Miúdo, Coisa-nenhuma, Piá, vários nomes para indicar uma mesma criança, uma que é várias, pois como Coisa-nenhuma nascem muitas outras a cada instante no Brasil e no mundo. Coisa-nenhuma nasceu em um quilombo escondido, esquecido por todos e mal tocado pela civilização. E ali viveria para sempre se um dia não tivesse encontrado um viajante ferido perto de onde morava.
Não que o viajante fosse especial. No entanto, à medida que o viajante melhorava graças aos cuidados de Coisa-nenhuma, ele contava histórias para pagar o seu tratamento. O menino perguntava de onde vinham tantas histórias, e o viajante apontou para uma caixa da qual ele não se separava: um baú cheio de livros. O menino não sabia o que era livro, mas o viajante explicou o que era. E a partir desse momento o menino botou na cabeça que precisava aprender a ler. E saiu por esse mundo atrás de quem lhe ensinasse a ler.
O enredo é simples, mas Maria Valéria Rezende consegue, com seu Ouro dentro da cabeça, contar uma história singela e até mesmo emocionante, ao narrar a trajetória de um menino em busca de um tesouro que, para ele, é mais importante que ouro ou qualquer outra coisa.
Coisa-nenhuma, que depois se auto-batiza de Marílio da Conceição, em homenagem a uma professora que por pouco tempo morou em seu quilombo, deixa sua vidinha simples para encontrar o seu tesouro. Na viagem, Coisa-nenhuma passa por várias desventuras. Cada uma delas retrata um pouco do drama de quem não sabe ler.
O menino que logo vira homem é enganado por exploradores do trabalho escravo, é ajudado por pessoas de bom coração, viaja sem saber para onde, procura por ajuda sem saber a quem se dirigir. Em várias ocasiões, pensa em desistir de sua busca e voltar à sua aldeia natal, onde as letras não faziam falta. Mas as histórias que estavam no baú o chamavam, e ele não resistia ao chamado, e continuava sua luta. Não é necessário dizer qual é a conclusão da história.
Ouro dentro da cabeça consegue passar algumas mensagens legais ao leitor sem ser piegas. Maria Valéria toma cuidado para não ser piegas nos momentos em que a solução mágica parece ser a mais fácil. Todos os benfeitores que Coisa-nenhuma encontra ao longo do caminho são pessoas que poderiam ser reais, que o ajudam, pois são como pessoas boas na vida real. Não há exageros, há a realidade. Do mesmo modo, os ruins são como são, no livro e na vida.
E mesmo sendo um livro para mostrar o quão bacana é poder ler, Maria Valéria não dá a isso uma importância desmedida. É um tesouro o que temos dentro da cabeça, essa capacidade de ler e contar histórias, mas não é o único tesouro. Mesmo quem já descobriu as letras pode não estar muito bem, como demonstra a autora ao fazer Coisa-nenhuma encontrar a sua professora.
Esse cuidado ao não exagerar e, ao mesmo tempo, manter Coisa-nenhuma com uma cabeça de menino, mesmo crescendo, atrai o leitor. Em tempos de bruxos, fadas e quaisquer outras invenções oníricas, ter um pouco de realidade pode ser bom. A história é bem escrita, tem ritmo e cadência, e as ilustrações de Diogo Droschi formam um painel agradável e boa companhia à leitura. A edição bem cuidada da Autêntica também colabora para o bom resultado.