Um russo sensível

Vladimir Korolenko apresenta ao leitor uma dimensão tenra e um tanto rara na literatura russa do século 19
Vladimir Korolenko autor de “O músico cego”
31/12/2016

Eis literatura russa. Assassinatos, guerras, traições, intrigas familiares, vícios, discussões políticas, sofrimento psicológico e a dura vida esmagada pela burocracia ou pelo ambiente. Parece uma tarefa difícil para o leitor brasileiro, que tem à disposição várias obras de uma mesma meia dúzia de autores do século 19, desassociar a escrita de Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov, Gógol e companhia de uma temática trágica e bruta, mesmo quando emulada a partir de elementos do romance francês. Por essa razão, entrar em contato com os livros de Vladimir Korolenko (1853-1921) pode apresentar uma faceta ainda desconhecida de uma das literaturas mais prolíficas e estudadas do mundo. Isso porque Korolenko, que parecia uma rara unanimidade entre seus pares — nunca lhe faltaram elogios vindos de Tolstói, Ivan Búnin ou Tchekhov —, pautou sua ficção por meio de um olhar sensível e humanista para o mais fraco, o injustiçado e o diferente.

Até então, apenas uma novela e um conto do avô do realismo socialista haviam sido publicados no Brasil. Em má companhia, em 1969 pela editora Paulinas, e O sonho de Makar, publicado em 2011 na Antologia do conto russo, lançada pela Editora 34. Agora, a editora Carambaia preenche parte dessa lacuna editorial com uma caixa que contem a reedição de Em má companhia e o romance inédito O músico cego, publicados respectivamente em 1916 e 1896. Nelas, o leitor descobre uma Rússia sensível, com histórias de afeto e certo cunho moral que sempre esteve alinhado ao pensamento do autor, envolvido com revolucionários intelectuais (os Naródniks), agitadores políticos e exílios na Sibéria — pouca coisa de novo na biografia de escritores russos, é verdade.

Humanismo
Por lições importantes de humanidade e uma narrativa que parte da visão infantil, não raro os dois livros eram leitura obrigatória nas escolas russas. Em má companhia, o narrador lembra, em primeira pessoa, como se deparou pela primeira vez, ainda criança, com a pobreza extrema, ao ficar amigo de um menino de rua, parte de uma turma de vadios excluídos até mesmo por outros vadios, que moravam em uma igreja abandonada na periferia de uma pequena vila. Vássia é filho de um respeitado juiz (como o pai do autor), viúvo há pouco tempo, para quem a esposa, aos olhos do menino, representava o único elo de conexão e amor entre ele e os dois filhos. Valek, por sua vez, é irmão da encantadora garotinha Marússia e filho do temido e sábio Tibúrtsi, um mendigo e ladrão com fluência em latim e uma filosofia de vida pragmática e colada à sua realidade, como o capitão Wolf Larssen, que Jack London descreveu em O lobo do mar (1904).

A improvável amizade dos dois meninos explana um choque de classes em que não há ódio por nenhuma das partes. Valek aceita as visitas do narrador e Vássia, por sua vez, tenta a todo custo entender o estilo de vida levado pelas pessoas da capela, a ponto de criar laços afetivos fortes que passam por cima do medo filial ante o irascível e temido pai e da noção infantil de certo e errado. Em dado momento do livro, quando os rejeitados estão comendo carne roubada de um capelão e Vássia esboça um comentário condenatório sobre o roubo, Tibúrtsi diz: “Você ainda é bobo e não entende muitas coisas. Mas ela entende. Diga, Marússia: fiz bem trazendo carne para você?”, ao que a menina mais nova responde afirmativamente com um sorriso. Nesta pequena passagem está a complexidade que Korolenko gostaria de começar a introduzir no pensamento linear e maniqueísta de seus leitores mais jovens.

Já em O músico cego, narrado em terceira pessoa, acompanhamos a vida de Piótr, um menino que nasce sem o sentido da visão e para quem o mundo é desvendado através dos sons, mas principalmente por meio da música. Novamente, as hostilidades com o diferente são substituídas por um afeto familiar e amoroso, por meio da menina Evelina, por quem Piótr se apaixona. Ao final, cria-se uma metáfora para a recuperação de seus olhos quando o protagonista decide ajudar quem precisa, “lembrar aos felizes dos infelizes”.

