Um tributo à leitura

Em "A biblioteca no fim do túnel", Rodrigo Casarin estabelece conexões profundas entre literatura e cotidiano
Rodrigo Casarin, autor de “A biblioteca no fim do túnel”
01/03/2024

A paixão por livros e literatura impulsiona há séculos o surgimento de obras que tratam desse tema, algumas, inclusive, escritas por autores célebres, como Virginia Woolf e Umberto Eco. No Brasil, um dos exemplos mais recentes é A biblioteca no fim do túnel – Um leitor em seu tempo, do jornalista especializado em literatura Rodrigo Casarin.

A obra reúne mais de 50 crônicas escritas entre 2017 e 2022 e publicadas em veículos como Rascunho, Cândido, UOL Entretenimento e, principalmente, Página Cinco, coluna sobre livros que o autor mantém no UOL desde 2015.

Dividida em três partes —Prazeres, angústias e fracassos entre os livros, Os livros e o caos fora da biblioteca e Bons autores, grandes histórias e um leitor —, a antologia traz uma abordagem bastante ampla, ao tocar em temas diversos, mas igualmente interessantes.

Há, por exemplo, discussões bem-humoradas sobre tópicos que acompanham leitores há tempos: devo ou não fazer anotações no meu exemplar? Tenho o direito de não gostar de um clássico? Posso dizer que o romance infantojuvenil que li quando tinha 14 anos me marcou tanto quanto a obra de Dostoiévski? Rodrigo Casarin brinca com todas essas questões com a leveza que elas pedem, como apenas os bons cronistas conseguem fazer.

Mas o escritor também sabe falar sério. E faz isso muitas vezes ao longo dos textos selecionados, afinal, eles foram escritos em um período bastante conturbado do país. Por isso, vez ou outra se torna inevitável falar sobre Bolsonaro, negacionismo, fascismo, militares e 80 tiros “por engano” em uma família inocente.

A ironia também aparece, com destaque para o texto em que o autor sugere a proibição de obras que desrespeitam a moral e os bons costumes, entre elas Big Jato, do Xico Sá, classificado como “panfleto da zoofilia”, e a própria Bíblia, por ser “incentivo para que pais matem seus filhos, filhas fazendo sexo com o pai, sodomitas, um monte de gente recorrendo às imorais prostitutas para se satisfazer e, no ápice, um dos protagonistas sendo torturado até a morte em uma cruz”.

O cenário político internacional também é contemplado, em especial por um texto sobre a Palestina que evidencia aqueles que “são isolados, confinados e massacrados com injustiças presentes e sacanagens históricas”.

Algumas “polêmicas” que recentemente atravessaram o universo do leitor também têm espaço, como quando a atriz Fernanda Montenegro gerou reboliço ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras (ABL) ou quando Itamar Vieira Junior passou a ser criticado pela turma enfadonha que acredita que apenas livros ruins têm o direito de ser tornarem best-sellers.

Rodrigo Casarin também tem crônicas que são verdadeiras declarações de amor. Entre as mais impactantes estão um texto bastante afetivo sobre visitas demoradas a sebos e uma carta endereçada ao Menino Maluquinho, quando o personagem criado por Ziraldo completou 40 anos, em 2021.

Grandes nomes da literatura também são evocados: Umberto Eco fala sobre bibliotecas, Ariano Suassuna aborda a justiça que surge por linhas tortas e Lygia Fagundes Telles conta sobre quando ela e Clarice Lispector “fugiram” de um congresso sobre literatura latino-americana para conversar e beber num boteco.

O autor também dá espaço para os contemporâneos, ao citar nomes como Julián Fuks e Marcos Peres, e enfatiza a importância de não ler apenas os clássicos, até porque a literatura brasileira vive grande fase.

Distanciamento do discurso esnobe
Mas não é apenas ao propor a leitura dos contemporâneos que Rodrigo Casarin se distancia do discurso esnobe tão comum a esse lugar. O escritor, aliás, faz isso várias vezes e acerta em cada uma delas. Suas crônicas dão espaço ao futebol, aos quadrinhos e até mesmo à televisão, aparelho que costuma ser tratado como o mais sórdido dos demônios pelos “intelectuais” de plantão.

Justamente por se distanciar do que há de mais esnobe, a antologia dá pouco espaço para textos sobre o meio literário. Uma colega jornalista me disse que a pior coisa em cobrir a editoria de literatura é que tem muita gente querendo falar, mas ninguém disposto a ouvir. Já uma colega escritora definiu o meio literário como “um bando de ricos se lambendo”.

Concordo com ambas e acredito que histórias sobre isso não faltem ao experiente Rodrigo Casarin. Por outro lado, duvido que elas se encaixariam em um projeto que parece ter sido preparado com o objetivo de homenagear o que há de mais belo no universo dos livros.

Pandemia
Para além das pertinentes discussões sobre literatura, mercado, escritores e tantos outros tópicos, as crônicas chamam a atenção por elementos como a diversidade de temas, a linguagem perspicaz e o olhar atento e sensível do autor ao cotidiano.

Também vale destacar a construção de uma espécie de dossiê sobre a maneira que a pandemia impactou a relação das pessoas com suas leituras, afinal, muitos dos textos surgiram durante o isolamento.

À época, muitos estabeleceram novas dinâmicas com seus livros, uma vez que sabiam que poderiam morrer a qualquer momento. Esse “acerto de contas” aconteceu de diferentes formas, desde leitores que se dispuseram a ler tudo que encontravam pela frente até aqueles que resolveram, enfim, encarar aquele clássico de 600 páginas ainda não lido. Também teve leitor assíduo que passou meses sem conseguir ler um capítulo sequer.

Seja como for, passada a angústia daquele momento, é um exercício válido olhar para trás e perceber a maneira com que nossas relações com os livros se modificaram durante a pandemia, algo que eu não tinha pensado a respeito antes de ler A biblioteca no fim do túnel.

E talvez seja esse o principal mérito da obra: ela provoca, instiga, confronta, pede novas perspectivas, exige um olhar mais demorado e não entrega respostas. O autor sabe que não cabe à literatura fazer isso.

Rodrigo Casarin traz textos irresistíveis, escritos por alguém que tem linguagem fluída e bem definida e capacidade para transformar relatos pessoais em histórias universais.

Em pouco mais de 200 páginas, ele consegue estabelecer conexões profundas entre literatura e cotidiano e sintetizar o que há de mais sincero, vibrante e denso na relação entre leitores e livros.

A biblioteca no fim do túnel
Rodrigo Casarin
Arquipélago
208 págs.
Rodrigo Casarin
Nasceu em 1987, é jornalista especializado em literatura. Desde 2015 edita a Página Cinco, coluna de livros no UOL que lhe rendeu o Prêmio IPL de 2019 na categoria Mídia. Hoje, o projeto se desdobra em um podcast de entrevistas e em uma newsletter. Foi jurado do Oceanos e do Prêmio Jabuti, do qual também integrou o Conselho Curador em 2022. Vive em São Paulo (SP).
Bruno Inácio

É jornalista e escritor. Autor de Desprazeres existenciais em colapso (contos) e Desemprego e outras heresias (romance)

Rascunho