O romance Rei do cheiro, de João Silvério Trevisan, conta a história do menino Ruan Carlos e de seu irmão gêmeo Carlos Ruan, ambos nascidos e criados em Pirineu Paulista. Ruan, ainda bem jovem, vai para a capital para vencer na vida. Lá se torna amante da dona da pensão em que se hospeda, explora-a financeiramente, aplica na bolsa, compra duas lojas na 25 de março e monta uma fábrica de produtos de perfumaria. Casa-se com uma jovem, tem um filho, compra seu primeiro carro, um Fusca.
É um enredo simples em cenário bem conhecido — São Paulo, pensão, prostituição, negócios escusos, etc. Anos 60, rádio, tevê, rock e hippies são citados em demasia através de letras de música, falas de rádios da Rádio Tupi de São Paulo. Na verdade, o autor usa e abusa de textos que fazem parte do imaginário da cultura brasileira, como por exemplo, letras de MPB. Os textos são transcritos, em algumas passagens, não apenas como citações, mas como complementos da linguagem do autor. Esse recurso não resulta numa narração original, ao contrário, torna-a cansativa — tem-se a sensação de tirar roupa velha do baú e respirar toda a poeira acumulada.
A construção do personagem se dá por colagem de situações ligadas à malandragem e a fetiches: comer a dona da pensão, depois a gerente do banco em que Ruan faz empréstimos, fazer promessa para Nossa Senhora Aparecida, enfim, de caricaturas da ignorância e da safadeza brasileira. Nesses casos, o uso excessivo de clichês e palavras de baixo calão torna o texto sujo e não transmite a sujeira que insinua. Expressões como “caverna profunda”, “buceta”, “bucetona”, “chupar”, são usadas com o propósito de retratar a realidade ou de provocar o leitor médio? Penso que se trata de recurso artificial, assim como o é uma fita pornográfica em que pintos, bucetas e afins são expostos com tesão fabricado.
Não percebo tesão no Rei do cheiro. O tesão da escrita. Percebo a tentativa do autor de amarrar em torno de um personagem parte da história da cultura brasileira. Se for esse o propósito, o autor não chegou lá, não há orgasmo, mas punheta em torno de um tema sem dúvida denso demais para ser amarrado. No máximo, o tema poderia ser abordado, nunca esgotado, nem ser reduzido a um recurso de linguagem.
Ruan não tem personalidade. É caricato. Máscara. Atrás dela, nenhuma vida. É um personagem volátil, sem estrutura interior e, exteriormente, tem apenas a roupa do palhaço, não a sua dor. E como pode um personagem de romance não sentir dor? Sua riqueza material cresce sem obstáculos. Ele se envolve com tráfico de cocaína. Investe em fabricação de produtos cujas matérias-primas são da Amazônia. As mulheres são suas auxiliares nessa escalada para a riqueza e o poder. Elas não passam de figurantes de uma alegoria pouco original.
A parte mais valiosa do texto é a de caráter histórico. O autor faz um apanhado do Brasil, desde os anos 50 até os dias de hoje, através de citações de momentos-chave de nossa história, de manifestações culturais, notícias em geral. Infelizmente, isso não serve de cenário a uma história sem conteúdo. O personagem Ruan é didático, ele fala por si, num falso monólogo, porque ele não está sozinho, quer atingir o leitor, ele deseja se exibir. Não há conflito em sua vida, ele a constrói de acordo com seus interesses, livremente. A corrupção inerente a esse processo é mote para uma narrativa pornográfica. Corrupção, pornografia e manifestações afins não são destituídas de conteúdo, ao contrário, são matérias-primas densas e poéticas, como o são todas as manifestações humanas. Cabe ao artista esculpi-las e não apenas fotografá-las com a informalidade de repórteres do cotidiano.
Uma passagem que dá uma boa idéia do romance é a seguinte:
Vamos animar essa porra de festa, meu motorista salvou a noite três papelotes é melhor que nada tá cheio de mulherão por aí, pinto pra que te quero? Acorda que eu quero foder, porra. O que você quer já era, Ruan. Agora só dá pra olhar. Um pingulim molenga. Virou enfeite. Porra essa farinha não tá dando liga então só mais uminha, cara. Tudo aí dependurado sem função, Ruan. E o saco, pra que te quero? Sabão cricri sabão cricri não deixa os cabelos do saco cair ahahahahahahaha a gente somos inútil. Mais uma. Nariz é pra isso, Ruan. Para encher de felicidade. Esta tem que bater mais legal porra quem será o filho da puta que está na privada do lado tá cagando fedido demais cara. Mão, pra que te quero? Pra agarrar as tetas dela. Minha deusa onde anda a minha pitchulinha não atende nem o celular porra dizem que anda doente vai ver arranjou outro. Dinheiro, pra que te quero? Para conquistar essa mulher de volta, Ruan. Pensar em tudo o que eu já lhe dei ela não sabe o que está perdendo agora exporto pra América Latina inteira e se tudo der certo pra França logo logo e depois quero chegar no Japão e na China um produtor internacional porque eu não saí de Pirineu Paulista à toa.
O recurso de não pontuar frases e orações, misturar gramática tradicional e pretensas inovações gera artificialismo e irrita o leitor exigente. Renovar em linguagem requer mais do que uma decisão racional, mais do que intenção de fazer diferente. Infelizmente, há muita gente acreditando no artificialismo como meio de criação.
O romance tem seu momento trágico com um seqüestro de grandes proporções, envolvendo a nata da sociedade: políticos, ricaços, empresários, bispos, artistas, traficantes, mafiosos, enfim, a corruptela nacional. O autor “pegou” a faceta suja do Brasil, jogou muita tinta, merda e urina e fez um retrato que não é surreal, mas grotesco. Há alusões a movimentos artísticos. É perceptível uma tentativa de retomada de Macunaíma, herói sem nenhum caráter, mas, infelizmente, o autor ficou longe de evocar a obra poética que Mário de Andrade criou partindo de nossas raízes, um símbolo cultural.
Rei do cheiro é um romance kitsch, a começar pela capa didática que assusta pelo colorido forte, picante, desarmônico, o que não desvaloriza o designer, afinal, ela reflete o texto que apresenta.