Por meio dessas duas histórias, é possível verificar que há pouca distância entre o que Korolenko viveu e escreveu. Conforme conta a professora da USP Elena Vássina no prefácio da edição, Korolenko e Dostoiévski salvaram pessoalmente milhares de vidas durante o período de fome entre 1891 e 1892. A experiência foi registrada no livro No ano da fome. Observações e anotações do diário.

O valor da terra
Se contadas assim, as tramas de Korolenko podem soar um tanto pueris. É no procedimento, porém, que o autor se separa do simplismo em que baseia sua fábula. Com construções textuais estabelecidas em descrições e um sensível psicologismo, o autor, nascido no território do Império Russo onde hoje fica a Ucrânia, volta-se para o campo e para as pessoas simples a fim de exaltar os valores da terra, sem com isso deixar de ocidentalizar sua narrativa, como fizeram também Tolstói, Gógol e Leskov. Em O músico cego, o jovem Piótr a princípio não se interessa pelo piano vienense que a mãe manda trazer do estrangeiro, com melodias engessadas e ocidentais. Ao contrário, prefere a flauta rústica de bambu do mujique Iókhim, que toca tristes melodias populares ucranianas:

“vencer um pedaço de salgueiro ucraniano estava nitidamente acima das forças do instrumento vienense. Apesar de que o piano tinha armas potentes: madeira cara, as excelentes cordas e o excelente trabalho de mestre, o registro amplo e rico. Em compensação, a flauta ucraniana tinha muitos aliados, porque ela estava em sua pátria e em seu próprio ambiente a natureza ucraniana.”

A “natureza ucraniana” era cara ao autor. Ele, que cresceu dividido entre a origem polonesa e ucraniana de sua família, guarda traços biográficos muito próximos com os protagonistas de Em má companhia e O músico cego, a começar pela cidade natal. Acreditava que o escritor deveria ser o representante máximo de seu povo, e só depois da revolta polonesa contra o Império Russo em 1863, quando teve de escolher lados, Korolenko abraça sua herança russa para fazer de suas histórias representantes da boa e justa alma de sua gente. Seu humanismo ligado à sua representação da pátria conferiu a sua obra uma autenticidade que, mesmo com suas críticas tanto ao czarismo quanto à violência bolchevique, perdurou durante a era soviética com uma honradez inquestionável.

Contribuição às gerações futuras
Se os escritores da era de ouro da literatura russa buscavam as raízes tradicionais de seu povo com certa distância de classes — sendo a sua imensa maioria filhos da nobreza russa — Korolenko, cujo pai faleceu quando o autor tinha quinze anos, deixando a família sem sustento, foi um dos primeiros a experimentar de perto a miséria e a fome, e escrever a partir de sua experiência. Pode-se dizer que, de certa forma, Korolenko contribuiu em muito com uma deselitização da literatura russa. Sua obra inspirou muitos escritores do século 20 de diferentes estilos e de origens nada nobres, entre eles o jovem romancista Máximo Górki, que a propósito, não sabia nem quem era seu pai.

Não apenas Górki. Mikhail Sholokhov era filho de um cossaco pobre; Ivo Andric, de um faxineiro de escola; Leonid Leonov era apenas um pobre poeta autodidata; Alexander Fadeyev, também autodidata, já era um guerrilheiro aos 17 anos, e assim por diante. Korolenko, ao “lembrar aos felizes dos infelizes”, antecipa uma nova era de ideais literários e políticos em seu país. Mal poderia prever que na Rússia atual, a sua atenção simpática às minorias seria uma atitude extremamente impopular. Mas isso é outra história.

O músico cego
Vladimir Korolenko
Trad.: Klara Gourianova
Carambaia
208 págs.
Em má companhia
Vladimir Korolenko
Trad.: Klara Gourianova
Carambaia
120 págs.
Vladimir Korolenko
Nasceu em 1853 no Império Russo, em Jitomir, hoje uma cidade da Ucrânia. Atuou como ativista dos direitos humanos, jornalista e escritor, tendo publicado uma série de romances e relatos relacionados a suas vivências.
Yuri Al'Hanati

Formado em jornalismo pela UFPR, mantém o canal Livrada. Publicou contos nas revistas Arte e Letra: Estórias e Jandique. Seu conto Hominho integra a coletânea Livro dos novos (Travessa dos Editores). É autor do livro de crônicas Bula para uma vida inadequada (Dublinense).

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