Um superlativo nordestino

O homem era mais feio que bater na mãe. Parecia até uma ofensa. Mas nunca ligou, não. Acostumou com a feiura
Joyce: sotaque nordestino aviva a trama sobre brasileiros
01/10/2001

O homem era mais feio que bater na mãe. Parecia até uma ofensa. Mas nunca ligou, não. Acostumou com a feiura. Dela até tirava proveito. A cara de bobo só enganava, porque era esperto que só. Tão espertalhão quanto desagradável aos olhos. Zezito era o seu nome. Um cabra macho de Sobral, no Ceará. Como muitos, saiu da pequena cidade árida para tentar a sorte em uma metrópole. Depois de participar da construção de Brasília, foi pelejar em São Paulo. Sonhava ser feliz e enricar.

É a história dele que se acompanha ao ler O Cão Chupando Manga (Bertrand Brasil, 314 págs.), de Joyce Cavalcante. A saga de um nordestino na cidade grande entre os anos de 1971 e 1985. Nada de muito novo. Todo mundo conhece algum episódio de alguém que sai de uma cidadezinha sofrida para tentar uma vida mais digna. Macabéa, de Clarice Lispector, fez isso em A Hora da Estrela. Era também feinha, a coitada. Mas meiga. Queria pouco nessa vida. Gostava de Coca-Cola e cahorro-quente. Ouvia a Rádio-relógio para se informar e sonhava encontrar o príncipe encantado. Que nem precisava ser muito bonito.

Mas Zezito queria muito mais do que refrigerante e pão com salsicha. Queria conquistar o mundo para poder voltar para Sobral jogando notas de mil para a caboclada. Queria oferecer do bom e do melhor para a sua amada, a bela Cárola. Queria mostrar pros paulistanos quem era ele. E porque era conhecido como O Cão Chupando Manga. Descobriu que todo mundo tem um lado ruim e um lado bom. Porque não há como ser bom sempre. Ou mal todo o tempo. E ele não era diferente dos outros. Tinha dois lados também. Usou isso com maestria para conseguir o que queria.

O valentão chegou pras bandas da terra da garoa assim, meio sem saber como fazer fortuna. Desembarcou do ônibus e tratou de procurar lugar para dormir. Dinheiro parco no bolso, só conseguiu se hospedar no “hotel da corda”. Coisa mais estranha essa de dormir sentado, segurando numa cordinha para não cair em cima dos colegas. Tudo bem. Estava em São Paulo, terra das oportunidades. Achava que lá todo mundo tinha vez. Até um cara feito ele, feioso, os cambitos mal segurando o peso do corpo magro. E aquela cabeça gigante. Parecia um daqueles bonecos-palito que as crianças e as pessoas sem muitos dotes artísticos sabem desenhar tão bem. Conheceu um homem que o chamava de “Caixa D’água”.

Conseguiu emprego como assistente em uma borracharia. Trabalheira dos diabos, sem registro. O moço bonito, que vivia rodeado de mulheres e lhe ofereceu o emprego, pegou a carteira de trabalho e não devolveu mais. Sorte madrasta. Mas que mudou assim que encontrou uma carteira no esgoto. Era de gente abonada, porque tinha cartões de crédito, dinheiro, cheque. Pensou em fazer safadeza e usar os documentos do figurão. Mas decidiu devolver tudinho. Descobriu que o homem da carteira era dono de um restaurante. Um italiano simpático de nome Enrico. Jogou um charminho. Se fez de vítima e conseguiu um emprego na cantina dele, a La Traviatta. Coisa fina.

Virou assistente de masseiro. Não fez feio, como sua cara. Conquistou a confiança dos chefes. Foi ali que conheceu Cárola. Moça lindíssima, filha do patrão italiano. Apaixonou-se instantaneamente. Por ela faria de tudo para ganhar dinheiro. Só assim poderia pedi-la em casamento e se tornar o homem mais feliz desse mundo. Começou a construir seu império. Em dez anos, além de conseguir, na surdina, montar um restaurante tal e qual aquele em que trabalhava, tinha uma frota de táxis, uma gráfica e uma porção de imóveis que alugava.

Como o cearense conseguiu a proeza? Simples. Pegava um tanto de mercadoria da despensa da cantina — umas coisas importadas, chiques demais da conta — fazia um estoque e vendia no mercado negro. Como é que ninguém pensou nisso antes? Fácil, fácil arrecadar uma grana só roubando a despensa do patrão. E ele nem se dava conta, mesmo…

Zezito ia enricando e se fazendo de sonso. Virou gerente do La Traviatta e, quietinho, abriu uma cantina ao lado, a Pagliacci. A cara e o focinho do restaurante do italiano Enrico. Tinha dinheiro, mas não podia mostrar. Afinal, seria descoberto e perderia a chance de conquistar Cárola. Precisava de uma chance para fazer a patroinha, a santinha, enamorar-se dele. Mas ela estava sempre cercada de pessoas inteligentes e bonitas…

Cárola era estudante de jornalismo e um pouco rebelde. Saiu de casa, onde tinha tudo do bom e do melhor, para viver em um apartamento com umas colegas hippies. Virou outra mulher. E não saía do pensamento de Zezito. Que cada vez ficava mais horroroso. Mas conseguia aliviar seus desejos com a mulherada que dava mole na cantina. Elas todas caíam na conversa divertida do cearense da cara feia. Zezito achava que conquistava o mulherio só por causa da conversinha que jogava para cima das madames. Não era bem assim. É que se espalhou a notícia de que Zezito era muito bem-dotado. E as moças faziam questão de conferir. Afinal, os anos 70 eram liberação sexual na cabeça.

