Um romance de amor?

Em “Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios”, prosa de Marçal Aquino volta a explorar rincões e dramas brasileiros
Marçal Aquino: “Ando um pouco menos pessimista”.
01/12/2005

Há tempos, Marçal Aquino vem flertando com a construção de uma grande história de amor — essa possibilidade se apresenta em diversos de seus contos —, e é isso o que ele nos oferece em seu novo livro, Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Mas quem acompanha a trajetória do autor sabe que de sua imaginação nunca brotaria uma lovestória, aquela cujas provações emulam uma fábula moralizante ou antecipam um futuro estável de preservação de valores. Quem o conhece está acostumado às suas investigações a respeito do caráter humano, aos seus processos de laceração das feridas que corroem a alma, à sua profunda desconfiança em relação à Verdade como conhecimento em si — grande autor que é, percebe quão pouco nítidos são os limites entre conceitos como bem e mal, certo e errado, amor e ódio.

Sempre estranhei o lugar que a crítica destina a Marçal Aquino, ainda que em relação a ele não haja, o que é ótimo sinal, um consenso. Ora enquadram-no no rol dos autores policiais, ora nos escaninhos dos “marginais”, mas sempre entre os que hoje escrevem a história do Brasil urbano e pós-industrial. Nada, talvez, mais redutor de sua obra. A literatura policial, apegada ao modelo norte-americano, assenta-se sobre uma moral (qualquer que seja ela), visando uma reordenação do mundo momentaneamente desarticulado — distante demais do problemático universo de Aquino, cujos personagens tateiam lugares onde pouca coisa ainda faz sentido.

Tentar incluí-lo entre os autores da chamada “literatura marginal” torna-se um despropósito, por dois motivos diferentes mas complementares: os personagens de Aquino não são “marginais”, estão à margem da sociedade não por opção, mas por “acidente”; e não se revestem da caracterização maniqueísta que costuma marcar essa produção. Os complexos personagens de Aquino, geralmente oriundos da classe média baixa, mostram profundo desconforto com sua situação, desejando todo o tempo a reinclusão na sociedade, ainda que, no mais das vezes, isso seja uma impossibilidade.

Finalmente, inserir Aquino entre os autores que elegem prioritariamente o urbano como campo de ação é talvez desconhecer grande parte de sua narrativa, que privilegia, na verdade, as fímbrias da sociedade capitalista, os pouco explorados rincões do Brasil, regiões geograficamente fronteiriças onde não chegaram ainda a lei e a urbanidade. As fronteiras, como sabemos, erigem-se em espaços físico e imaginário ideais, por representarem as possibilidades de ultrapassagem e fuga, por encarnarem a relatividade das condutas morais e legais. Nesse sentido, Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é um ótimo exemplo da proposta concebida por Marçal Aquino desde seus primeiros escritos, o que, aliás, se explicita no próprio título de seus livros anteriores, que iremos trazendo à tona aos poucos.

Calvário de culpas
Narrado em primeira pessoa — à exceção do segundo capítulo, em terceira —, Eu receberia… é a história da paixão avassaladora de Cauby (sim, “igual ao cantor”) por Lavínia, numa dessas pequenas cidades do interior do Pará que nascem do dia para a noite em função da exploração de ouro. Cauby, 40 anos, é um fotógrafo paulista, relativamente bem-sucedido, filho de um também repórter fotográfico esportivo e de uma descendente de barões do café arruinados. Entediado, ganha uma bolsa de uma agência francesa para retratar o submundo do garimpo. Lavínia, capixaba, 24 anos, 1,68m, 63 quilos, ginasial incompleto, cujos olhos “tinham antiguidade e abismos”, é uma ex-menina de rua, ex-prostituta, ex-drogada, casada com um pastor evangélico, Ernani, viúvo, ex-executivo, que pensa ter encontrado na religião a salvação de sua própria alma. O que em outras mãos poderia render o clássico triângulo amoroso, nas páginas de Aquino transforma-se em um calvário de culpas.

A desagregação do núcleo familiar é uma tônica nas narrativas de Aquino. Transbordam de seus livros personagens desgraçados pela incompatibilidade de viver a dois ou de manter vínculos afetivos de laços sangüíneos — são as famílias terrivelmente felizes. Em Eu receberia…, Cauby, adolescente, apanha do pai por manter, sem saber, uma relação com a amante desse. “Gente neurótica e infeliz, […] que nunca poderia ter se encontrado na vida”, seus pais não se entendem — a reconciliação de Cauby com eles só ocorrerá anos e anos depois, quando de nada adiantará, ao descobrir que o pai fotografara a mãe nas diversas etapas de sua vida em comum, entrevendo, em meio à infelicidade, um talvez resquício de amor.

Lavínia, filha de uma relação fortuita da mãe alcoólatra, amontoa-se em um barraco em Linhares (ES) com os irmãos, que, drogados, tornam-se assaltantes. Estuprada pelo padrasto, também alcoólatra, foge e perambula às cegas por Guarapari e Vitória, onde acaba amante de um playboy. Abandonada, volta às ruas, prostituindo-se para adquirir drogas, até conhecer o pastor Ernani, que, apaixonado, casa-se com ela, muda-se para São Paulo e depois para o interior do Pará. Desde sua fuga, Lavínia nunca mais procurou o que restava de sua família, pois “não gostava deles a ponto de sentir saudades”.

