Um ser a espantar dores

“Ó serdespanto”, de Vicente Franz Cecim, divide-se entre poesia e prosa, ficção e ensaio, mesmo preservando um enredo básico
Vicente Franz Cecim, autor de “Ó serdespanto”
01/01/2007

O escritor Vicente Franz Cecim vai ao confessionário, ajoelha-se diante de um sacerdote pagão, Fabrício Carpinejar, e confessa: “Publiquei o primeiro livro de Andara, A asa e a serpente, em 1979, já aos 33, aquela idade em que se vai para a Cruz”. Foi uma edição hermética, no sentido pleno do termo, minúscula, distribuída com alguns amigos. Outros volumes vieram; sete ao todo, depois reunidos num único volume, Viagem a Andara — O livro invisível (Iluminuras. 1988).

Ganhou prêmios, foi aclamado pela crítica, atravessou o Atlântico na rota contrária de Cabral e continuou invisível como o livro que escreve desde sempre, mantendo-se fiel ao desafio assumido na infância. “E sussurrava, só para mim, escrevendo sempre, sempre, no meu canto, quieto: só escrevo um livro quando tiver conseguido eliminar toda separação entre o livro e a vida, entre a vida escrita e a vida vivida, entre a minha e eu que escreverei, e sobretudo entre o leitor e eu”, revela aos pés do confessor pagão.

A confissão foi tomada como parte do lançamento de mais um livro invisível de Cecim, o romance Ó serdespanto. Lançado primeiro em Portugal, em 2001, divide-se entre poesia e prosa, ficção e ensaio, mesmo preservando um enredo básico. Um homem alado, espécie onírica de anjo decaído, aterra (no sentido amplo da ambigüidade do termo) em Andara e daí decorrem as ações necessárias às crenças do autor.

Isto posto, Ó serdespanto se anunciaria como um romance de vanguarda, ou pós-vanguarda como já proclamam os neoteóricos. E aí sobram comparações: Kafka, Heráclito, Nietzsche, Novalis e até Guimarães Rosa. Na verdade, estamos falando de outra coisa, embora as convergências não devam ser descartadas, Cecim é inovador, mas não vanguardeiro. Não sonha curar o mundo nem empunhar bandeiras de renúncia ao passado. Sua literatura está escudada, alicerçada na universalidade narrativa. Daí o trabalho com elementos tradicionais da narrativa: cenários, enredos, fundos psicológicos, direcionamento de idéias. Mesmo sua explosão de linguagem — como se vê no próprio título do livro — tem um sentido metafórico, outro componente da narrativa tradicional.

Então, onde a inovação que espanta a todos os leitores? Exatamente na reelaboração de todos estes elementos (aqui também no sentido natural do termo). “Busco escapar pelo retorno às Imagens, à matriz das Palavras. Tento, agora a Iconescritura”, revela. É isso. Cecim passa os limites da reinvenção lingüística para encontrar o novo de cada expressão. E assim sua literatura, sobretudo neste novo texto, fixa-se como uma ode à linguagem. Beletrismo puro. “É preciso ver num sonho/ a paisagem das verdades/ onde insetos vêm pousar em nossas mãos/ / Há palavras que os homens não dizem// Há águas tão amargas,/ filho,// que se recusam a devolver às fontes/ as antigas possibilidades musicais da espécie”.

Fica difícil até mesmo transcrever a prosa de Cecim. Ele privilegia os espaços, mas esta geometria tem uma função primordial em sua obra. Ao contrário da poesia, onde os espaços se prestam à métrica e ao ritmo, ou mais radicalmente ao concretismo, onde os espaços são parte indissolúvel da obra, aqui os espaços são pontos de reflexão. Embora de linhagem curta e rápida — uma compactação natural — esta não é uma obra de fácil leitura. Ela exige certo raciocínio, certa pausa para uma análise mais precisa dos seus dizeres. Daí a necessidade de paradas estratégicas, retomada de fôlego. Mais do que ritmo de leitura, eles — os espaços — pedem contemplações.

Voltando à entrevista-confissão já outras vezes citada, Cecim adverte: “Andara tem parâmetros, sim: mas não estão sendo buscados pelos leitores, pela crítica especializada em Literatura, não são parâmetros simplesmente literários: os parâmetros de Andara só podem ser achados na própria Vida. Para ler Andara, não basta saber ler letrinhas no papel, e, aliás, nem mesmo é preciso ler Andara: mas é indispensável conseguir ler através do lido: aí se renovará a Alegria que me foi transmitida pela florzinha que bebeu a água dos meus olhos quando eu era criança”. Tudo em Andara está a serviço do belo. E é só isso.

Só isso? O belo tem poderes indizíveis. Hoje se debate muito a pouca vendagem dos livros de Cecim. Um editor já deu queixas disso em uma entrevista. Mas há anos, numa redação de jornal, tentava escrever uma matéria qualquer enquanto ouvi a conversa de uma colega que entrevistava uma moça. Era uma dessas candidatas a modelo — belíssima, lembro bem — vinda do Pará. A jornalista quis saber seus autores preferidos, e a moça: Vicente Cecim. Como achei que ela apenas queria impressionar e homenagear o conterrâneo, não entrei na conversa. Hoje, a cada leitura dos textos de Cecim, vejo que ali estava o apelo à beleza. E chega um tempo em que o belo doma o mercado.

E mantendo-se no roteiro desta disponibilidade ao belo, a intimidade com o texto remete sempre à curiosidade de se saber, de fato, o que é Andara. A primeira leitura é de uma cidade mítica. Não tem como fugir à comparação: Andara, uma outra Macondo. E assim pode ter nascido. No princípio, Andara era mesmo uma bem trabalhada metáfora do espaço amazônico, com sua floresta a engolir cidades e vidas. Hoje Cecim até assume isso de maneira muito clara: “Andara me escreve, por isso escrevo Andara, que é a Amazônia transfigurada através de Mim”. Mas ela — Andara — é também verbo, ou melhor, o pretérito mais-que-perfeito da terceira pessoa do verbo andar, ou seja, expressão, linguagem. E linguagem andarilha, em constante movimentação. Tudo aqui, sobretudo Andara, se presta à metáfora e às transfigurações. Alquimia das melhores. O verbo transmutado em ouro.

A literatura de Cecim não fornece certezas. Nem mesmo se questiona. Presta-se ao exercício da literatura. Debruça-se sobre angústia, define dores, reelabora sentimentos. Briga com o mundo porque a vida é feita de sopapos. Nada vem de graça ou acontece pela vileza de apenas acontecer. E Andara é um legado de dores porque é uma maneira de se exaltar, defender e reverenciar a vida e todos os conflitos. E em termos literários, isso não é pouco.

Ó serdespanto
Vicente Franz Cecim
Bertrand Brasil
279 págs.
Vicente Franz Cecim
Nasceu em Belém do Pará. Desde 1979, dedica-se a elaborar Viagem a Andara oO livro invisível. Os sete primeiros livros — reunidos em A asa e a serpente e Terra da sombra e do não — receberam em 1988 o Grande Prêmio da Crítica APCA. Em 1994, Silencioso como o paraíso foi definido por Leo Gilson Ribeiro como “um dos mais perfeitos livros surgidos no Brasil nos últimos dez anos”.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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