Tendo convivido com um grande grupo de pesquisadoras que nos anos 1980 estudava a literatura feita por mulheres no Brasil — e que vem se diluindo, pois o debate sobre gênero perdeu a relevância —, leio os contos de Cíntia Moscovich com sabor muito familiar, por isso, sem grandes surpresas ou novas alegrias.
A conhecida autora de Essa coisa brilhante que é a chuva reúne nove contos de extrato doméstico e urbano, de relações algumas vezes incomuns, como no primeiro dos contos, outras trivialíssimas, como no último e um tanto entediante Uma forma de herança. O livro, no todo, lembra a obra Laços de família, de ClariceLispector, primeira reunião de contos da escritora ucraniana. Aliás,caberia aqui o mesmo título. Apesar do respeito por momentos de ótimas construções, devo dizer que a dicção da obra de Moscovich é clariciana, sem dúvida. Como não lembrar de Lispector em trechos como: “Ele estava recostado nos travesseiros, em cima da colcha, como se, de última hora, o cotidiano se houvesse rompido” (Uma forma de herança, grifo meu)? Ou: “O silêncio do médico perturbava, e ela falou que tinha pensado em ler o resultado e que depois tinha desistido, o doutor sabia como as pessoas eram impressionáveis, a gente acha que tem tudo quando não tem nada, que coisa…” (Aos sessenta e quatro)?
As metáforas insólitas, porém, são muito menos ousadas na escritora gaúcha, que também não traz grande aprofundamento na estratégia de uso do fluxo de consciência (forte marca de Lispector), como se pode ler no trecho acima.
Além da janela
Não é justo se compararem escritoras de décadas, regiões, momentos políticos e sociedades diferentes, sobretudo havendo ainda o eco (nem sempre bem-vindo) da influência de Clarice em tantas escritoras menores. Ocorre que Cíntia Moscovich — que não é escritora menor —, apesar de trazer à tona suas próprias qualidades (dentre elas uma aclamada suavidade), tem usado temas e relações familiares que já vinham iluminadas em épocas “femininas e feministas” — sejam quais forem as definições, hoje, desses termos tão discutidos na década de 1980. E parece repetir muitas vezes as estruturas que os sustentavam: epifanias, espantos, relações mãe-filhos, bichos domesticados e, sobretudo, o“olhar míope da mulher confinada”: aquela que enxerga de perto o detalhe, mas tem a vista nublada para o horizonte além da janela. (Como, notavelmente, definiu Gilda de Mello e Souza no estudo O vertiginoso relance, dos anos 1960).
Apesar do envelhecimento do debate, a literatura “feminina” ou “feita por mulheres” ainda recebe atenção e reúne escritoras. Luiz Ruffato, por exemplo, incluiu Moscovich numa conhecida coletânea de 2004 sobre mulheres que estão fazendo a “nova” literatura brasileira; depois, ampliou o estudo no volume seguinte, Mais 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. E o jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, volta a falar sobre elas, citando Moscovich na edição de fevereiro de 2013.
Fabrício Carpinejar, conterrâneo e fino poeta, afirma, na orelha desta obra, que Cíntia será “um clássico” e que “escreve claridades”. Que sejam claridades, sim, mas para além das janelas — é, creio, o que deseja seu leitor contemporâneo, do século 21.
Os finais cálidos e tranqüilizadores dos contos abrem-se para soluções quase afáveis, benfajezas. E a organização das histórias desta obra ocorre dentro de um tempo rigorosamente cronológico, um tanto primário, enquanto o tal olhar para a minudência se aprofunda:
Ainda tonta ela se abaixou para juntar a colher, momento em que reparou que as pantufas de lã do marido eram sebentas, mancha em cima de mancha. Levantando o tronco não sem dificuldade, varreu com os olhos a figura diante de si: o pijama azul de listras estava tão acabado que nem dava para pano de chão, e a barriga do marido, que se tornara saliente, como se ele trouxesse uma bola logo abaixo do peito, esgarçava as casas dos últimos dois botões. (Aos sessenta e quatro)
Ora, a boa literatura não precisa de tragédias, mas demanda certa dor no aprofundamento. Se os temas, porque cotidianos, podem estar ao gosto do leitor, este também arde pelo registro das diferenças. E Cíntia é mais bem-sucedida quando as enfrenta.
Por exemplo, no conto Gatos adoram peixe, mas odeiam molhar as patas, como é grande a impotência de Saulzinho, o menino judeu (de 48 anos e 149 quilos), prisioneiro da loja familiar e do carinho doentio da mãe. Ou então, no melhor conto desta obra, A balada de Avigdor, no qual Cíntia aborda valores judeus de maneira humana e universal. Explico: quase como Capitu e Bentinho, cresciam juntos Avigdor e Débora, de pais judeus e vizinhos. Ocorre que Débora, corpulenta, preferiu o caratê às prendas domésticas e Avigdor, um “pacifista”, preferiu o balé profissional ao futebol. O sofrimento das famílias, o preconceito, as suspeitas de desvios vergonhosos torturaram os pais, que, afinal, nunca se deram conta do conceito de “normalidade”. Frágeis e submetidos a valores imutáveis, os pais sobrevivem ao cataclismo do futuro traçado apenas através da descendência do casal: “No dizer de seu Samuel, os seis filhos homens de Avigdor e Débora são ‘todos estranhamente normais’”.
São estes poucos textos, com temas contemporâneos ou universais, que desligam Cíntia de Clarice. Tomara que eles apareçam mais em seu trabalho.