biógrafo, o próprio Lawrence dá as indicações: “Sentimentos e ilusão combatiam sempre dentro de mim, mostrando-se a razão suficientemente forte para ganhar, mas não suficientemente poderosa para aniquilar os vencidos, nem para evitar que eu gostasse ainda mais deles; e, talvez, o conhecimento mais profundo do amor estivesse em amar o que o “eu” despreza. Contudo, isto eu apenas podia desejar, podia ver a felicidade na supremacia do material, mas não podia render-me a ela; podia procurar pôr o meu espírito a dormir para que a sugestão soprasse através de mim, livremente, mas eu continuava amargamente desperto.”