No meio de todas as peripécias de Zezito para ficar rico, a autora dá uma pincelada na história política brasileira nos idos dos anos 70. Até o então sociólogo de esquerda Fernando Henrique Cardoso aparece na narrativa. Era um dos exilados políticos que passaram a freqüentar o La Traviatta, depois da anistia. Aparecem ainda Lula, Ulysses Guimarães (com discurso e tudo), Herzog, Maluf, Figueiredo e Tancredo Neves. Muito rapidamente.

O livro, espero, não se pretende um estudo sobre o comportamento no período 70/80. Se essa era a intenção, fracassou. Fica mais forte se quiser contar uma história singela. Bem singela. A historinha do Cão Chupando Manga. Porque quando fala do nordestino, Joyce sabe bem onde pisa. Afinal, escreve sobre um cabra da peste que saiu de Sobral, terra seca onde ela mesma nasceu.

A obra tem sotaque nordestino. Que fica mais interessante para os sulistas. É um linguajar divertido, cheio de palavras interessantes. Começa pelo título. “Cão chupando manga” demonstra que a situação ou a pessoa é um exagero. É o superlativo nordestino. Então, Zezito é o cão chupando manga porque é feito o quê. E porque é macho para caramba. E porque é esperto que só ele. É isso. É o cão chupando manga…

Por isso, creio, escolheu um narrativa linear e simples. Sem floreios. Às vezes funciona bem. Outras, deixa a história meio capenga. O narrador mistura pensamentos dos personagens, em ordem inversa, com a narrativa. Coloquial e formal em uma mesma frase. Uma coisa um tanto quanto indecisa. Mas nem de todo sem atrativos. “Um dia, lá pelo meio das férias, Zezito estava tomando banho de açude como fazia quando era pequeno. Nadava na água morna de sol, nu pelado. Ninguém estava vendo. Sentia uma sensação de remoçar. Sentia-se capaz de tudo em seu peito, agora sem ódios e sem defesas. Vez por outra vinha-lhe o pensamento recorrente em Cárola. E sempre que isso acontecia, seu corpo de jovem macho respondia imediatamente. Não que quisesse aquela santinha para pecar. Apenas queria.” (página 84).

Joyce ficou conhecida, nos anos 80, por seus textos feministas e eróticos (Livre & Objeto e O Discurso da Mulher Absurda são os mais famosos). Cheios de sensualidade. Nem uma coisa nem outra está presente nesse livro, devo adiantar. Mas a temática feminina, a preferida de Joyce, é bem explorada na obra. Apesar de ser uma narrativa que tem como foco principal um homem, a história é cheia de mulheres de personalidade forte. Cárola, especialmente. No começo do livro é decidida, enfrenta o pai, muda o estilo de vida. Depois, apaixona-se perdidamente por um inteligentíssimo professor universitário e se anula. Básico. Mas dá a volta por cima, no finzinho do livro.

Ela é ainda cercada de várias outras mulheres: a mãe (aquela bem protetora, italianona decidida), as duas irmãs e as amigas com quem divide um apartamento. No comecinho, Joyce ainda mostra a vida sofrida de Rita, a mãe de Zezito. É uma das quatro mulheres de Dudu (homem dos olhos verdes que povoa Sobral com 12 filhos). Criou os filhos praticamente sozinha e nunca exigiu exclusividade do homem de sua vida. Personagem bonita, que foi mais explorada em Inimigas Íntimas, de 1994.

O Cão Chupando Manga é o segundo livro de uma série de quatro que falam sobre brasileiros. Começou com Inimigas Íntimas, que se passa entre 1954 e 1990. O cenário é Sobral. Conta o comecinho da história da família de Zezito. Todo mundo de olho verde. O próximo romance será Os Brazucas (que é inclusive citado muito rapidamente em O Cão…, porque é escrito por uma das irmãs de Zezito), e deve se passar em Nova York, cidade em que Joyce morou durante anos. Serão personagens cearenses nascidas no Inimigas Íntimas e que vão morar fora do País. Vai abranger as décadas de 80 e 90. O último volume será O Livro do Perdão, que volta para Sobral. Acontece entre 1995 e 2004.

No comecinho do livro, Joyce escreve que “Ninguém deixa de chegar ao pra onde se está indo”. Não acredito. Muitos se perdem pelo caminho. Muitos sequer sabem para onde vão. Zezito sabia para onde estava indo. Não se perdeu. Estava onde queria. Mas, quando percebeu, viu não chegou nem perto…

Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho