Um romance em forma-sonata

"Dor fantasma", de Rafael Gallo, é uma narrativa cheia de situações inusitadas que mantêm o suspense e, em consequência, o interesse do leitor até o final
Rafael Gallo, autor de “Dor fantasma” Foto: Wilian Olivato
01/06/2023

Já se tornou lugar-comum imaginar o grande artista como uma alma atormentada que quanto mais infortúnios viver tanto mais matéria-prima terá para seu trabalho. Exemplos não faltam na literatura, nas artes plásticas, na dramaturgia. Na música, talvez o de Ludwig van Beethoven seja o mais eloquente. Um dos maiores gênios de todos os tempos, que elevou a música — e toda arte — a níveis ainda não superados, consta que era também um homem de difícil convivência, muitas vezes irascível, em parte porque, à medida que ascendia em sua fulgurante carreira, ia perdendo paulatinamente a audição até terminar seus dias quase em completa surdez. Poderia haver pior sina para alguém que tenha erigido um monumento sonoro como a Nona sinfonia não ter conseguido jamais ouvi-la? Nem aos aplausos que se seguiram à sua estreia? A Sinfonia coral, cujo último movimento trouxe a grande novidade, para a música sinfônica do início do século 19, de um quarteto de vozes e de um coro, chamados a encerrá-la triunfalmente com uma Ode a alegria!

Dentre as muitas contribuições que a música deve ao gênio de Beethoven está o aprimoramento da forma-sonata e sua consolidação como talvez o mais importante conceito da composição musical. A forma-sonata é, simplificando-se aqui ao máximo, uma estrutura que consiste em: (1) a apresentação de dois temas contrastantes, (2) o desenvolvimento desses temas e (3) a recapitulação dos temas. A esse conjunto pode se agregar uma introdução; às vezes, também uma coda (final) após a recapitulação. O modelo da forma-sonata pode ser encontrado tanto em peças avulsas quanto em movimentos de obras sinfônicas, de concerto, de música de câmara ou mesmo de sonatas para um ou mais instrumentos.

A esta altura, o (não sem razão) impaciente leitor deve estar se perguntando o que os dois parágrafos escritos à guisa de preâmbulo têm a ver com Dor fantasma, o mais recente e premiado romance de Rafael Gallo, obra que se pretende aqui resenhar. O resenhista roga então por um pouco de paciência, algo tão escasso no mundo hoje em dia, e logo as respostas todas virão, tudo se encaixará, caso contrário seu trabalho terá fracassado.

Comecemos por apresentar o entrecho do romance: Rômulo Castelo, pianista de prestígio e catedrático da cadeira de piano numa universidade brasileira, tem como objetivo nada modesto ser reconhecido como o maior intérprete vivo da obra pianística de Franz Liszt e prepara-se para uma turnê europeia onde pretende estrear uma peça do mestre húngaro, o Rondeau fantastique, considerada “intocável” dado seu grau de dificuldade. Ele vem se preparando há anos para essa empreitada, com a disciplina que aprendeu com o pai, um respeitado regente já saído de cena. Rômulo é um ególatra desdenhador de tudo o que não seja seu único interesse na vida. Sua pequena família compõe-se da mulher, com quem só se casou por causa de uma gravidez indesejada, e do filho, nascido com uma severa deficiência. Para fugir de tais atribulações mundanas, quando não está lecionando tranca-se em casa para cumprir, em seu piano Steinway, uma intensa rotina de estudos. Na universidade, Rômulo veste a pele do algoz que massacra os alunos ao tentar impor-lhes o mesmo nível de exigência que impõe a si próprio.

Imagine-se agora um indivíduo pernóstico e autocentrado por natureza sofrendo um acidente a poucos meses de sua turnê fantástica e cuja consequência seja a amputação da mão destra. Como Rômulo enfrentará essa verdadeira tragédia em sua vida, uma vez que o casamento, os alunos e até mesmo o filho, a despeito de sua triste condição, são para ele estorvos, percalços que tem de enfrentar na trilha de uma obsessão. Eis o grande conflito da história, e como ele se desenrola não se poderá aqui adiantar.

Paradoxo
Gallo vale-se de um narrador em terceira pessoa focalizado em Rômulo, o que propicia ao leitor conhecer na intimidade um personagem dos mais complexos. A contradição existente entre o artista que almeja honrar o trabalho de um grande compositor executando com perfeição sua obra e o ser humano deplorável que desfaz estúpida e metodicamente na própria vida tudo o que constrói com tanto empenho na arte é sem dúvida seu aspecto mais fascinante. Esse paradoxo também acompanha o sentimento do leitor, que ora se identifica e se sensibiliza com as convicções de Rômulo sobre seu trabalho, seja na condição de intérprete ou de professor, ora repudia o ser abjeto em que ele consegue facilmente se transformar.

Apesar de Rômulo ser uma personalidade que tende sempre aos extremos dessa hipotética balança, a dubiedade também o afasta do idealizado e o faz humano em sua essência. Noutras palavras, as contradições do personagem se resolvem nele mesmo, independentemente de como o conflito da história se resolverá. Não que o tratamento e a resolução do conflito sejam desimportantes. Usando a força magnetizadora do protagonista, Gallo cria em Dor fantasma um thriller psicológico cheio de situações inusitadas que mantêm o suspense e, em consequência, o interesse do leitor até o final.

Rafael Gallo é também músico e demonstra dominar muito bem o universo onde pisa ao escrever uma obra tão rica em sutilezas que não fazem parte do repertório do público leigo. Muito dessa organicidade advém de um aspecto curiosíssimo: o romance simula o modelo da forma-sonata, de que se falou no início. Ele se organiza em quatro partes, três delas intituladas a partir daquele modelo — Coda, Exposição e Desenvolvimento — a que se une uma Cadenza, outro termo emprestado da música que significa o momento de um concerto reservado ao solista para que ele exercite sua virtuosidade.

Belo efeito
Neste ponto, um leitor mais atento notará a estranheza de a obra começar por uma coda, ou seja, pelo final, sem que a linha cronológica tenha sido alterada. É algo intrigante do ponto de vista formal, uma vez que não há retórica no mundo capaz de alterar o fluxo dos acontecimentos para fazer o final vir antes da história (ou seja, o efeito antes da causa), a não ser em soluções como o flashback ou o in finis res que necessariamente passam pela estratégia de narrar os fatos fora de sua ordem natural. A solução criada por Gallo é metafórica e de belo efeito: na Coda de Dor fantasma encontramos a construção minuciosa do protagonista e o acidente que o inutilizou para seu grande projeto na vida. Ainda antes disso, o livro abre com uma inspirada descrição daquilo que o narrador, num magnífico momento de intrusão, antecipa ser o último recital de Rômulo Castelo.

O que se segue à insólita coda é a exposição de dois temas — os dois lados contrastantes de uma mesma e excêntrica personalidade — e o desenvolvimento exaustivo desses temas, culminando numa cadenza virtuosística. Esse é mais um paralelo possível a ser feito com Beethoven: o gênio alemão trabalhava com economia de elementos que ele fazia render através de sofisticados exercícios de desenvolvimento temático (um exemplo: as célebres oito notas da abertura da Quinta sinfonia são a matéria-prima sobre a qual Beethoven constrói toda a obra). Mais importante do que o tema é sempre o trabalho de desenvolvimento desse tema: é ele que põe à prova a virtuosidade do compositor. Esse mesmo conceito se aplica à literatura e, muito em especial, a Dor fantasma.

Gallo tem uma prosa elegante que preza a eufonia e o ritmo das frases. Algumas soluções talvez tenham surgido por influência da retórica musical. Uma delas, em especial, é a da ênfase pela repetição. Em literatura, o recurso de se dizer “de outra forma” o que acabou de ser dito, com o objetivo de se enfatizar a ideia, geralmente é percebido como vício e não como virtude estilística. No presente caso, funcionam como notas dissonantes (poucas, é bem verdade), só referidas aqui porque chamam muito a atenção num conjunto tão harmônico.

Dor fantasma é uma obra de rara beleza e originalidade. Merecedora do José Saramago, um dos mais importantes prêmios das letras lusófonas, por certo renderá ainda outros muitos reconhecimentos a seu autor.

Dor fantasma
Rafael Gallo
Biblioteca Azul
350 págs.
Rafael Gallo
Nasceu e vive em São Paulo (SP). Estreou na literatura ao vencer o Prêmio Sesc de Literatura em 2012 com a coletânea de contos Réveillon e outros dias. Seu primeiro romance, Rebentar (2015), venceu o Prêmio São Paulo de Literatura. Dor fantasma mereceu o Prêmio José Saramago de Literatura em 2022.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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