Um revoltante burocrata

O narrador de “O amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos, é irritante, de personalidade patética, preso a uma vida modorrenta
Cyro dos Anjos, autor de “O amanuense Belmiro”
01/12/2006

Aos 38 anos, o amanuense Belmiro Borba decide, pela terceira vez, escrever suas memórias. Sobre a cova onde enterrou as tentativas anteriores — nos fundos da casa humilde, na rua Erê, em Belo Horizonte — nasceu uma planta vulgar, tão comum e tão destituída de atrativos quanto o amanuense ou seus escritos: uma bananeira. O próprio Belmiro se considera “um fruto chocho” da árvore genealógica de sua família, pois não encontra em si “a força, o poder de expansão, a vitalidade dos antepassados” e, principalmente, do pai, que lhe dizia, com amargura: “— Como Borba, você faliu”. Na juventude, depois de abandonar a fazenda para estudar agronomia, Belmiro pôs-se a conviver com literatos e “a sofrer imaginárias inquietações”. Quando o pai percebeu, já era tarde.

No início de seus exercícios de rememoração — objetivo inicial do narrador de O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos —, ele afirma reconhecer em si mesmo “certa dissolução do espírito” e recorda a fala de Glicério, um colega da repartição: “— Você é um homem errado, Belmiro!”.

Logo entenderemos as razões de Glicério, mas, por enquanto, basta saber que nada persevera na vida do amanuense, incluindo o propósito de escrever suas memórias. Os saltos de tempo que permeiam os capítulos iniciais revelam uma completa falta de ânimo para levar adiante qualquer projeto. Belmiro se apresenta, assim, como a figura do fastio, e as memórias se transformam em um diário relativamente curioso.

Página a página, delineia-se uma personalidade patética, alimentada somente de impossibilidades, um homem para o qual a urgência de viver não existe, cujas poucas decisões nem sabe ao certo como e por que as tomou. Trata-se de um narrador irritante, resignado a viver em uma casa de assoalho apodrecido, sob o qual os ratos procriam, e na companhia de duas irmãs obtusas: Francisquinha, realmente louca, de tempos em tempos internada em um manicômio; e Emília, estranha a ponto de, durante as refeições, colocar diante de si um anteparo de papelão, a fim de não olhar para Belmiro.

Esse “incorrigível produtor de fantasias, a retalho e por atacado”, como ele se define, esforça-se por não viver. Evita, inclusive, expressar-se em demasia: fala e escreve pouco. Jandira, uma amiga, classifica-o como “analgésico”, e ele afirma não só distanciar-se de qualquer inconformismo, mas chega a sentir “ternura” pelo edifício em que trabalha.

Tergiversando com os fatos, com toda a vida, reconhece, no entanto, adular “em todos os tempos e modos”. É um homem insignificante, que poderia ser o destinatário de uma das visões místicas que compõem o Apocalipse: “Conheço tua conduta: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca”. Exemplo acabado de acídia, o narrador de O amanuense Belmiro chega a ser revoltante.

Retórica e dissimulação
A repulsa que esse narrador provoca nasce também da visão distorcida que ele tem de si próprio e dos outros. A voz que fala em primeira pessoa, que relata suas poucas reflexões e seu dia-a-dia medíocre, nem sempre é o personagem real, que assina o ponto na Seção de Fomento e usa pince-nez, mas o resultado de uma mente que se perde em lucubrações. Ele afirma conhecer-se, mas é traído por seu discurso, que o denuncia, apresentando-o em sua frouxidão.

Certa madrugada, os latidos de um cachorro da vizinhança o impedem de pegar no sono. Belmiro atira, então, um sapato velho pela janela, mas age consciente de que o faz na direção errada, comportando-se assim para descarregar a irritação momentânea. Ao narrar o fato, apega-se a um pensamento atribuído a Montaigne, com o qual diz concordar: “A alma descarrega suas paixões sobre os objetos falsos, quando faltam os verdadeiros”. Tal argumentação não passa, contudo, de uma retórica capciosa, usada — conscientemente ou não, jamais saberemos — para justificar sua fraqueza. Os “objetos” reais estão à mão, a vida pulsa e se oferece, mas ele se recusa a viver, optando pela solução menos trabalhosa. No caso, jogar o sapato na direção errada. Revela-se, desse modo, um dissimulado — ou um delirante —, incapaz, entretanto, de enganar seus leitores.