Também é recorrente na ficção de Marçal Aquino a imagem da cabeça a prêmio. Aqui, quase todos os personagens têm percepção de que sua existência incomoda a sociedade. A paixão proibida de Cauby e Lavínia coloca-os como alvo prioritário, mas também trafegam no limite Chang, dono de uma loja de material fotográfico, agiota e pedófilo; Viktor Laurence, jornalista assexuado, dono de um semanário mantido pelas mineradoras, que destila veneno em sua coluna social; Chico Chagas, matador; os garimpeiros acossados pelos “seguranças” das mineradoras; e o próprio pastor Ernani, por motivos que o leitor descobrirá nas páginas do livro.

O invasor — personagem que, saindo de seu universo restrito, desequilibra a frágil ordem estabelecida — é aqui também muito bem representado. Cauby, o “forasteiro charmoso”, é culto, dono de uma pequena biblioteca, amante da música clássica, um “civilizado” em meio à “barbárie” — sua simples presença na cidade é desestabilizadora. Mas também o pastor Ernani, que busca levar a palavra da salvação, a ética da religião, às ovelhas desgarradas em um mundo sem crença; o investigador Polozzi, que tenta assumir a lógica policial num lugar onde detém o poder quem tem o dinheiro; e Lavínia, pela liberdade com que desfila sua beleza e juventude pelas ruas da cidade. Todos eles invasores.

Espelhos
É curioso como Marçal Aquino trabalha com a imagem do duplo nesse romance, espelhos que se reproduzem infinitamente. Cauby aceita fazer cartões pornográficos de prostitutas para ganhar dinheiro — um trabalho que conscientemente repele, pois seu interesse, digamos assim, seria pela “fotografia artística”. O contraponto é seu pai, também fotógrafo, que com as fotos de futebol teria se deixado prostituir, segundo a concepção do filho, mas que tem sua dignidade resgatada com a descoberta das fotos de nu artístico da mãe. Esse espelhamento se dá também com Chang, fotógrafo amador que faz retratos de gente assassinada para a constituição de inquéritos policiais, trabalho no qual seria substituído por Cauby, após sua morte brutal. A obsessão pela fotografia, que também acomete Lavínia… Enfim, esse tema daria um tratado…

São modelos especulares ainda Viktor Laurence e Cauby, ambos cultos e poderosos a ponto de se sentirem superiores aos outros humanos — suas diferenças emergem no animal de estimação que cabe a cada um: um gato, Camus, do primeiro; um tatu, Zacarias, do segundo… Lavínia é por si só espelho de si mesma, devorada por um transtorno de personalidade que a divide em duas: uma, recatada e depressiva, outra, tresloucada e maníaca. À segunda, Cauby nomeará Shirley, libertina e doidivanas; à primeira, nomearão Lúcia, desmemoriada e afundada na auto-alienação.

Outro espelhamento ocorre entre as histórias, rigorosamente idênticas, de Cauby e Altino. O “careca” Altino sustentou um amor louco e casto por uma colega do Banco do Brasil, Marinês — quando, jovem, ela não correspondia à sua paixão, mas alimentava-a. Ele viveu das migalhas de sentimento até que a morte do noivo, pouco antes do casamento, corrói a razão de sua Dulcinéia. Levada pela mãe, volta àquela pequena cidade do interior do Pará, acompanhada por Altino, que abre mão de tudo apenas para cuidar dela, para estar perto dela, vivendo dela e para ela. As histórias de Cauby e Altino nos sugerem o perigo que é mexer com o amor e outros objetos pontiagudos. Ainda dentro da perspectiva da especularidade poderíamos lembrar o ficcional “filósofo do amor”, Benjamin Schianberg, cujo livro O que vemos no mundo pontua e comenta a narrativa de Cauby, com suas tiradas ora cínicas, ora autocomplacentes, mas sempre visando uma estranhíssima auto-ajuda, com frases como “nenhuma vida está completa sem um grande desastre”…

Marçal Aquino pode ser considerado o continuador e renovador mais identificado com a obra de Rubem Fonseca, responsável pela modernização da narrativa brasileira. Mas, enquanto Fonseca problematizou a cidade em seus contos e romances, Aquino pretende mostrar como o crescimento desordenado ultrapassou os limites urbanos e ganhou os rincões — com suas frases e diálogos curtos e certeiros, sua auto-ironia, sua absoluta falta de complacência, única narrativa possível, talvez, para contar a nossa conquista do oeste, os nossos faroestes.

LEIA A ENTREVISTA COM MARÇAL AQUINO

Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios
Marçal Aquino
Companhia das Letras
229 págs.
Marçal Aquino
Nasceu em Amparo (SP), em 1958. É jornalista, roteirista e escritor de ficção adulta e juvenil. Já publicou os livros de contos O amor e outros objetos pontiagudos, Faroestes, As fomes de setembro, Miss Danúbio e Famílias terrivelmente felizes, e os romances O invasor e Cabeça a prêmio. Entre os filmes que já escreveu estão Nina, Os matadores, Ação entre amigos, O invasor e Crime delicado.
Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

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