Um tema em três variações

Giacomo Casanova, Heinrich Von Kleist e Joseph Conrad mostram o que há de dramático e absurdo no ato de duelar em nome da honra
Giacomo Casanova, autor de “A história da minha vida”
01/12/2020

De todas as ilusões que compõem a existência humana, a honra é por certo a que mais perdurou no tempo e espaço. Homens dos mais variados cantos do globo tiveram sempre em alta conta sua imagem social, zelando ostensivamente pela preservação de sua integridade ante os outros. Ao menor abalo desta, o ato extremo de sua defesa era invocado: o duelo.

Que este em certo tempo estivesse muito em voga na cultura ocidental, majoritariamente cristã, é apenas um dos seus muitos paradoxos, mas forçoso é admitir que é um traço cultural incontornável, a ponto de a literatura mundial dele ter se ocupado, não raro tornando-o um tema central.

Mais que isso: o tema se entrelaçou ao mundo literário, com implicações surpreendentes, mesmo trágicas: como esquecer que um tiro ceifou prematuramente a vida do grande Púchkin? Ou que o gigante Marcel Proust a este recorreu, ainda que de maneira farsesca? Mesmo por estes trópicos o duelo marcou presença, num quase embate entre os nossos Olavo Bilac e Raul Pompeia. Enfim, trágico ou pantomímico, idealizado ou absurdo, o duelo reivindicou seu lugar na literatura, e é justamente nessas variações que ele marca presença em três diferentes escritores, em três diferentes contextos de países distintos. A editora Grua propicia ao leitor a oportunidade de conhecer, em edições individuais, a visão de Giacomo Casanova, Heinrich Von Kleist e Joseph Conrad sobre o duelo e suas ressonâncias na alma humana.

Uma análise comparada sobre o mesmo tema e formato (a novela) faz o leitor esperar por uma leitura crítica valorativa, a buscar o autor que melhor lidou com ambos. Mas seria ilógico dadas as diferentes concepções literárias de duelo dos três autores em questão. Assim, mais estimulante é ver como esse prisma — o assunto — projeta três tonalidades distintas, fortes, eventualmente semelhantes mas de modo algum complementares. Antes, então, a literatura sobre duelos que um duelo de literaturas.

A visão do lendário Casanova é a primeira em termos cronológicos. Aqui encontramos um veneziano (de vida semelhante a do autor) que, fugindo de sua pátria e bem acolhido na corte de Varsóvia, na Polônia, por um motivo banal se vê coagido a duelar com um nobre, tendo cedido à sua provocação, mas o fazendo a contragosto: não importa o vencedor, as implicações serão desastrosas já que a legislação local proíbe o acerto de contas. Porém, a honra o torna inevitável. Impressiona o fato de que o soberano da região tenha ciência da ofensa e não erga a voz contra as satisfações que serão tomadas. É como se o ato se impusesse, como nas tragédias gregas.

Mas não é esse o tom que a obra assume. Da vulgaridade do motivo, passando pelos preparativos e chegando às implicações do ato, o duelo é pintado com cores burlescas. É reveladora a fala a seguir:

Quanto ao testamento, em verdade me faz rir. Considera um duelo algo demasiadamente sério; não se morre assim tão facilmente (…) Não tenha medo. Quero que pense nisso como eu: são bagatelas.

Assim se expressa o Sr. Braniscki, um dos envolvidos na contenda! E, de fato, age como fala — não é uma estratégia para apressar o duelo. Este, que foi provocado de forma tão insultuosa, tem seus preparativos conduzidos com tal cortesia que o trecho (levado à maneira teatral) chega às raias da comédia:

Postòli — (…) Vamos nos bater com pistolas. A arma é igual e facilmente com ela pode ser igual a coragem.

Veneziano — (…) É muito perigosa. Lamentavelmente poderia ocorrer-me a desgraça de matá-lo e, igualmente, o senhor poderá (…) sem talvez odiar-me tanto, matar a mim. Portanto nada de pistolas (…)

Postòli — (…) Mas se eu pedisse como quem pede um favor a um amigo?

Veneziano — Um favor? Homem bárbaro!

Postòli — Sim, um favor. Escute: iniciaremos nosso duelo com um tiro de pistola cada um. Depois, se quiser, batemo-nos com espadas até saciarmo-nos (…) O senhor me negará tão ínfimo prazer?

Veneziano — Se é então verdade (…) que isso lhe pareça um prazer, fazê-lo contente é também um prazer para mim (…) mas deixe-me rir, porque isso é de uma classe que creio não ter muito de agradável.

O estilo do autor acentua, sutil, o efeito burlesco: intercala-se na narração dos fatos digressões de caráter contemplativo, que vão de considerações morais, até filosóficas, com citações eruditas, profundas, o que reforça a sensação de despropósito mordaz.

Revelação divina
Bem diferente é o tratamento que Kleist dá em sua novela: o duelo aqui assume não só sua forma mais dramática como se reveste de tonalidades metafísicas.