Mais à frente, define-se como “um amanuense complicado, meio cínico, meio lírico, e a vida fecundou-me a seu modo, fazendo-me conceber qualquer coisa que já me está mexendo no ventre e reclama autonomia de espaço”. Novas mentiras. Ele não é nem cínico nem lírico. Talvez superficialmente lírico, mas falta-lhe estofo para o cinismo. Resume-se, na verdade, a um inútil, que, poucos parágrafos depois, anota, num breve momento de lucidez: “Minha vida tem sido insignificante”.

Em um de seus raros desabafos, reclama: “Quero rir, chorar, cantar, dançar ou destruir, mas ensaio um gesto, e o braço cai, paralítico”. A verdade, contudo, é que nada pulsa em Belmiro e suas reclamações não convencem. A vida sempre o toma de assalto. No carnaval, andando pelas ruas, vê-se “inesperadamente” envolvido por um cordão e é arrastado pelos quarteirões como um espantalho. Sua permanente impassibilidade transforma esses tímidos reclamos em meros exercícios de retórica.

Sem convicções, entregue à inércia, constrói uma imagem distorcida de sua personalidade. No capítulo 24, aparentando estar indignado com os sentimentos platônicos que passou a nutrir por uma jovem que encontrara, afirma: “Reajo com virilidade contra essa ridícula história da noite de carnaval”. Mas não há qualquer virilidade ou reação, pois não só voltará aos idílios pueris, mantendo-se incapaz de uma decisão, como, no final do capítulo, arremata, pleno de espantoso vigor: “É preciso fazer qualquer coisa. Sobretudo tomar um sorvete, pois a noite está quente”.

Pouco antes, ao pensar em Carmélia, a jovem do baile carnavalesco, escreve: “A solidão fez com que eu revivesse um processo infantil e o velho mito de Arabela perseguia-me sempre. Uma noite de carnaval, cheia de sortilégios, fez-me encarná-lo nessa donzela Carmélia, que não tem culpa de coisa alguma”. Em sua mente fantasiosa, realmente imagina que a noite foi “cheia de sortilégios”, mas a verdade lhe será exposta, sem rodeios, por Glicério, no capítulo 43. Tendo conversado com Carmélia, de quem freqüenta a casa, o colega de repartição ouve da jovem o relato do momentâneo encontro com Belmiro, que se resume à visão de um homem maduro e bêbado, assistindo maravilhado ao baile e, segundos depois, desmaiando.

Ao comentar sobre suas pobres variações de humor, Belmiro diz: “Em todo este esboço de livro, um problemático leitor futuro sentirá os abalos que tais desnivelamentos determinam”. Novamente, a retórica — o único recurso de que ele dispõe para inocular um pouco de vida aos seus dias — é empregada para exagerar o que se passa em seu íntimo e, também, justificar sua existência pequena. Não existem “abalos” ou “desnivelamentos”. E não se trata de um “esboço de livro”, mas, sim, de um esboço de vida, enfadonho sob todos os aspectos.

São inúmeros os trechos nos quais surge essa visão deturpada. Ao saber do noivado de Carmélia, diz ter-se conformado “sem esforço”, quando a verdade é que continuará a remoer suas fantasias. Analisa o comportamento de Glicério, este também enamorado da moça, apenas para concluir, numa transferência digna de tratamento psicanalítico, que o colega “é um hesitante, um homem sem endereço”. A seguir, de maneira risível, completa seu julgamento: “E, como não dispõe dos recursos com que conto, irritou-se, ao passo que eu assumi uma atitude quase olímpica”. Tão “olímpica” que, dias mais tarde, seguirá para o Rio de Janeiro, a fim de acompanhar a partida do navio no qual embarcarão Carmélia e o marido, sempre repetindo, no entanto, que “o desejo de ir não foi veemente”, mas “uma vaga idéia”. Na véspera da partida, cansado das andanças pelo Rio, decide voltar a Belo Horizonte sem ir ao porto. Entretanto, um parágrafo depois, no início do capítulo 79, confirma ter visto o navio zarpar.

Amizades sem rosto
Belmiro busca desculpas para não viver e, ao mesmo tempo, reclama sobre a vida que passa sem que nada aconteça. Tem poucas amizades e diz se contentar em manter “cinco por cento de afinidade”, mas logo a seguir confessa: “Só desejo que me deixem sossegado”. Assim, relaciona-se, mas superficialmente. Não se revela, não porque tenha algo a esconder, mas por refrear seus raros impulsos.

Define suas amizades como “funcionais”, e talvez por esse motivo não forneça a descrição da fisionomia de seus amigos ou de suas irmãs, todos personagens sem face, superficiais. O mais complexo de todos, Silviano, é um quarentão hipócrita, machista e mitômano, dado a mixórdias filosóficas. Glicério não passa de um arrivista. Jerônimo, um católico inveterado. Redelvim, um esquerdista pseudo-revolucionário. Jandira, dedica-se apenas a flertar, instilando falsas esperanças nos admiradores. E, por fim, Florêncio, a um passo do alcoolismo, que, semelhante a Belmiro, é “o homem sem abismos”, “o homem linear”, qualificado de “repousante amigo”.

Na solidão da rua Erê ou nas poucas conversas com Silviano, Belmiro julga a maioria das pessoas como “filistinos”. Percebe-se um evidente despeito nesse narrador sem perspectivas, cujos movimentos — e também os escassos gestos de amizade — são mais frutos da inércia do que do entusiasmo ou de algum outro sentimento pujante.

A partir de certo momento, quando Belmiro percebe que todas as relações começam a se desintegrar e que os poucos amigos se afastam, passa a manter relações com o contínuo da repartição, Carolino, que todos avaliam como louco, mas que lhe empresta dinheiro e chega a antecipar o pagamento de algumas contas. É a única amizade que lhe restará.

Anti-romance
Nos dias em que permanece no Rio de Janeiro, o amanuense acaba por sentir-se perturbado diante do mar, pois “é vário e a cada instante se renova. Cada onda lhe traz formas novas, cada vaga, traços novos de vida”. Ao deparar-se com sua antítese, Belmiro chama o mar de “o grande paralítico”, numa tentativa de superar o mal-estar que experimenta por se sentir, ele sim, um paralítico, seguro apenas na casinha da rua Erê, ouvindo o “lento martelar do relógio”.

Em certas páginas, o narrador tem um lampejo de consciência e se pergunta: “Não estarei aqui somente para integrar o vasto painel humano — ponto de luz ou de sombra, molécula puramente pictórica, sem outro destino?”. Mas essa chama logo se apaga e ele permanece incapaz de ajudar até mesmo o vira-lata que lhe surge à noite, com a cara enfiada e presa em uma lata de lixo: “Bem podia ser que ele me agradecesse o benefício com uma dentada, refleti, para ter em paz a consciência”.

Diante de todas essas características, talvez pudéssemos concluir que O amanuense Belmiro é o romance brasileiro por excelência, ou seja, um anti-romance — ou, como afirma Alcir Pécora no posfácio, um “romance que se divisa como possibilidade” —, pois o que tem sido o Brasil até hoje, senão uma promessa que não se cumpre? “Réplica nova de um reino velho” — no pensamento modelar de Raymundo Faoro, em Os donos do poder, a passividade é um dos principais rebentos da formação de nosso país, responsável, dentre outros fatores, por uma história da qual, nos momentos cruciais, o povo sempre esteve ausente. Nesse ponto, aliás, Belmiro acerta ao simplificar, para Emília, a Intentona Comunista, comparando-a à Revolução de 1930: “Uma briga de coronéis, gente graúda”.

Perto do final, percebemos que o diário não passa de uma justificativa a mais para Belmiro continuar sendo o que é, enganando-se ao reclamar que “a vida se torna vazia”, pois foi ele quem, páginas antes, comentou, impregnado de prazer: “É a vida quase boa, quando é vazia como neste domingo”. Resta-lhe, assim, apenas o ridículo de quase ser atropelado por Carmélia e o marido, que, recém-chegados da Europa, riem dentro do automóvel e partem sem lhe pedir desculpas; e a última frase, a pergunta cujas possíveis respostas estão — irremediavelmente — contaminadas de enfado.

O amanuense Belmiro
Cyro dos Anjos
Globo
240 págs.
Cyro dos Anjos
Nasceu em Montes Claros (MG), em 1906, e morreu no Rio de Janeiro, em 1994. Em 1969, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Jornalista, poeta, ensaísta e memorialista, foi sobretudo como romancista que o autor sobressaiu. Em sua obra, destacam-se ainda Abdias (romance, 1945) e os volumes de memórias Explorações do tempo (1952) e A menina do sobrado (1979).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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