A princípio, cabe apontar que a contenda em si, embora importante, assume um valor incidental se comparada à trama urdida pelo autor: em uma das províncias alemãs do século 14, um nobre alemão é morto misteriosamente, não sem ter tempo de reconhecer seu filho como descendente legítimo do título familiar, em detrimento de seu irmão, Jacob Barba-Ruiva, com quem andava estremecido. A flecha que o matou, contudo, aponta esse irmão como principal suspeito; implicado na questão, Barba-Ruiva no entanto possui um álibi que envolve a desonra de Littegarde. Julgada pela opinião pública antes de qualquer processo justo, essa nobre dama busca auxílio em Von Trotta, antigo admirador que não hesita em exigir satisfações do caluniador, o que trará consequências dramáticas aos envolvidos.

Kleist, descendente de ucranianos em terra alemã, contemporâneo de Casanova, embora muito mais jovem, vivenciou os círculos literários de sua terra, tendo contato com o então nascente romantismo europeu. Nosso Otto Maria Carpeaux, em trecho crítico incluído no volume, refere-se ao autor como “esse grande realista”. A julgar somente por seu O duelo encontramos um autor bem afinado às tendências daquele impetuoso movimento: a predileção ao passado medieval e seus códigos de conduta, a dramaticidade hiperbólica dos acontecimentos, os sentimentos e paixões se sobrepondo à razão, etc.

Não cabe aqui uma visão debochada do duelo. Pelo contrário: este ato extremo assume nessa ficção a concepção de revelação divina, de concretização dos desígnios de Deus (por mais contraditória que pareça tal noção). Resulta disso que quem vence a refrega não é o mais apto e habilidoso: é o julgamento de Deus que conduz as espadas; portanto o menor arranhão no culpado há de ser sua sentença de morte, segundo o veredito do Altíssimo:

Ah, minha mãe”, disse o camareiro, “onde está o mortal (…) capaz de interpretar a misteriosa sentença que Deus pronunciou nesse duelo?” “Como?”, exclamou dona Helena. “O veredicto divino não lhe parece claro? A espada do adversário não o venceu na luta, e infelizmente sem muito lugar para a dúvida?”

Como se vê, Casanova e Kleist expressam visões quase antagônicas; Conrad adiciona uma terceira via muito singular, embora não se distancie tanto de Casanova quanto Kleist.

Absurdo banalizado
Conrad nos narra as consequências que uma diligência envolvendo um certo tenente D’Hubert e outro, chamado Feraud, gera na vida de ambos. O primeiro, distinto militar, deve dar voz de prisão ao segundo, um rufião e intempestivo oficial, por conta de uma briga em que este último se envolveu; a princípio citado pessoalmente em um dos grandes salões mundanos da França da era napoleônica, Feraud, contrariado, segue sob custódia até sua residência onde, inesperadamente, desafia seu captor para um duelo.

D’Hubert, a princípio resistente, acaba por ceder, saindo vitorioso desse que será o primeiro de muitos embates sem consequências mortais entre ambos. A absurda contenda estender-se-á durante o período da glória do imperador francês, e ainda pegará o período inicial da Restauração, sem que a compreendam as pessoas abismadas ao redor dos duelistas.

Dos três autores, Conrad é o mais próximo de nosso tempo, onde o absurdo banalizado ganha grande espaço (não só na literatura…). Na obra ele dará o tom dominante. De fato, não há guerras napoleônicas, defesa da honra ou outro aspecto que se sobreponha a esse absurdo; há apenas um duelo cuja causa todos ignoram, que nem mesmo um dos contendores consegue compreender e que se estende indefinidamente no tempo, ganhando contornos míticos, mas tão extravagantes que chegam a costear a comédia:

O tenente D’Hubert permaneceu em silêncio (…) ele estava ciente de que o episódio, tão grave profissionalmente, tinha seu lado cômico. Conforme refletia sobre ele, o oficial ainda tinha vontade de estrangular o tenente Feraud (…) Ao mesmo tempo, havia no jovem um sentimento de camaradagem e bondade que o tornava incapaz de querer piorar a situação do tenente.

E o mais absurdo é essa “camaradagem” subsistir às diversas fases do duelo: ela põe os adversários lado a lado zelando por suas vidas em território inimigo, já em pleno declínio da era napoleônica; mesmo depois, essa camaradagem é a responsável por um deles salvar a vida do outro, fiel ao bonapartismo.

Ao fim, o nonsense do embate dará frutos insuspeitamente positivos, fechando assim uma visão que, das três, é a mais complexa.

Como se vê, sob o prisma de três grandes escritores, o duelo revela-se um tema de múltiplas facetas, capaz de incorporar o cômico, o dramático e o absurdo de forma coesa. Certamente nisso revela-se tipicamente humano. O embate por vezes mortal entre dois iguais pela defesa de algo tão imaterial quanto inexistente diz muito sobre a patética existência humana e, embora démodé nos dias de hoje, permanece substância valiosa para a análise literária, sobretudo quando abordada por escritores hábeis.

O duelo
Giacomo Casanova
Trad.: Dênnys Vinicius Menezes
Grua
88 págs.

O duelo

Heinrich Von Kleist
Trad.: Samuel Titã Jr.
Grua
64 págs.
O duelo
Joseph Conrad
Trad.: Eduardo Marks de Marques
Grua
144 págs.
Joseph Conrad
Nasceu em Berdichev, em 1857, em uma Ucrânia dominada pela Rússia. É autor do romance O coração das trevas (1902), que serviu como base para o filme Apocalipse now (1979), de Francis Ford Coppola. Morreu de ataque cardíaco na Inglaterra, em 1924.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho